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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A HISTÓRIA INCERTA DOS CINCO REIS MAGROS (versão 2)

−Três reis magros?

A voz enrolada de Antenor só servia para confirmar o óbvio: estava na "maior água". Bêbado como um gambá, embora ninguém tenha certeza de que os gambás gostam de entornar um monte de cerveja e incontáveis "dois−dedinhos" (o mínimo e o polegar abertos no máximo!) de uma amarelinha especial, puro artesanato, modelo exportação, made in Luiz Alves, lá no interior de Santa Catarina. O fato é que Antenor gostava. De uns tragos. Muitos! A vida como transfusão de delírios, o contentamento é a prova dos nove, dos dez e, se bobear, dos onze, time de futebol foi feito para dar espetáculo, qualquer outra alternativa significa perda de tempo.

− Eu disse magros? Hic! Os caras não eram reis ou magros, hic!, no máximo viajantes pelo deserto, nômades, sei lá, nunca consegui entender o que acontece com aquela gente.

Eduardo, o compositor oficial da escola de samba do bairro estava tentando explicar, sem muito sucesso, para alguns amigos a ideia que estava desenvolvendo para o próximo carnaval. Interrompido por Antenor, ficou furioso. Com um tom de voz nervoso fez a pior pergunta possível naquela situação:

− Desde quanto você entende desse assunto?

− Eu? Hic! Eu sei tudo! Tudo!

E, para espanto geral, se aproximou do grupo, puxou uma cadeira de plástico, dessas que são propaganda de cerveja, pediu para o dono do boteco outra dose "daquela que matou o guarda", e começou a contar a sua versão da história.

− No princípio era, o que era mesmo?, ah, sim, era o verbo, hic, e a verba, que sem algum dindim num dá pra continuar a brincadeira, dez por cento é o de praxe, pode perguntar pra qualquer um, esse é o país da propina, difícil discordar. Mas, perdão, estou indo na outra direção, hic, o que importa aqui é o verbo e o verbo se fez noite de lua cheia, um gato preto cruzou a estrada quando aquele bando de amigos, cinco, entendeu?, cinco, esqueça essa história de trindade ou tridente, isso é lenda, daquelas que algum assessor de imprensa costuma plantar na imprensa livre e independente que costuma vender a alma por algum anúncio de meia página. Eram cinco e eram gordos, gordíssimos, íssimos, íssimos, mas, como sempre acontece nessas paradinhas, eram gentes finas, finérrimas, érrimas, érrimas! Eles saíram de uma daquelas famosas tendas no meio do deserto, sabe?, uma daquelas, luzinha vermelha e tudo. Cara, foi uma festa bárbara, Atila, o Huno, provavelmente se multiplicaria em dois, três, quatro, sei lá quantos, depois de uma noitada daquelas. Hic! O mínimo que rolou foi o super−strip−tease de Sherazade, que deu o bolo no sultão. Naquela noite a gatinha não estava com vontade de ficar sussurrando fábulas bobas no ouvido de um velho senil. Hic! Preferiu construir fantasias eróticas na cabeça dos frequentadores daquele
antro. Corpaço! Como se viu depois da dança dos sete véus, quando desvendou até as regiões mais abissais do oceano, uma loucura! Espetáculo do ano! No mínimo! Depois, duvido que vocês adivinhem o que aconteceu, essa vou contar com a boca cheia d’água, quero um copo de cerveja, isso, assim mesmo, colarinho, ah, delícia, delícia, quando morrer quero passar o resto da eternidade dentro de uma cervejaria, já imaginaram? Tá certo, voltar ao que interessa. Vou. Pô, cara, Mary Madelane era afamada nas sutilezas do negócio, alegrava corações (ou equivalentes) e esvaziava bolsos (ou equivalentes) e às vezes fazia ponto naquele oásis, os beduínos assanhados com aquele material de primeira, hic, que a moça não descuidava da forma física, banquete pra quinhentos talheres e algumas centenas de dinheiros (no mínimo), o prazer de ter prazer custa caro e esse é o barato. Impossível não querer provar daquela cachaça! Pois bem, não vamos muito longe nessa lenga-lenga, to vendo que tem gente irritada, virgem santíssima, desmanchem essa cara feia! Como eu estava contando, hic, a turba, digo, a turma saiu da tenda, logo depois do show da pop star Salomé, que cantou uma seleção dos seus últimos sucessos, inclusive o clássico inesquecível "Quero brincar com a cabeça de João Batista". Isso foi lá pelas cinco da matina, hic, se é que podemos confiar no urro matinal do camelo−despertador. Claro, o quinteto já tava pra lá de Marrakesh (uma grande cidade, se me permitem a observação), e estava vendo as coisas meio assim em duplicata, tá me entendendo?, tudo multicolorido, mor festerê. Alegria, alegria. E não adianta me olhar com essa cara de incrédulo, como se eu estivesse a contar um novo samba do crioulo doido, hic, viu a sutileza, cri−ou−lo, a porra da norma culta, a inculta e bela também gosta de carinhos, chamegos, cafunés e outros parangolés, tá ligado? Onde é que eu tava mesmo?
Na saída da zona, hic, zona do agrião, um silêncio inconveniente atravessou a madrugada, seguido do choro de uma criança. Todo mundo olhou na direção da estrela do Oriente. Belchior, que vários séculos depois será conhecido como um grande cantor nordestino, era quem estava em melhores (ou piores) condições para avaliar a situação. Por essas e outras, hic, foi nomeado embaixador plenipotenciário. O idiota ali, com aquela cara de sonso, não acreditou que eu pudesse falar ple−ni−po−ten−ci−á−ri−o. Acha que bêbado é burro, o burro. Embaixador plenipotenciário. Foi lá ver o que estava acontecendo. No meio do caminho encontrou o grande campeão do rali Paris−Dakar, Frederick Ali−Babá, que estava a combinar uma pequena transação afetivo−sexual com Savannah, bela garota!, bela garota!, que depois desses treinos se transformou em grande atriz do cinema pornô, dessas que frequentam as manchetes das revistas Rostos e Faces. Os amigos dividiram uma garrafa de hidromel, apalparam a mercadoria (que soltou gritinhos histéricos!) e se separaram. Enquanto entoava um mantra contra o medo, o nosso anti−herói se aproximou da estrebaria e espiou lá pra dentro, esperando encontrar as piores coisas e tudo o que viu foi uma criança deitada na anjedoura, anjo dourado?, hic, quis dizer manjedoura.Também viu várias pessoas e alguns animais (ou será que foi o contrário?) que estavam se aquecendo ao redor de uma pequena fogueira. Foi recebido por diversos
e variados gritos de entusiasmo: Paz e amor, bicho!, Qualéquiera, bróder?, Chega mais!... Como, naquela tchurma, corria de mão em mão um suquinho alcoólico de uva, coisa fina, não tenho certeza, acho que era um chileno, talvez argentino, região de Córdoba, não tenho certeza, hic, não houve como segurar a sede, um gole é sempre um gole e quem há−de resistir às tentações do coração? Pois então, assim como quem não quer nada, pintou um lance legal, a gente tá prisso ai memo, tá sabendo, mermão? Enquanto o resto do pessoal ficou a esperar por novas que não vieram, novas ou velhas. Melquiades, que era de pavio curto, foi lá ver o que estava acontecendo. Acompanhado de Mohamed, que estava vestindo uma camiseta de futebol, provavelmente a do Ibis, encontrou o desaparecido dormindo em decúbito dorsal, vestindo organdi azul. Hic! Viadagem pouca é bobagem, dizia minha saudosa avó, que o Senhor a tenha ao seu lado, hallellujah! Epa, acabei embolando o meio−de−campo outra vez, o jogo é outro, goleadas da seleção são peças de ficção, vamos voltar ao que deixamos para trás, apaga essa história de  sete a um, ataques epiléticos e outras desculpas esfarrapadas, e laços de fita cor−de−rosa, detalhes do que acontece entre as quatro paredes de motel vagabundo não interessam para essa crônica dos meus, teus, nossos equívocos. Belchior estava lá, alegre e faceiro, tomando uma taça de Chateau Rothschild, safra nobre, numa fina taça de cristal fino, italiano, lapidado, cantarolando o seu medo de avião. Hic! Por isso mesmo é que quase foi lapidado, o tijolo passou raspando, uns cinco milímetros da orelha esquerda, a big shot, ou melhor, head shot, como dizia o menino, campeão de counter strike, filho do coronel estadunidense, especialista em insegurança nacional e que ancorou em Pindorama, hic, sutilezas do final dos anos 60,
