Páginas

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O INSENSATO CORAÇÃO DA FRATERNIDADE

A difícil arte de contar a mesma história, mas de modo diferente, encontrou − mais uma vez − abrigo em telenovela da Rede Globo: Insensato Coração. Combinando inúmeros temas, os autores do folhetim televisivo, Gilberto Braga e Ricardo Linhares, concentraram parte do enredo nos conflitos familiares, principalmente as desavenças entre irmãos. Sem a mínima piedade, dissecaram aquilo que os ingênuos chamam de amor fraterno. Dissecar não é um verbo exagerado neste assunto. Muito pelo contrário. De acordo com fórmula clássica elaborada por Tolstoi, Todas as famílias felizes são parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira, os destemperos familiares constituem o meio de cultura perfeito para o desenvolvimento da tragédia (e, conseqüentemente, de sua irmã gêmea, a comédia).

No momento em que a loucura se confunde com o desejo de vingança (o que é comum quando o espaço familiar se transforma em campo de batalha) não sobra espaço aos comedimentos, às gestões diplomáticas. As discussões ocorrem em voz alta, alterada, próxima do ataque físico, a um passo do desejo de ver o sangue escorrer pela face do adversário, perdão, do inimigo. Inimigo também não é adjetivo excessivo. Na contemporaneidade, repleta de pessoas que sonham em transformar a vida dos outros em inferno, o empurrão na direção do abismo é apenas uma questão de oportunidade.

As crises familiares estão imunes ao desgaste do tempo. Mudam os detalhes, a espinha dorsal do desentendimento permanece imutável. E a cada vez que o conflito se repete, o imaginário popular recorda histórias antigas, os desmoronamentos afetivos e físicos comprovando que o mundo doméstico ainda não foi domesticado.

A fraternidade talvez seja a ramificação mais significativa desse tipo de desavença, principalmente porque pais e as mães, por motivos diferentes, alguns completamente desvinculados do bem-estar da prole, gostariam de impor o amor fraterno como regra incondicional de conduta para seus herdeiros. Milagres não acontecem. O ambiente familiar é competitivo, um grama de atenção equivale a uma tonelada de satisfação. Por isso, em algumas circunstâncias, através de jogos perversos, misturando atração e repulsão, os pais estabelecem alianças temporárias com os filhos. Independente do lado que defendam, porque o objeto em disputa somente interessa aos pais, os filhos são perdedores nesse sistema de manipulação dos afetos.

Ao navegar nesse mar revolto, os responsáveis por transportar a carga genética que vai garantir a continuidade do patronímico recebem uma lição de sobrevivência emocional: a felicidade está ligada com a necessidade de competir pelo amor paterno/materno e, conseqüentemente, superar o irmão. Aquele que deveria ser um companheiro se transforma em adversário imediato.

Esse quadro se torna mais nítido quando pais e mães estabelecem um sistema de recompensas e punições para os filhos. Fingindo aplicar um método educativo (que é constantemente rompido pelos educadores), o autoritarismo familiar poucas vezes leva em consideração as lacunas emocionais que causam naqueles que são castigados.

(Para quem discorda dos três parágrafos acima, uma recomendação cinematográfica: O vencedor [The fighter]. Dir. David O. Russell, 2010)

Ressentimento, ciúme, egoísmo e ambição. Protegidos por esse conjunto de sentimentos, os integrantes da fraternidade costumam criar redes de proteção contra novos desapontamentos. Ou seja, salvo raríssimas exceções, ou casos de agressões promovidas por terceiros, o sibling (palavra oriunda do inglês arcaico e que designa irmãos e irmãs que não são gêmeos) prefere ficar bem longe do entendimento fraterno. Diante do irmão, necessitando escolher entre um gesto de amizade e a ofensa, a prática usual confirma a segunda opção – sem arrependimentos, sem a mínima culpa. Inclusive porque as ações ofensivas estão conectadas com o instinto, que é algo difícil de ser controlado.

Resumindo, a fraternidade possui mais afinidades com a divisão do que com a adição.

Nesse cenário, as produções televisivas (que embaralham literatura, dramaturgia e cinema) surgem como instrumental à disposição daqueles que gostam de mexer nas feridas, a ponta do bisturi revelando o tecido necrosado.

Um dos núcleos da telenovela Insensato Coração está concentrado na família Brandão. Nos primeiros capítulos, as desavenças entre Raul (Antonio Fagundes) e Umberto (José Wilker). Misturando problemas econômicos e questões amorosas complicadas, não­resolvidas (no imaginário fraterno, as cunhadas integram o território em disputa), os dois homens estão unidos por um passado que os desunem. Cercados por dívidas afetivas e dúvidas sobre qual a melhor forma de machucar o irmão, perdem o ritmo da vida, esquecem que existe beleza fora da esfera competitiva. Concentrados em ações (preventivas, punitivas, maldosas) violentas, confirmam que, ao enfrentar as tensões emocionais, poucos conseguem manter a racionalidade. E, por vias transversas, ao reproduzirem esse esquema perverso, convidam a barbárie para entrar pela porta da frente da vida familiar.

