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segunda-feira, 4 de julho de 2011

O CORVO

Alexandre era quase uma ficção. Se não existisse, precisava ser inventado. Problemas amorosos não o atormentavam. Gostava de Elvira, a esposa, e Elvira gostava de Alexandre. Sem dificuldades financeiras, era um comerciante pequeno, ganhava o suficiente para ir levando a vida, sem medo de faltar feijão e arroz à mesa. Tinha boa saúde. Inimigos eram poucos – declarado só o Aristeu, mas esse não contava porque a briga era antiga, coisa dos tempos de colégio, uma dessas bobagens que o tempo não curou.

Tudo em Alexandre era exemplar. Exceto... Pois é, ele tinha... Uma compulsão. E isso, muitas vezes era problema. Dona Stella, por exemplo, além de se benzer várias vezes, mudava de calçada sempre que o via. Certa vez, quando o padre Severino lhe perguntou o que aquilo significava, a velha, visivelmente descontrolada, misturando trechos de várias orações, decretou, aos gritos, o fim da conversa:

− Com o "Corvo" eu não falo não! Vade retro, Satanás!

Quando tomou conhecimento da reação de D. Stella, Alexandre ficou magoado. No dia seguinte, esqueceu o assunto. Inclusive porque precisava comparecer no enterro do vereador Pedregulho, que havia passado dessa para melhor quando o marido de Florisbela o encontrou nu, dentro do guarda−roupa. Não houve conversa: três tiros cortaram a madrugada e o "Don Juan" do subúrbio foi prestar contas dos seus pecados diante de São Pedro.

Depois de um banho bem demorado, Alexandre vestiu o terno novo, colocou gravata e sapato preto. Na lapela, cravo vermelho. Escovou os dentes, usou fio dental e anti−séptico bucal. Depois, literalmente, mergulhou no vidro de perfume. Para completar esse enredo de opereta, ensaiou choro discreto, antevendo a cena que precisaria interpretar diante de Adalgisa, a viúva. Não que ele estivesse premeditando alguma coisa, isso não – mas, ela poderia precisar de um ombro amigo e isso ele nunca negou aos necessitados.

No momento em que ele entrou na capela mortuária fez−se silencio, digamos, sepulcral. As senhoras da Liga Municipal pela Decência e pela Fé Cristã foram as primeiras a reagir. Com indignação. Alexandre fez que não percebeu nada e se aproximou da viúva. Com um tom de voz neutro, se colocou à disposição. E antes que alguém tentasse impedir, começou a enumerar as providências que deveriam ser tomadas naquelas circunstâncias. Perguntou se a família tinha jazigo mortuário, se haviam liberado as licenças municipais, se o serviço da floricultura estava a contento – ele conhecia uma ótima, serviço de primeira, nenhuma família enlutada poderia reclamar de tamanha eficiência.

A viúva, incrédula, caiu em prantos. Alexandre também – por motivo diferente. Propôs dividir o lenço, que tirou do bolso. Infelizmente a sua boa ação foi recusada. Orlando, um dos irmãos do falecido, o segurou no braço com força, muita força, e o carregou até o fundo da sala. Ali, sentado em uma cadeira desconfortável, foi advertido que não deveria se intrometer em assunto que não fora chamado, a família tinha condições de resolver tudo sem a intromissão de um estranho. Ato contínuo, Orlando quase lhe quebrou o braço.

− Que isso sirva de aviso, disse o brutamonte.

Alexandre tentou argumentar, mas o olhar homicida do irmão do morto foi de tal intensidade que ele percebeu que se continuasse a insistir poderia fazer companhia ao falecido – no reino dos céus.

Ameaçado por tanta mágoa sem sentido, ele só queria ajudar, abandonou o velório.

Quando colocou os pés na calçada percebeu movimentação na capela ao lado. Curioso, foi ver quem era o felizardo, digo, o morto, digo, a morta. Ao reconhecer um familiar em prantos, fez uma bateria de perguntas sobre a identidade da falecida. Em seguida, se prontificou a ajudar naquele momento tão infeliz. Como era enterro de pobre, foi até o boteco da esquina, comprou duas garrafas de cachaça, biscoitos sortidos e sanduíches de mortadela. Mandou embrulhar tudo e voltou à capela. No seu rosto, um brilho de felicidade inimaginável.

Durante a noite, Alexandre amparou o viúvo (que nunca tinha visto antes), consolou os filhos, contou piadas (leves, muito leves), discutiu a situação econômica do Brasil e os desastres patrocinados pela seleção brasileira de futebol. Enfim, fez o possível para amainar aquele momento doloroso.

Ao amanhecer, cansado, porém feliz, foi para casa. Pediu desculpas por não poder acompanhar o extinto até a última morada. Tinha outro compromisso:

− O Joaquim, ali da imobiliária, o senhor conheceu?, pois é, o Joaquim também faleceu, acabei de receber um telefonema me avisando disso, a família dele vai precisar de ajuda, nessas horas nunca neguei fogo, vou para lá.

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