hic, repressão também é cultura, hic, manjou o potencial do potentado? Não sei não, acho que o cara devia se inscrever em um desses concursos institucionais de tiro ao marginal, ganhava fácil the first prize, não tenho duvidas. E, se corresse algum por fora, sabe?, uma gorjetinha, quem sabe salvasse um pouco das nossas, perdão, das minhas dívidas, hic. Pô, cara, tô de garganta seca, desce mais uma gelada, que essa conversa está muito quente e, pô, preciso de combustível para continuar percorrendo a estrada. Viver é perigoso, já anunciava um personagem do velho Guima, cês tão lembrado? Tá certo, o incerto é lembrar dessas coisas! E, por falar em lembranças, onde é que estava na historia dos gordos? Os cinco reis gordos. Ho, ho, ho! Hic, hic, hic! Ah, sim, o tijolaço, another brick in the wall. Gato que levou tijolada não dorme perto de olaria. Pois é, seu Mané, o Belchior havia se enturmado, uma odalisca aqui, uma musiquinha ali, bandejas de quibes e esfihas sendo servidas para os convivas, e como já estava meio chumbado, hic, ou melhor, hip−hip−hurra!, foi ficando pelos cantos do recinto, mamando o seu néctar, sem lembrar daqueles que haviam ficado a esperar por alvíssaras. Baita irresponsabilidade, concordo. Só voltou ao mundo real quando sentiu o tijolo raspando a orelhinha que mamãe (a dele!) beijou e passou talquinho. Na hora que entendeu que o que estava acontecendo não era nenhum afago amoroso, sentiu um frio na barriga, aquela sensação só possível em quem chega atrasado ao cinema, o filme já começou e é preciso uns dez minutos para tomar pé dos acontecimentos narrados na tela. Entre uma coisa e outra, Melquiades encontrou um velho conhecido, o ceguinho Aderaldo, célebre cantador da famosa banda de punk rock Philatu’s Guilt. Trocaram figurinhas e fofocas. Hic.
Mais fofocas que figurinhas, if you understand me? Hic! Saíram coisas do balacobaco, podes crê!, inclusive as últimas da corte de Herodes, o Patético Antipático, que agora estava imerso em medo pânico de que as profecias de Nostradamus se cumprissem. Como o final do mundo ainda vai demorar, houve alguma irregularidade na licitação, hic, e eles não estavam com pressa, o melhor caminho para a felicidade foi chamar o resto da cambada, estava quase iniciando outra rodada de tragos e Zorba, a cueca, ia fazer uma performance artística. Delírios espartanos, o seu último show de ballet estava bombando na internet, milhares de acessos ao incrível talento desse grego falsificado, porém autêntico, como mandam as regras da globalização capitalista. Happy hour às seis da manhã, vê se pode? Pode e phode. E não ligue, pois si non é vero, é bene trovatto. O desconto fica por conta dessas bossas de fusos horários, hábitos culturais e a vontade incansável, insaciável de acabar com o gosto de guarda−chuva que fica na boca depois de uma noite de tragos, tragada como se fosse um Montecristo ou uma dose de Courvoisier, depois de uma sessão intima de suores e gemidos. De qualquer forma, a desumanidade está três doses abaixo do normal e o motivo daquela reunião social era o nascimento de
uma criança, que parecia estar gostando do agito, havia parado de chorar e até acenava os bracinhos, como se quisesse sair dançando, pois é, naquela hora a criança devia estar dormindo, felizmente o Conselho Tutelar estava tutelando outras coisas mais importantes, a criança estava acordada, talvez pela algazarra, talvez por não ter nada melhor a fazer, a roda gigante e o balanço estavam estragados. Nesse momento os cinco bêbados, hic, êta, essa cervejinha é boa pra afinar o verbo e a língua, eu disse cinco bêbados? Hic! Errei. Cinco gordos. Cara, só de pensar em transportar aqueles caras os dromedários estavam pedindo aposentadoria, sem se importar que o INSS exige comprovação de tempo de serviço! Os cinco gordos ao sentirem o cheiro de churrasco no ar, alguns pombos e o filho de Isaac estavam sendo imolados em augúrio ao parto bem sucedido, resolveram fazer algumas oferendas ao rebento que havia rebentado naquele lugarejo ermo. Belchior entregou um CD com os seus maiores sucessos. Melquiades, uma cópia pirata de algum jogo de computador, desses em que matar se transforma em sinônimo de sucesso. Ananias entregou uma bandeira da Palestina, lembrando que um irmão não deve oprimir o outro. François, que ainda não havia entrado nessa história,
entrou de forma triunfante e propôs mais um brinde, dessa vez com kirsh ou vodka, talvez fosse pisco ou mescal, uma dessas bossas velhas sobre barquinhos na beira do mar e namoros ingênuos. Infelizmente a mente humana é uma caixinha de surpresas e não foi dessa vez que recebeu o Oscar ou o Tony ou o Kikito. O cinema está repleto de ingratidão. Nada mais restou senão se retirar de cena, constrangido. Antes, entregou aos pais do menino uma caixinha de cobre com enfeites de jade. Recomendou que somente fosse aberta quando o menino atingisse a maioridade (duas semanas mais tarde, quando todos foram viver na Galiléia, a caixa desapareceu e o mistério de seu conteúdo perdura até hoje). Findo o cerimonial, o sol rompeu lá fora, conclamando outros excessos. Como havia acabado o estoque de energéticos, a sede era inesgotável, a solução foi chamar vários táxis e partir para Jerusalém, onde a festa continuou por mil e uma noites.




(Estou republicando esse texto, por diversos motivos. O mais fácil é a data. Embora nada tenha a ver, tem o haver tudo com esse nada. Depois, fiz várias mudanças, repaginei o texto, talvez tenha ficado pior, a vida é assim mesmo, uma fieira de equívocos. E quem está na chuva corre o risco de ficar com cara de bobo. Tomara que seja esse o caso!)

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