As relações afetivas entre os filhos de Raul, Pedro (Eriberto Leão) e Leonardo (Gabriel Braga Nunes), estão um degrau abaixo – embora a imagem especular revele maniqueísmo narrativo mais explícito, o velho truque de dividir a vida entre o "bem" e o "mal". Nesse sentido, o personagem idealizado precisa apresentar algumas qualidades: bom moço, filho exemplar, capaz de atrair as simpatias gerais. Cabe a Pedro esse papel. No outro lado da moeda está gravada a face de Leonardo. Empreendedor, Leo ambiciona o sucesso econômico a qualquer preço. E isso significa que fracassa constantemente – para desgosto de seu pai. Enquanto Pedro é cheio de virtudes (heróico, consegue impedir um seqüestro aéreo!) e acredita na bondade humana, Leonardo é ardiloso, dissimulado, como o gato que dá o tapa e esconde a pata.

Através desses dois pares antagônicos, a telenovela explorou a colisão de interesses entre os irmãos até a exaustão. Nenhuma novidade. A literatura sobre o tema é farta. No Brasil, os romances Esaú e Jacó (Machado de Assis), A gaiola de Faraday (Bernardo Ajzenberg), À margem da linha (Paulo Rodrigues) e Dois irmãos (Milton Hatoum), entre outros, discutem diversos aspectos desse litígio. No entanto, para aqueles que estão interessados no assunto, os modelos comportamentais mais significativos estão na mitologia grega. É possível encontrar histórias para todos os gostos. Basta escolher a perversidade, perdão, as divergências e, claro, os momentos de ternura.

Infelizmente, antes que o gosto amargo da realidade destrua os sonhos românticos, muitos preferem consumir a doçura protagonizada pelos gêmeos bivitelinos Castor e Pólux. Filhos da mesma mãe, Leda, os rapazes estão separados por uma contingência genética possível, mas muito rara: pais diferentes. Essa situação atípica resulta em desequilíbrio fraterno: Pólux é semi­deus; Castor, mortal. Companheiros de todos os instantes, não hesitam em desfrutar de uma vida cheia de aventuras. Participaram da expedição dos Argonautas. A última travessura dos gêmeos ocorre durante as bodas de seus primos Idas e Linceu. Enamorados pela beleza das nubentes, as irmãs Febe e Hilaíra, os gêmeos não hesitaram em raptá-las. Descobertos, entraram em luta corporal com os noivos. Castor é ferido mortalmente. Pólux, inconsolável por ter sido separado do irmão, solicitou a seu pai, Zeus, senhor do Olimpo, que lhe fosse permitido trocar a vida pela do meio-irmão. Zeus recusou o pedido e os transformou na constelação Gemini.

Entre os casos mais próximos do horror, merece destaque a história de Atreu e Tiestes. Quando o trono de Micenas ficou vago, os irmãos entram em guerra silenciosa. Depois de muitas agressões mútuas, firmam um acordo: assumirá o governo quem conseguir encontrar um velocino de ouro. Atreu cumpre a tarefa, mas é roubado por Aérope (sua esposa e amante de Tiestes). De posse do troféu, Tiestes reclama o trono e expulsa Atreu da cidade. Zeus, descontente com esse desfecho, intervém e restaura a ordem. Para comemorar, Atreu convida o irmão para um banquete de reconciliação. Depois que Tiestes se fartou com as carnes servidas, Atreu revela a composição do cardápio. Com as cabeças de três dos filhos do irmão (Aglau, Calilente e Orcómeno) na mão, torna público que o principal ingrediente dos afetos fraternos é a crueldade. Para completar a lição, decreta expulsão perpétua do Tiestes da cidade.

Agora que a novela está próxima do fim, o espectador percebe que pouco ou nada foi acrescentado no universo familiar: as mais torpes formas de violência apareceram na telinha. A insensatez não respeita corações apaixonados ou a fraternidade. Como lembra um personagem de John Updike: Ter um irmão ou uma irmã (...) não suaviza a alma, é o que me ensinou a vida. Eu tinha oito irmãos, alguns eram tímidos, outros desembaraçados, uns bons e outros não tão bons. Nós estávamos sempre roçando uns nos outros como pedras dentro de um balde, mas arenito continuou sendo arenito e quartzo continuou quartzo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário