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segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O pensamento moralista de Jean de La Bruyère (1643−1696) em quarenta aforismos

A glória ou o mérito de certos homens é de escrever bem; de outros, é de não escrever.

Não há gesto, por mais simples e imperceptível, que não revele nossa personalidade. Um imbecil não entra, nem sai, nem senta, nem levanta, nem se cala, nem se mantém de pé como um homem inteligente.

Há uma espécie de vergonha em ser feliz diante de certas misérias.

Os homens começam pelo amor, acabam pela ambição e muitas vezes só encontram tranqüilidade quando morrem.

Se é usual sentirmo−nos vivamente impressionado pelas coisas raras, por que é que nos comove tão pouco a virtude?

Quando as honras e a fortuna abandonam um homem, descobre−se o ridículo que elas cobriam, sem que ninguém o notasse.

Só o tolo pode tornar−se importuno: um homem inteligente sabe se agrada ou se aborrece; sabe desaparecer sempre antes de se sentir fora do ambiente.

A tortura é uma invenção maravilhosa e muito segura para perder um inocente de saúde fraca e salvar um culpado que nasceu robusto.

Não podemos levar muito longe uma amizade, se não estivermos dispostos a perdoar uns aos outros os pequenos defeitos.

Nada existe que os homens gostem mais de conservar e que tanto desperdicem como sua própria vida.

Devemos procurar apoio daqueles a quem queremos bem e não daqueles de quem esperamos algum bem.

Os jovens, por causa das paixões que os distraem, suportam melhor a solidão que os velhos.

Há homens que, se pudessem conhecer seus subalternos e conhecer−se a si próprios, teriam vergonha de estar em evidência.

Receamos a velhice porque não temos certeza de chegar a ela.

O pior caráter é não ter caráter.

É realmente uma desgraça não ter espírito bastante para falar bem, nem suficiente discernimento para calar. Este é o princípio de toda impertinência.

Só há neste mundo duas maneiras de crescer: por seu próprio trabalho ou pela imbecilidade dos outros.

Devemos calar com relação aos poderosos; há quase sempre lisonja ao falar bem deles; há perigo ao falar mal enquanto vivem e covardia depois que estão mortos.

Não é vergonha nem erro para um jovem desposar uma mulher de mais idade; às vezes é prudência, precaução. A infâmia é aproveitar−se de sua benfeitora com tratamentos indignos e que deixam transparecer que ela é vitima de um hipócrita e de um ingrato...

É bom todo o homem que faz o bem aos outros; se sofre pelo bem que faz, ele é muito bom; se sofre por aqueles a quem faz esse bem, é de uma bondade tão grande que esta só podia ser maior se acaso seu sofrimento aumentasse; e se morre em conseqüência desse sofrimento, sua virtude não poderia chegar mais longe: é heróica, é perfeita.

Para o homem, só há três acontecimentos: nascer, viver e morrer. Não se lembra do nascer, sofre para morrer e esquece de viver.

Há na amizade pura um perfume que aqueles que são medíocres não podem respirar.

Abrimos as lojas e expomos todas as manhãs para enganar nosso próprio mundo; fechamos à tarde, depois de ter enganado o dia inteiro.

É por fraqueza que se detesta um inimigo e que se pensa em vingança; e é por preguiça que se fazem as pazes e não se pensa mais em vingança.

Um homem que acaba de ser nomeado para um cargo não se serve mais de sua razão e de seu espírito para regular sua conduta e sua aparência exterior com relação aos outros; assume como regra aquela de seu posto e de sua posição: disso decorre o esquecimento, a altivez, a arrogância, a dureza, a ingratidão.

Há pessoas que falam antes de pensar. Há outras que prestam tanta atenção ao que dizem, que se tornam fastidiosas para quem as escuta; é como se tivessem somente frases e expressões petrificadas, que lhe inspiram os gestos e as atitudes: são puristas e não arriscam a mais leve palavra ao acaso, mesmo que causasse o mais belo efeito; não lhes escapa a menor expressão feliz, nada escorre genuinamente e com liberdade: falam com propriedade de termos, mas de modo enfadonho.

Um homem que viveu em intrigas durante certo tempo não pode mais passar sem elas; qualquer outra via é para ele desoladora.

O amor que nasce inesperadamente é o que mais custa a curar.

Um homem honesto recebe seu pagamento pelo trabalho que lhe dá o cumprimento do dever, pelo prazer que sente em cumpri−lo e não lhe interessam os elogios, a estima e o reconhecimento que por vezes não encontra.

A mulher inconstante é aquela que já não ama; a leviana, aquela já ama outro; a inconstante, aquela que não sabe se ama e a quem ama; a indiferente, aquela que não ama ninguém.

Aquele que não pode suportar os caracteres impertinentes, de que o mundo está cheio, não mostra ter bom caráter. Para o comercio, são necessárias tanto as moedas de ouro como as de prata.

O desgosto mata o amor e o esquecimento o enterra.

Um escravo tem um senhor. Mas um homem ambicioso tem muitos senhores: todas as pessoas que lhe podem ser úteis para ele subir na vida.

Um homem guarda melhor o segredo alheio que o seu. Uma mulher, ao contrário, guarda melhor seu próprio segredo que o alheio.

A vista curta, quero dizer, os espíritos limitados e apertados em sua pequena esfera não podem compreender essa diversidade de talentos que se encontram às vezes numa só pessoa: onde notam o agradável, excluem o sólido; onde julgam descobrir os encantos do corpo, a agilidade, a flexibilidade, a destreza, não admitem a existência dos dons da alma, a profundidade, a reflexão, a sabedoria: eliminam da história de Sócrates a informação de que ele dançava.

Há muitas pessoas de quem só o nome vale alguma coisa. Quando as vemos de muito perto, são menos que nada; de longe, se impõem.

Já vi uma moça, uma linda moça, que dos treze aos vinte e dois anos sonhava em ser mulher e, daí por diante, desejava ser homem.

Raras vezes nos arrependemos de falar pouco e muitas vezes de falar demais: máxima desgastada e trivial que todos conhecem e que todos não a praticam.

Não há no mundo tarefa mais árdua que a de conseguir fama: mal a vemos surgir, logo a vida acaba.

Falar e ofender, para certas pessoas, é precisamente a mesma coisa. São ásperas e amargas, de estilo cheio de fel e azedume: o escárnio, a injuria, o insulto escorrem de seus lábios como a saliva. Teria sido melhor para elas se tivessem nascido mudas ou idiotas: o espírito e a vivacidade que têm, prejudica−as mais que a outros sua estupidez. Nem sempre se contentam em responder com azedume, atacam muitas vezes com insolência; mordem a todos aqueles que se encontram a seu alcance, presentes e ausentes, ferem de frente e de lado, como os carneiros: pode−se exigir a um carneiro que não tenha chifres? De igual modo, não podemos esperar que caracteres tão duros, ferozes e indomáveis que se modifiquem com essa figura. O melhor que temos a fazer, ao avistar essas pessoas, é fugir correndo, sem sequer olhar para trás.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

TRÊS DÚZIAS DE FRASES SOBRE A IDADE

Os jovens de hoje são absolutamente monstruosos. Não têm o menor respeito por nossos cabelos tingidos. (Oscar Wilde)

Apraz aos velhos dar bons conselhos, como consolo por já não estarem em condições de dar maus exemplos. (La Rochefoucauld)

Jovens de todo o mundo: envelheçam. (Nelson Rodrigues)

A melhor década para o homem é a dos quarenta. Depois dos cinquenta anos, ele começa a deteriorar. Mas, por volta dos quarenta, está no auge de sua vilania. (H. L. Mencken)

Um arqueólogo é o melhor marido para uma mulher. Quanto mais ela envelhece, mais ele se interessa por ela. (Agatha Christie)

O adolescente é alguém que está se recuperando da infância. (Ambrose Bierce)

Todo mundo é capaz de envelhecer. Basta viver o suficiente para chegar até lá. (Groucho Marx)

As pessoas deveriam se aposentar aos quarenta anos, quando se sentem exploradas, e voltar a trabalhar aos sessenta e cinco, quando se sentem inúteis. (Irmã Carol Anne O’Marie)

Tivesse eu sido mais esperto, as moças mais gentis, o scotch mais fraco, os deuses mais sorridentes e os dados mais favoráveis, minha história poderia ser contada em uma frase: era uma vez um garoto que foi feliz para sempre. (Mickey Rooney)

Não sou jovem o suficiente para saber tudo. (George Bernard Shaw)

Se eu pudesse voltar à juventude, cometeria todos aqueles erros de novo. Só que mais cedo. (Tallulah Bankhead)

A juventude é uma doença da qual todos nos curamos. (Dorothy Fuldheim)

A idade não nos protege contra o amor. Mas o amor, até certo ponto, nos protege contra a idade. (Jeanne Moreau)

Entre os 25 e os 35 anos, você é muito jovem para fazer alguma coisa direito. Depois dos 35, já é muito velho. (Fritz Kreisler)

Um homem sabe que está ficando velho quando seus sonhos eróticos são reprises. (Henny Youngman)

Hoje em dia, o único respeito que se tem pelos mais velhos é quando eles vêm engarrafados. (Francis Blanche)

O jovem é um ser que se esforça até os trinta anos para destruir sistematicamente tudo aquilo que ele tem de melhor (Gertrude Stein)

Só há uma cura para os cabelos grisalhos e foi inventada pelos franceses. Chama−se guilhotina. (P. D. Wodehouse)

A juventude é uma coisa maravilhosa. Que pena desperdiça−la em jovens. (George Bernard Shaw)

A meia−idade é aquela em que, não importa para onde estiver indo, você colocara um suéter na mala. (Don Marquis)

Os velhos acreditam em tudo, as pessoas de meia−idade suspeitam de tudo e os jovens sabem tudo. (Oscar Wilde)

Quando fiz quinze anos, ganhei um relógio de pulso e cinco mil réis. Olhei os ponteiros, vi que era hora de fazer uma besteira e entrei no botequim. (Antonio Maria)

A fórmula mais rápida para o envelhecimento é levar uma vida tranqüila. (Peter Rombaut)

O segredo para se continuar jovem é ser honesta, comer devagar e mentir sobre a idade. (Lucille Ball)

Meia−idade é quando você para de criticar os mais velhos e começa a criticar os mais jovens. (Laurence J. Peter)

Os jovens nunca foram bons para ouvir os mais velhos, embora sejam infalíveis em imitá−los. (James Baldwin)

A idade é um preço alto demais que se paga pela maturidade. (Tom Stoppard)

Algumas mulheres não gostam de revelar sua idade. Temem que seja confundida com seu número de telefone. (Dorothy Parker)

Envelhecer é ser punido cada vez mais por um crime que não se cometeu. (Anthony Powell)

Você sabe que está ficando mais velho quando as velas custam mais caro que o bolo. (Bob Hope)

Envelhecer não é tão mau assim, quando se considera a alternativa. (Maurice Chevalier)

O maior perigo de ridículo para os velhos que um dia foram amáveis é esquecerem que já não o são. (La Rochefoucauld)

Terceira idade é aquela em que a gente bota os óculos para ouvir rádio. (José Simão)

Os homens ficam mais velhos, mas isso não os melhora muito. (Oscar Wilde)

Não é que eu tenha medo de morrer. Apenas não quero estar vivo quando acontecer. (Woody Allen)

Só a imortalidade não permite adiamento. (Karl Kraus)


(As ilustrações são reproduções de pinturas do artista plástico estadunidense Edward Hooper, 1882-1967)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

XICO SÁ AND THE BEATLES

Pitoresco, picaresco, fescenino, pornográfico, escatológico, barroco, hiperbólico, bagunceiro, maluco – a lista de adjetivos parece interminável quando se trata de Xico Sá, dublê de jornalista e sátiro viciado em mulher e palavrão, nascido no Ceará e radicado nas radicais raízes que decompõem São Paulo. Alguns dos epítetos, embora pareçam exagerados, servem de estímulo para que uma nova fieira de impropérios preencha o vazio da folha em branco e forneça cor aos acontecimentos ordinários (vá lá, de vez em quando, extraordinários) que se desenvolvem nas so(m)bras que enfei(t)am a urbe.

Escritor de outra têmpera, desses que temperam a vida com o sal da terra, o cearense colocou no mundo mais um livro, como que a querer se livrar das obsessões que cutucam a cachola daqueles que são capazes de virar de pernas pro ar toda e qualquer estrutura, enredo, narrativa, conto, causo, dedo de prosa, glosa do viver.

O romance Big Jato celebra, em 182 páginas, o inevitável de inflexão do homem maduro que olha para trás e vê como foram árduos os rituais de passagem, a história do menino que precisa deixar de ser menino diante de um mundo assustador.

Longe de fazer desse trauma tragédia ou ópera bufa, Xico Sá articula o confuso discurso com que gosta de confundir a plebe ignara e, entre episódios pouco ortodoxos, raras vezes conectados com a limpidez (em diversos sentidos), vai descarregando figuras de linguagem, citações literárias e musicais, ensinamentos populares, divagações cheias de graça.

Incont(rol)áveis gargalhadas acometem os leitores, comprovando que a vida conjuga uma festa interminável.

Em selvagem ordem cronológica, um acontecimento empilhado depois do outro, o ocre do sertão vai desbotando os protagonistas dessa farsa narrativa. Em 1970, entre o fenemê e seu motorista (o homem que atende pelo título de pai), o menino, fazendo companhia na boleia do caminhão, vai descobrindo as verdades e as mentiras que envolvem o existir.

Unidos pelo desacerto de limpar as fossas da cidade de Peixe de Pedra (ex-Desterro, ex-Santana de não sei quantas), provavelmente localizada no Vale do Cariri, os dois estão impregnados de merda até os últimos fios de cabelo.

Entre o ganhar o pão de cada dia e limpar a sujeira do mundo, Beatles. Mas somente fora do perímetro urbano, lugares ermos onde a antena do rádio do caminhão (para os íntimos, Big Jato) consegue captar o ritmo chicletão das músicas dos cabelim pastinha.

Foi assim que aprendi a gostar dos Beatles, sem o velho dizer nada, sem eu entender uma palavra de inglês, mas sacando tudo, um certo estado de espírito, como diz meu tio, o meu tio Nelson que tanta falta nos faz no serviço de alto-falante, com suas traduções, loas e mentiras. Um sertanejo ou um esquimó se emocionam do mesmo jeito, dizia ele, quando ouvem os rapazes de Liverpool.

Enquanto a fedentina se espalha pelo mundo, o menino vai obtendo outros entendimentos da vida: o colégio, a escola de datilografia (que o encaminhará para o reino literário), as punhetas (– Meu filho, você está entrando no maravilhoso e viciante reino da boceta – berra, inconveniente, o velho), as aulas de filosofia existencial do tio Nelson (O trabalho danifica o homem), a primeira trepada na zona, a primeira vez que olhou com interesse para uma mulher – e, como poderia ser diferente?, o primeiro pontapé do amor na bunda. Para quem lidava com merda todos os dias, um pouco mais não fez muita diferença, apesar do choro, dos esforços desesperados, do orgulho ferido e da falta de orgulho.

Foi quando o pai ficou doente que o ordenamento mudou. Outro caminhão, mais moderno, mais eficiente, invadiu a área e tomou os clientes do Big Jato. Depois de ouvir o noticiário econômico no rádio, o pai saltou da cama e, mostrando um tino empresarial inusitado, mudou de ramo comercial. Investiu o dinheiro familiar em porcos. A mãe, ao ver o marido que estava desaparecido há vários dias, não o poupou: – Por que esse miserável volta mais sujo ainda, é? É sina?

Sina, sinal, farol aberto para novas aventuras. Nada é mais inevitável do que desentendimento com o pai. Uma surra de relho de couro cru para aprender a ser homem, e o Guia Kerouac de cair na vida, o fizeram ver o horizonte.

Muitos anos depois, o menino narrador se transforma em escritor, tornando realidade a profecia do pai: Livro é para quem precisa inventar a vida que nunca teve.


TRECHO ESCOLHIDO


– "Let it be" é deixa estar, meu filho – ele aprendeu agora no rádio e se orgulha.

Até eu, leso de tudo, já sabia, papai. Minha mãe fica sem fôlego quando ele diz "let it be" e foge do bate-boca caseiro. Meu pai prefere não discutir nunca.

– Leribi de cu é rola – diz minha santa mãezinha, perdendo a paciência, embora seja incapaz de dizer um nome feio, um palavrão que seja, nunca foi disso, ainda mais agora, cada vez mais nas orações, cada vez mais do lado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nessa hora vira uma mulher mais grossa do que lixa de parede ou papel de embrulhar prego. Ela doida por um bom embate, para consertar as coisas da vida, e o meu pai "let it be", ela na maior paz e o meu pai "a felicidade é um revólver quente".


terça-feira, 4 de dezembro de 2012

UM DIA PERFEITO PARA CASAR

As melhores histórias de amor estão repletas de desencontros, escolhas infelizes e tristezas. Nenhuma novidade. O clube dos corações partidos possui sócios nos quatro cantos do planeta. Além disso, sem drama não há trama − dizem aqueles que exploram as dores alheias.

A literatura e o cinema são duas das formas artísticas que deitam e rolam nesse mar de paixões − onde nem sempre é possível pescar peixões (ou trocadilhos de melhor qualidade).

Baseado no romance Cheerful Wheather for the Wedding, escrito por Julia Strachey, o filme Um Dia Perfeito para Casar (Dir. Donald Rice, 2012) alcança esse propósito com razoável competência. Com vantagem considerável sobre filmes similares. Diálogos afiados, dezenas de chistes, quilos de ironia, o humor britânico aflorando a cada cena – cada piada com a mesma competência e intensidade com que carrascos medievais cortavam cabeças.

Em dezembro de 1932, Dolly Thatcham, depois de viagem à Albânia e rápido noivado, vai se casar com Owen Arthur Bigham. As duas famílias e os amigos do casal estão reunidos na mansão de campo, em Devon. Entre os convidados, a irmã (Kitty), a melhor amiga (Evelyn), uma das tias (Belle), o cônego Bob, os tios David e Nancy Dakin (e o filho, Jimmy, de oito anos), a mãe, (a viúva Hettie), os primos Robert e Tom, e os irmãos gêmeos do noivo. Todos, de uma forma ou de outra, contribuem para que o circo pegue fogo.

Estamos aqui há dez minutos e já quero estrangular um membro da sua família, diz Nancy para David, e, depois de uma pausa, finaliza o golpe, O de costume. É apenas a antecipação do aforismo que emitirá um pouco mais tarde, Se quer uma razão para não se casar, vá a um casamento de família.

Joseph Patten, que foi amigo e, digamos, namorado de Dolly, também comparece à festa. Se for verdade que Meu próprio objetivo ainda é ser um cavalheiro inglês de mãos limpas e mente suja, também é verdade que ele não sabe exatamente porque foi até lá. Não está em seus planos atrapalhar o casamento. Quer falar com a noiva, dizer alguma coisa que nem ele mesmo sabe o que é. Objetivo que não se concretiza. Como se estivessem em um jogo de esconde−esconde, eles sempre estão em lugares diferentes. A câmera só os mostra juntos na ação pretérita. São os flash−backs que preenchem os hiatos, que fornecem os elementos faltantes para o entendimento.

Joseph gosta de cutucar na colmeia de vespas e correr para se esconder. Então, é claro, as vespas saem e mordem pessoas inocentes, diz Dolly, de certa forma explicando a si mesma. Foi em um jogo de cricket que se conheceram. Depois foram seis meses de companhia mútua, a presença de um complementando a existência do outro. Houve o baile e todos aqueles pequenos incidentes no piquenique. Na tarde que ele foi se despedir, pois estava partindo para a Grécia, ela o levou suavemente até a estufa de plantas e...

David e Nancy estabelecem parte das regras, antes que o mundo venha abaixo:

Apenas sorria para Hettie de meia em meia hora. É tudo o que peço.
Agora ficou preocupado com os sentimentos dela?
Eu gosto de Hettie.
Gostar. A palavra que usamos para aqueles que não conseguimos amar.

Depois do casamento, depois que a festa terminou e os noivos foram embora, depois que os primos e os convidados estão completamente bêbados e a tarde está findando, ainda há espaço para que a luz penetre na sala e preencha as últimas lacunas. O sofrimento silencioso desaparece, sobram acusações.

O tempo e a maré não esperam por ninguém, revela Joseph. Como sempre acontece, seja no cinema, seja na vida "real", todas as histórias de amor terminam mal.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

INSÔNIA


Quase quatro horas da manhã, os olhos abertos para a escuridão que habita o apartamento, precisei perguntar para mim mesmo se algum parafuso não estava fora do lugar. Uma de minhas três avós costumava usar a expressão parafuso fora do lugar para explicar certas besteiras, aquelas que continuamente nos atormentam nas horas mais inesperadas. Suspeito que, em outra encarnação, apesar da restrição ao poder feminino na Grécia, minha avó foi filósofa em Atenas ou em Corinto. Provavelmente brilhou ao lado daqueles monumentos que os ingleses roubaram (alguns séculos depois), para, agora, cobrar ingresso de quem os quiser ver no British Museum.

Perdi o sono. Algumas noites são insuportáveis. Entre os lençóis empapados de suor e a luz do sol que ainda iria demorar algumas horas, faltou leveza, faltou delicadeza. Sobraram longas e nostálgicas agulhadas na carne. Momentos que relampejam durante um ou dois segundos e, depois, como se fossem fogos de artifício, desaparecem nessas camadas de pó que o existir costuma denominar de esquecimento. Sempre tive dificuldades em olhar para trás. Poucas vezes quis ver os escombros que me perseguem. Falta gosto para flertar com as estátuas de sal. Culpa da educação católica, que deixou traumas profundos. Na infância, rezar o terço todos os dias, no final da tarde, nunca foi a minha diversão favorita. O calendário com a estampa do sangrento sagrado coração de Jesus, pregado na parede, a nos olhar com os olhos da paixão, não era fácil de ignorar. O pecado, ah, o pecado!

Quando tinha seis anos de idade, em 1965, meu pai me levou em uma viagem até o litoral de São Paulo. Lembro pouco daquilo tudo. Lembro muito daquele nada. Fomos de caminhão até Curitiba. Não tenho certeza. Saímos de madrugada, o dia não tinha nascido. Logo em seguida ao embarque na boleia do caminhão fui tomado pelo sono incontrolável. Não houve qualquer coisa significativa naquela manhã. No máximo, uma névoa, uma ilusão, um sonho − daqueles que deixam marcas, palpites para jogar no bicho. Trocamos de condução. Várias vezes. Ônibus, trem, carroça, cavalo, centenas de quilômetros sendo engolidos aos poucos, hotéis de beira de estrada, suco de laranja e pão com manteiga no café da manhã, almoços em lugares estranhos, saudades da comida da mãe.

Nossa viagem não foi feita nas condições ideais. E dai? Éramos dois aventureiros, homens sem medo, dispostos a superar obstáculos, o tempo ruim, a natureza indomável. Éramos os mocinhos de um daqueles filmes de faroeste que passavam na matinê do Cine Tamoio, nas tardes de domingo.

Iguape. Bom Jesus de Iguape. Foi lá o nosso destino. Minha mãe, em momento de desespero, alguma doença, não sei bem o quê, fez uma promessa para o santo. Coube ao pai carregar o filho até o santuário. Fomos cumprir com o dever cristão. Missa, visita à sala de ex−votos, caminhar pelas ruas da cidade. Pode parecer estranho, talvez seja lapso de memória, difícil conjugar todos os detalhes, não me lembro de nenhum soldado nas ruas, não me lembro de homens armados zelando pelo futuro da nação. Demorou alguns anos para que eu percebesse que aqueles eram tempos de violência política. O que lembro, com certa riqueza de detalhes, é que ao lado da igreja tinha um filete d’água, onde quis tomar banho. Antes que tivesse tempo de tirar a roupa, a mão pesada do pai deixou marcas no meu braço. Foi com calças arregaçadas, pequena picareta na mão, que arrebentamos alguns pedaços da rocha sagrada. Essas pedrinhas, mergulhadas dentro de garrafas, transformaram a água benta em líquido milagroso, curava diversas doenças, todo mundo queria beber um pouco.

Quando voltamos para casa, quase uma semana depois da partida, contei as novidades para minha mãe e para os meus irmãos. Disse que ele sempre esteve por perto, foi meu guardião o tempo todo. Muitas vezes me mandava ficar quieto, outras vezes me mandava me apressar, o ônibus não iria esperar por um menino que estava sempre atrasado. Dizia não faça isso, não faça aquilo. Olhava, divertindo−se, a minha curiosidade pelo mundo, as tentativas de ler as placas da rua. O cigarro, Continental sem filtro, nos lábios. Um aceso na guimba do outro. Copos de cerveja sendo esvaziados rapidamente. O olhar perdido em miragens que não estavam ao meu alcance.

Nunca mais viajamos juntos. Exceto em pequenos encontros familiares, nunca mais estivemos tão próximos. Seis anos depois dessa viagem, houve outra situação crítica. Minha mãe pegou meus irmãos pela mão e foi embora. Antes, ela perguntou o que eu queria. Disse−lhe que queria ficar. Tinha minhas razões. Ela aceitou deixar para trás a casa, o marido, o cachorro, o gato e o filho mais velho. Ele não percebeu a extensão de minha escolha.

Foi uma noite tumultuada, gritos e acusações sem fim. Na manhã seguinte, nós dois tínhamos os olhos inchados de tanto chorar. Havia pastéis de carne no café da manhã. E silêncio. Histórias familiares são semelhantes a alguma espécie rara de câncer − desses que se espalham rapidamente, causando danos irreversíveis.

Nos últimos dez anos de vida de meu pai, conversamos o mínimo possível. Faltava assunto, sobrava desconforto. Éramos estranhos. Faz mais de vinte anos que ele morreu. Estava sozinho. Cama de hospital. Nem mesmo a morfina diminuiu suas dores.

Não gosto de passear por essa estrada. Sempre há o perigo de não conseguir escapar dos abismos emocionais. 

Para tentar fugir, liguei a televisão. Estava passando um filme antigo, desses que a gente vê várias vezes ao longo do tempo, Nosso Tipo de Mulher (She's the One. Dir. Edward Burns, 1996), um drama leve, historia de família. Dois irmãos e um pai perdidos entre desencontros amorosos, inconsequências urbanas, competição fraterna, mulheres que não usam sutiã e outras ameaças menores.

Como a vida não poupa lições, Nosso Tipo de Mulher parece dizer que a masculinidade não está expressa em um conjunto limitado de ações (namorar, pescar, beber, fumar). Para ser homem, há que avançar um pouco mais, procurar resposta para os tormentos pessoais em outra esfera. Afeto, carinho, coragem – sei lá, romper os muros que construímos ao redor de nós mesmos.

O pai (interpretado por John Mahoney) é o elo de ligação entre os personagens do filme. Queria um pouco daquela amabilidade rústica que ele dedica aos dois filhos.

Junto com a sessão cinematográfica inesperada, as lembranças escorregaram – outra vez – para dentro da minha vida. Foi uma inundação.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

DOSTOIÉVSKI, O CARRASCO E OS HORRORES DO CÁRCERE

Li no Diário Catarinense e na Folha de São Paulo que a Vara Criminal de Joaçaba (meio−oeste de Santa Catarina), usando do que faculta a Lei de Execuções Penais, iniciou um projeto de leitura entre os apenados daquela Comarca.

Em princípio, uma iniciativa louvável. Se considerarmos que, de acordo com o Instituto Pró−Livro, a média de leitura dos brasileiros está em ridículos quatro livros por ano, qualquer projeto que incentive a leitura representa um passo na direção de uma melhor condição intelectual.

A adesão, por parte dos prisioneiros, é voluntária e promete, a cada livro lido, a remição de quatro dias no tempo de cárcere. Em contrapartida, o preso deve demonstrar que entendeu o texto que lhe foi entregue. Ou seja, trinta dias depois, para obter as vantagens da reinserção social, deverá apresentar uma resenha − que será corrigida por uma banca.

Um dos responsáveis pelo projeto, discípulo confesso de Olavo de Carvalho (que considera o maior pensador brasileiro vivo e em atividade, segundo o Diário Catarinense), defende que O projeto (...) visa a reeducação dos apenados pela leitura de obras que apresentam experiências humanas sobre a responsabilidade pessoal, a percepção da imortalidade da alma, a superação das situações difíceis pela busca de um sentido na vida, os valores morais e religiosos tradicionais e a redenção pelo arrependimento sincero e pela melhoria progressiva da personalidade, o que a educação pela leitura dos clássicos fomenta.


Eu (embora ninguém tenha me perguntado) considero Jose Arthur Giannotti, Antonio Candido de Mello e Souza, Marilena Chaui, Olgária Chain Féres Matos, Luiz Costa Lima, Sérgio Paulo Rouanet, Maria Rita Kehl, Roberto Schwarz, Michel Löwy e o Renato Janine Ribeiro (não nessa ordem) os maiores pensadores vivos e em atividade no Brasil. Devo estar na contramão.

Influenciado por esse arcabouço teórico, ao ler sobre o discurso humanitário que escora o projeto, tive algumas dúvidas sobre os resultados possíveis do empreendimento. Provavelmente nada que mereça alguma atenção.

O primeiro módulo do projeto de Joaçaba consiste em um exemplar de Crime e Castigo, romance de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, escrito em 1866. Acompanha um dicionário de bolso.

Por que escolher um texto tão pesado, tão moralista, como Crime e Castigo, para iniciar esse, digamos, mergulho nos clássicos mundiais?

A resposta talvez esteja no discurso que foi feito diante dos moradores temporários da enxovia (ainda segundo o Diário Catarinense): não vou subestimar a capacidades de vocês, não vou sugerir que leiam best−sellers, autoajuda, subliteratura ou outras inutilidades. Ao contrário! Todo ser humano, por mais difícil que seja sua situação ou por mais precária que tenha sido sua educação, tem condições de ler grandes obras com proveito. E é isso que torna essas obras eternas: o quanto elas falam da experiência concreta, da alma humana.

Impressionante defesa de um conjunto de ideias que, provavelmente, fariam sucesso na Idade Média. O princípio da autoridade (que delira com a possibilidade de distinguir entre o que é bom e o que é ruim, que sonha ter sido ungido pela obrigação ética de salvar do descaminho os menos favorecidos) costuma impor a bondade em situações onde a correlação de forças não é equivalente. Que insensato morador da Casa dos Mortos fará alguma objeção, diante de guardas armados?

Como a analise literária não se assemelha a um exercício matemático, dois mais dois são quatro, fiquei imaginando qual será a atitude dos responsáveis pelo projeto diante do desafio intelectual. Será que recomendarão um acréscimo no tempo de reclusão para quem responder que Rodion Romanovitch Raskolnikov, Rodka para a família (assim como aquele menino do filme Ken Park [Dir. Larry Clark, 2002], antes de ter matado os avós), gozou no momento em que assassinou Alíona Ivanova, a velha usurária? Será esse argumento uma comprovação de que O Idiota não é um personagem ficcional? Será que desconsiderarão a tese de que a segunda morte, Lisavieta, ocorreu por legítima defesa? E se o, digamos,  "hóspede do Estado" escrever na sua redação, resenha, comentário, que o juiz de instrução, Porfiri Pietrovitch, não passa de um falso moralista, obcecado com uma ficção que construiu mentalmente? O que acontecerá?

No inicio do filme Match Point (Dir. Woody Allen, 2005), Chris Wilton, o personagem interpretado por Jonathan Rhys Meyers, está lendo Crime e Castigo. Enquanto escuta ópera, prepara o golpe do baú. Como os desvios da razão são mais atraentes do que a realidade prática, Chris se envolve - paralelamente - em uma história passional inadequada. Ao descobrir que a amante está grávida, imagina que não lhe resta outra alternativa senão o assassinato. Cabe à sorte decidir, assim como uma bola que esbarra na rede do jogo de tênis, se sofrerá punição criminal ou a lenta tortura advinda da culpa.

Independente da capacidade intelectual dos encarcerados em Joaçaba, o que precisa ser dito é que poucos conseguirão entender o dilema que acomete Raskolnikov - e Chris Wilton (se for permitido aos residentes do calabouço ver o filme de Woody Allen). A verdade é que nem mesmo nos melhores cursos de pós−graduação do Brasil isso se concretiza. Para uns falta percepção para atingir determinados estágios intelectuais. Para outros, falta educação, saúde, condições de trabalho. O Brasil é um país injusto e continuará assim porque algumas pessoas mais instruídas, talvez com saudades do muro perverso que institui a Casa Grande & Senzala, não abrem mão de tutelar a vida alheia. Esse mesmo muro divide a vida social em mocinhos e bandidos, doutores e ignorantes.

Apesar do avanço das seitas evangélicas nos ergástulos brasileiros, poucas coisas são tão patéticas quanto a ingenuidade religiosa que resulta do acreditar que a culpa é o principal caminho para a expiação dos pecados.

Espero estar errado, mas o projeto Reeducação do Imaginário provavelmente não obterá índices significativos. Ao iniciar com um livro difícil, denso, que exige explicitamente a submissão social do participante, o projeto está acenando, simultaneamente, para o discurso excludente e preconceituoso. Aceitar a culpa de Raskolnikov implica em aceitar que a Justiça (seja o que isso for) sempre alcança os infratores da ordem. Nesse tipo de iniciativa não há lugar para qualquer discussão sobre o certo e o errado. Somente as respostas esperadas são as adequadas, somente a moralidade cristã do arrependimento e da culpa está correta.

Em alguns momentos acontecerá um curto-circuito, algo não planejado. Algumas respostas nos questionários pré-estabelecidos pelas certezas destoarão. Então será a hora de surgirem, de onde estão escondidos agora, aqueles que - como se fossem profetas do apocalipse - dirão que os bandidos tiveram uma chance e não aproveitaram.

Os carrascos, independente do tempo e da situação, sempre pregam a superioridade moral.

Se os autores do projeto de leitura tivessem lido O Prazer do Texto (Roland Barthes) ou Uma História da Leitura (Alberto Manguel), provavelmente deixariam de lado o discurso da elevação intelectual (não vou sugerir que leiam best−sellers, autoajuda, subliteratura ou outras inutilidades. Ao contrário!) e se preocupariam com a alfabetização literária, com a fruição gozosa do texto, com a alegria que emana das palavras escritas nas páginas dos livros.

Ler deve ser sinônimo de prazer, jamais de condenação ao degredo físico e cultural.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

BEL AMI, O FILME, E ALGUMAS QUESTÕES MENORES DA POLÍTICA

Enquanto a vida segue em compasso de espera, sem saber o que fazer no período intermediário entre eleições e a posse (e  a pose) do seigneur du chateau, assistir versões cinematográficas de alguns clássicos literários quase que equivale a um mestrado em ciência política.

Nestes tempos a−pós−o−moderno, onde ler se transformou em uma atividade exercida por pobres sonhadores (como diz um dos personagens de 360, o último ato entreguista do cineasta e ex−comunista Fernando Meirelles), ninguém quer perder mais do que uma hora e meia, duas horas, com qualquer atividade que lembre, minimamente, a cultura. Além disso, a estrutura narrativa óbvia do cinema (com inicio, meio e fim − nessa ordem, salvo raríssimas exceções) não exige do expectador um grau intelectual mínimo.

Dito de outra forma: as ruas estão repletas de indivíduos que não conseguem encontrar o óbvio, apesar de tropeçarem nele a todo instante.

Os espectadores que se julgam mais avançados (ou mais inteligentes) deveriam ver (ou rever) O Leopardo (Dir. Luchino Visconti, 1963), adaptação do romance de Giuseppe Tomazi di Lampedusa. A emblemática história de Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, ainda causa espanto em quem possui sensibilidade para se espantar. Durante o Risorgimento italiano, debilitado pela idade, indeciso entre aderir ou combater as mudanças políticas que estão ocorrendo na península, o Príncipe (como compete a um bom governante) está preocupado em impedir que o seu país seja invadido por um dos exércitos em luta. A solução surge da boca de seu sobrinho, Tancredi, que adverte, Se nós não estivermos lá, eles fazem uma República. Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. A monarquia de Vitor Emanuel II, da casa de Sabóia, ganha um novo aliado – não há nada mais gratificante (ou lucrativo) do que estar ao lado dos vencedores.

Grupos intermediários podem se contentar com um filme mais recente, O Americano Tranquilo (Dir. Philip Noyce, 2002), baseado na narrativa homônima de Graham Greene. A lição mais óbvia, A inocência é uma forma de loucura, aciona o sinal de perigo para determinadas situações, apesar das "boas intenções" que as revestem. Interesses escusos são difíceis de serem detectados, principalmente quando a solução mais sensata é olhar para o lado oposto. No jogo de cartas marcadas em que a má−fé têm preferência, aceitar o aparente implica em ser corrompido pela inércia. A ingenuidade se mostra mais nociva do que a canalhice.

Os aprendizes do arrivismo devem ver Bel Ami (Dir. Declan Donnellan e Nick Ormerod, 2012), adaptação do romance de Guy de Maupassant, e recentemente lançado em DVD. O enredo, atualíssimo, embora esteja centrado na década de 90 do século XIX, tem como protagonista Georges Duroy, um ex−soldado semianalfabeto que espera ganhar algum dinheiro em Paris. O "único" obstáculo para fornecer alguma densidade ao sonho está na completa incompetência para qualquer trabalho que não seja frequentar bordeis ou ficar bêbado. Em seu favor, o rosto bonito e a absoluta falta de caráter. De forma meteórica, a ascensão social ocorre quando Bel Ami (belo amigo), usando da sedução como arma de combate, mergulha em todas as camas que estão ao seu alcance. Enquanto distribui orgasmos às esposas frustradas pelo abandono marital e recheia a carteira com centenas de milhares de francos, a história política de França vai sendo relatada (de maneira oblíqua, de passagem). Em uma narrativa edulcorada pela essência do romantismo, mas de estrutura realista, a carne apodrece a todo instante. A mediocridade assume o poder.

No horror capitalista em que vivemos (também chamado eufemisticamente de neoliberalismo econômico), estudar Política (com "P" maiúsculo) não constitui uma atitude sensata. No entanto, impede que fariseus e idealistas, bárbaros e iluministas, girondinos e jacobinos sejam confundidos.

Uma das tentativas de salvação intelectual está em não desprezar esse tipo de ensinamento.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

1922 – A SEMANA QUE NÃO TERMINOU

Alguns dos principais momentos, movimentos, autores, livros e projetos culturais que integram a diversão cultural que − durante muitos anos − importamos das’oropas constituem o cerne de toda a literatura produzida durante a colonização, o Império e a República (incluindo nesse balaio de gatos inúmeros tropeços e trapaças, espelhados na evolução ou involução de todos ismos que edulcoram o entreguismo social, político e econômico que viceja na Idolatrada Salva Salve).

Barroco, arcadismo, romantismo, realismo − naturalismo, parnasianismo, simbolismo – são muitos os pseudônimos literários dos grupelhos artísticos e poucas as saídas para os incontáveis curto−circuitos que costumam acenar alegremente para os trouxas, nas esquinas da vida. Centenas de biografias e autobiografias, muitas vezes ficcionais, de algumas das personagens mais significativas da história cultural brasileira contribuíram para adensar a farsa.

Em contrapartida, pilhas de ensaios acadêmicos − massudos e maçantes – procuram lançar luzes sobre o esclarecimento (ou será sobre o escarnecimento?). Em flagrante contradição, esse conjunto de ensaios ajuda a multiplicar a ininteligibilidade através do uso indiscriminado do jargão hermético que caracteriza os cursos de pós−graduação. Infelizmente, esse expediente afasta o leitor interessado no assunto, pois impede acesso a algum tipo de escada que lhe permita alcançar tamanha iluminação intelectual. As estantes das livrarias estão repletas desses maravilhosos encalhes.

Talvez esse desencontro encontre uma alternativa nos estudos independentes da vida parasitária, perdão, universitária. Sem estar atrelado à camisa de força do carreirismo profissional (potencializado pelo currículo Lattes), esse tipo de texto pode apresentar teses e questionamentos de forma menos sisuda e mais coloquial. Misturando causos, anedotas, fofocas e o inquestionável flerte com a crônica, tornam mais acessível ao público o fluxo de informações.

O livro 1922 – A Semana que Não Terminou, escrito pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves, constitui um exemplo bastante significativo dessa proposta. Sem se preocupar com os esquemas pedagógicos das escolas literárias, sem ter medo de estabelecer um significativo panorama dos fatos que culminaram em três dias de muita pandega e pouca seriedade, sem se incomodar em dividir seu livro em pequenos capítulos, o autor não se deixou levar pelos ventos publicitários e sintetizou o cenário da seguinte maneira: Na realidade, com uma ou outra exceção, mal havia escolhas estéticas radicais das quais abrir mão. Naquele momento, estava tudo a meio caminho, em nosso modernismo plantation. O velho tardava em se retirar e o novo ainda não reunia energias para se impor.

