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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

MINHAS TARDES COM MARGHERITTE

Somente os ignorantes são felizes. Os livros não mudam as pessoas. Essas duas afirmações costumam ser contestadas pelo inconsciente humano. O conceito de civilização inicia com a crença de que o conhecimento é transformador, e que pode mudar a vida das pessoas. Para melhor.

O filme Minhas tardes com Margheritte (Dir. Jean Becker, 2010), baseado no romance La tête en friche, de Marie−Sabine Roger, se predispõe a contar uma história de mutação intelectual. Dessas que – transitando entre o símbolo e a ingenuidade – servem de exemplo pedagógico.

O encontro casual, em uma praça, entre Germain Chazes (interpretado por Gérard Depardieu) e Margheritte van der Veld (interpretada pela excelente Gisèle Casadesus) parece cena de teatro grotesco. A velhinha frágil e o ogro. Primeiro, eles falam sobre os pombos − Germain conhece a todos, deu nome a cada um deles. Depois, quando a descontração invade a conversa, ela lê um trecho do livro que carrega. Germain, que teve dificuldades de aprendizado na infância, se encanta com a história que ouve. Algumas horas depois, a voz de Margheritte ainda ecoa em sua mente. Tanto que ele sonha com os ratos. Quando, no encontro seguinte, eles concordam em continuar a leitura conjunta (ou seja, ela ler e ele escutar) de A peste, de Albert Camus, a sintonia se estabelece elegantemente, como se fosse um ato natural. Não o é. Germain ouve a voz que lê o texto, mas não possui as chaves da compreensão. Ele não consegue entender direito a história que envolve Rieux, Tarrou e Cottard. Terminado o livro, as sombras desaparecem no horizonte. Não deixam marcas.

Por um desses encantos que somente a ficção consegue produzir, quando iniciam a leitura de A promessa da aurora, de Roman Gary, alguma coisa está diferente. Nada palpável ou substancial. Sensível ao ordenamento do mundo, Margheritte percebe a mudança e incentiva esse deslocamento, oferecendo um presente. Germain, sem a mínima sutileza, emite opinião definitiva sobre o dicionário: faltam várias palavras e sobram outras tantas. Por isso resolve devolver o livro:

− Vou devolvê−lo. Não consigo usá−lo.
− Não consegue?
− Não sei escrever as palavras, não consigo encontrá−las. Quando encontro, não concordo!


O clímax da narrativa ocorre quando Margheritte conta para o amigo que está quase cega e não consegue mais ler. Esse é ponto nevrálgico do filme. A situação se inverte. Com muito esforço, tropeçando nas palavras que até a pouco não faziam parte de seu mundo simplório, Germain consegue tomar o lugar que até então pertencia a Margheritte.

Essa jornada amorosa pelos livros e pelo genuíno afeto contém outros elementos, todos secundários. O que importa é que, na companhia dos livros e de Margheritte, Germain se torna um homem melhor.

Descontando o idealismo, Minhas tardes com Margheritte é um desses filmes que enchem de carinho a vida do espectador.



Foi um encontro discreto do afeto com o amor
Ela não tinha outro teto
Tinha nome de flor
Vivia cercada de palavras
Adjetivos, substantivos, verbos e advérbios

Alguns chegam sem jeito
Ela chegou com doçura
Quebrou minha armadura
E se alojou no meu peito

Nas histórias de amor
Não há apenas o amor
Nunca dizemos... "Eu te amo"
No entanto, nos amamos

Não é uma história comum
Ela leu para mim
Num banco de jardim
Era frágil como uma pomba
Sentada àquela sombra
Cercada de palavras
De nomes comuns como eu
Me deu muitos livros
Que me tornaram mais vivo

Não morra agora
Espere um pouco
Não é hora, doce senhora
Me dê um pouco mais ainda
Um pouco mais da sua vida
Espere...

Nas histórias de amor
Não há apenas o amor
Nunca dizemos "Eu te amo"
No entanto, nos amamos.


(Poema narrado por Gérard Depardieu, enquanto sobem os créditos do filme Minhas tardes com Margheritte)

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