Em lugar de se deter no mecenato de Paulo Prado, no caso Anita Malfatti x Monteiro Lobato, na verve extravagante de Menotti del Picchia, no uso inescrupuloso da fama de Graça Aranha, nos conflitos musicais entre Guiomar Novaes e Heitor Villa−Lobos, no talento artístico de Victor Brecheret ou nos contrastes entre os meninões burgueses (Oswald de Andrade e Mário de Andrade, na definição certeira de Emiliano Di Cavalcanti), o autor de 1922 – A Semana que Não Terminou escolheu transitar por outro caminho.

Ao contrário de outros livros sobre o tema, que instilam mitos ideológicos em favor de interesses escusos, Marcos Augusto Gonçalves elaborou um amplo (e divertido) painel histórico do passadismo literário que antecedeu ao modernismo futurista. Sem escrúpulos de intelectual politicamente correto, deduziu – escorado em farta bibliografia − que muitos dos acontecimentos daqueles três dias de fevereiro foram conseqüências do Reuniram−se, resolveram fazer e foram fazendo (conforme declaração do artista gráfico Antonio Paim Vieira).

A Semana de Arte Moderna – imitando algumas idéias que, naquele momento, tinha deixado de ser modernas na Europa – em parte foi fruto do improviso. Em parte foi trapalhada. Depois da relativa simpatia que causou nos espectadores da primeira noite, com direito a aplausos de variada intensidade, a folia deixou no ar a possibilidade (para muitos de seus integrantes) absurda de ser considerada um grande sucesso. Não há duvidas que a Semana havia sido concebida pelos seus idealizadores para causar furor, marcar uma data, gerar atritos e instaurar−se como marco simbólico de uma transformação, escreve Marcos Augusto Gonçalves. Sem reações de desagrado, sem polêmica e sem vaias, o plano corria o risco de naufragar, acrescenta.

Como há solução para tudo, alguns amigos do movimento foram convocados (provavelmente por Oswald) para resolver o impasse. A vanguardinha do barulho cumpriu com a missão que lhe fora designada. Ou seja, vaiou com força e vontade. E os jornais, para alegria geral, noticiaram a ação dos malcriados.

Trocando em miúdos, a Semana de Arte Moderna foi uma festa. Tanto que resultou em prejuízo financeiro. Questão menor, deve ter pensado Paulo Prado, cafeicultor podre de rico que, ao lado de Olívia Guedes Penteado, encabeçou uma lista de subscrições para cobrir as despesas (o aluguel do Teatro Municipal custou 847 mil-réis).

Foi assim, em ritmo de patuscada juvenil, que o modernismo plantou as suas primeiras sementes em solo brazuca. Nasceu uma arvore frondosa, onde alguns espertinhos ainda hoje se lambuzam com doces frutos.

Um resumo da brincadeira está expresso em carta que Mário de Andrade (com ironia e potencial profético) escreveu para Menotti del Picchia, Conseguimos enfim o que desejávamos: celebridade. (...) Somos todos pseudo−futuristas, uns casos teratológicos. Somos burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar a celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da Semana de Arte Moderna e... (...) Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão lidíssimo! Insultadíssimos, celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.

De qualquer forma, parte do objetivo da Semana de Arte Moderna era responder a um dos itens sugeridos, vários anos depois, no Manifesto Antropofágico: Tupi or not tupi, that is the question. Como essa é outra historia, e talvez o tema para outro livro, cabe recomendar, a quem interessar possa, os próximos capítulos da novela que está sendo escrita (e reescrita) pela historiografia literária brasileira.

O jornalista Mascos Augusto Gonçalves, autor de 1922 – A Semana que Não Terminou.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

AS RAÍZES QUE INVADIRAM A CASA

(...) tempo bom mesmo era o outro!, diz Teodoro Jurema, confirmando a idéia de que o passado cultiva o estranho hábito de assombrar o presente – reabrindo feridas, recordando horrores, refazendo histórias que deveriam ter sido soterradas pela areia que escorre pelo interstício que separa as duas metades da ampulheta.

O romance As Raízes que Invadiram a Casa, de Vernaide Wanderley, embora não obedeça ao ordenamento narrativo ortodoxo (desses que possuem começo, meio e fim − nessa ordem) está centralizado em uma espécie de acerto de contas. Assim como o vinho de qualidade − que repousa em tonel de carvalho durante alguns anos para poder apurar o sabor e a densidade −, a obsessão sexual costuma embriagar as relações amorosas.

Contar a história do amor unilateral de uma adolescente por um homem mais velho não constitui enredo inovador - talvez seja tema suficiente apenas para conto ou novela pouco extensa. Exceto se quem o maneja possui competência para extrair leite de pedra. Esse parece ser o caso de Vernaide Wanderley que, para fornecer dinamismo e coerência narrativa ao seu texto, se valeu de alguns artifícios criativos. Primeiro, repartiu a narrativa em diversos capítulos. Segundo, instituiu um narrador diferente (com voz marcadamente diferenciada) para cada um deles. Terceiro, misturou os tempos narrativos de forma com que o presente somente se completa como continuidade das histórias inconclusas que o passado traz à tona.

Na medida em que reapresenta alguns fatos − sob diferentes olhares e entendimentos −, a estrutura polifônica vai se desenvolvendo como se fosse elemento natural, como se a narrativa não pudesse ser contada de outra maneira. Cada capítulo, e seu respectivo narrador, acrescenta uma nova camada de entendimento aos elementos que vão sendo acrescidos lentamente ao desenvolvimento narrativo.

Não há segredos a serem revelados. Não há suspense para distrair a atenção do leitor. Desde as primeiras páginas, está claro qual será o andamento narrativo. Julia, na adolescência, se apaixona por Teodoro, um empregado de seu pai. Infelizmente, precisa deixar a vida familiar antes que algo se resolva. São vinte anos de separação física e afetiva. Ao retornar para a casa onde viveu na adolescência, ela descobre (ou deixa aflorar) que o sentimento ainda a atormenta. E que, junto com a paixão, há a necessidade física de satisfazer o desejo. O corpo reclama pelo outro corpo.

O jogo de sedução vai estendendo a teia – até que a presa fique imobilizada, enredada na armadilha. Teodoro, agora viúvo, por motivos médicos, precisa ir para a "cidade grande". Júlia aluga uma casa e o acolhe. Com a desculpa de ajudar o doente, acaba por ministrar o remédio adequado para apaziguar a própria "doença". Depois de conquistar o homem, oferecendo exatamente o que costuma agradar aos homens, Júlia acalma o vulcão que estava em erupção dentro de seu corpo. Além disso, amplia o desejo com um fetiche: muitas vezes, antes de ir para a cama, exige que Teodoro se vista de vaqueiro (gibão, rebenque, chapéu, botas e esporas).

A unilateralidade do erotismo muitas vezes contribui para destruir a volúpia sexual do casal. Aquele que precisa satisfazer a fantasia do Outro poucas vezes consegue se sentir à vontade com um desejo não é o seu. Como esse tipo de impasse costuma resultar em distanciamento ou em crises geradas por fatores colaterais, Teodoro, certo dia, vai embora. Com caligrafia tosca, deixa um bilhete, onde esclarece que não quer mais continuar a brincadeira. Preza mais a liberdade do que a gaiola de ouro.

Diferente dos finais infelizes clássicos, As Raízes que Invadiram a Casa assinala para a ruptura como conseqüência da experiência humana. Ao mesmo tempo, ciente de que a protagonista preencheu o interstício emocional que a atormentou durante parte da existência, abre caminho para que possa gozar com outros desejos. Essa voz serena ecoa na frase final, para construir e reconstruir os tantos lugares de nossa história...

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

TRÊS DÚZIAS DE REFLEXÕES SOBRE O SER HUMANO

Como dizia minha avó: todo mundo se queixa de falta de memória. Ninguém se queixa de falta de caráter. (Millôr Fernandes)

Amigo é aquele que sabe tudo a seu respeito e, mesmo assim, ainda gosta de você. (Kim Hubbard)

O mapa do Brasil é um pernil de cabeça para baixo que o governo entrega em fatias aos deputados e senadores.
(Delfim Netto)

A experiência é boa conselheira, mas cobra contas escorchantes. (Minna Antrim)

Há sujeitos que vendem sua alma e vivem muito bem com a consciência que lhes resta.
(Logan Pearsall Smith)

As duas palavras mais belas em qualquer língua são "Cheque anexo". (Dorothy Parker)

A morte não é o fim. Sempre resta a briga pelo espólio. (Ambrose Bierce)

Toda vez que preencho um cargo gero dez descontentes e um ingrato. (Luís XIV)

Uma mentira pode correr meio mundo antes mesmo que a verdade consiga calçar as botas. (James Callaghan)

Existem homens de bem; homens que se dão bem; e homens que são flagrados com os bens. (Laurence J. Peters)

Quando todos pensam igual é porque ninguém está pensando. (Walter Lippman)

Não existe fórmula para o sucesso. Mas para o fracasso, há uma infalível: tentar agradar todo mundo. (Herbert Bayard Swope)

A única coisa que o capital e o trabalho têm em comum é o desejo de cortar a garganta um do outro. (Brooks Atkinson)

Não há cretinice que já não tenha sido escrita por um filosofo. (Cícero)

Negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados. (Barão de Itararé)

Não se pode esperar que um garoto seja depravado antes de entrar para um bom colégio. (Saki)

As pessoas não só aceitam a violência quando perpetrada pela autoridade legítima, como aceitam como legítima a violência cometida contra certas espécies de pessoas, não importa quem a cometa. (Edgar Z. Friedenberg)

A única paz sólida e duradoura entre um homem e uma mulher é, sem dúvida, uma separação. (Lord Chesterfield)

O tiro que mata o criminoso não mata o crime. Na forca só se pendura um cadáver. (Otto Lara Resende)

Toda espécie de dependência é ruim. Não importa que o narcótico seja o álcool, a morfina ou o idealismo. (Carl Gustav Jung)

Nenhum homem está isento de dizer asneiras. O problema é quando essas asneiras são ditas a sério. (Montaigne)

Há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão. (Alexandre Dumas, père)

Deus, dá−me a castidade – mas não agora. (Santo Agostinho)

Lavar a honra com sangue suja a roupa toda. (Stanislaw Ponte Preta)

Há pessoas que retiram com prazer aquilo que acabaram de dizer, como quem retira uma espada do ventre do adversário. (Jules Renard)

Os ricos podem não ir para o céu, mas os pobres já estão cumprindo pena no inferno. (Alexandre Chase)

Uma nação é uma sociedade unida por uma ilusão a respeito de seus ancestrais e um ódio comum aos vizinhos. (William Ralph Inge)

Maus modos à mesa já destruíram mais casamentos do que a infidelidade. (Colette)

Meia−idade é quando você é jovem demais para se aposentar e velho demais para arranjar outro emprego. (Laurence J. Peter)

Culpa é o preço que pagamos de bom grado para fazer o que iríamos fazer de qualquer jeito. (Isabelle Holland)

Os pais são os ossos com que os filhos afiam os dentes. (Peter Ustinov)

As tragédias alheias são sempre de uma desesperadora banalidade. (Oscar Wilde)

Pedir desculpas é assentar terreno para futuras ofensas. (Ambrose Bierce)

Nunca confio em produto local. Sempre que viajo levo meu uísque e minha mulher. (Fernando Sabino)

Quando um homem se interessa pelo corpo de uma mulher, ela o acusa de só se interessar pelo corpo dela. Mas, quando ele não se interessa pelo corpo dela, ela o acusa de só se interessar pelo corpo de outras mulheres. (P. J. O’Rourke)

A história é um pesadelo do qual estamos tentando acordar. (James Joyce)


(Reproduções de pinturas de Joseph Fernand Henri Léger, 1881-1955)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

DESCONCERTANTE

A audição pública anual da Orquestra Sinfônica de Lages, que ocorreu na noite de sábado, dia 10 de novembro, confirmou a velha receita para o sucesso: convidar meia dúzia de parentes (principalmente aqueles que não entendem de música), multiplicar esse número por algumas centenas, lotar o teatro e inflar o ego com aplausos protocolares (algumas vezes, como compete à lageanidade, fora de hora).

A Orquestra Sinfônica de Lages continua descompassada. A programação do concerto de 2012 reflete um amontoado de músicas aleatórias, embora este ano – se considerarmos o evento anterior – mostre uma significativa evolução. O lixo popularesco diminuiu. Não o suficiente para banir totalmente as músicas de filmes e os temas fáceis.

Na ausência de orquestração para o tema da novela das nove, vários arranjos majestosos, típicos de quem ambiciona encobrir deficiências instrumentais, tentaram torturar o público. Em alguns momentos, (Sanctus, de Gounod, por exemplo), as pobres criancinhas que foram arrastadas para aquela tortura por pais insensíveis não agüentaram a pressão e abriram o berreiro. O choro dos infantes, acompanhado do som produzido por alguns celulares, se mostrou mais afinado do que o barulho produzido no palco.

A noite iniciou com um grupo chamado Catarinense Cello Ensemble. Tocaram seis peças – que, somadas, não ultrapassaram quinze minutos. Esse minimalismo temporal, difícil de ser entendido, incluiu picotar uma sinfonia de Mahler, quase destruir uma das composições de Astor Piazzola e provocar bocejos com o risível e tolo James Bond Theme.

Superado esse suplício, somente os ingênuos acreditaram que alguma coisa mudaria com a presença de toda a Orquestra em cena. O arranjo de Conquest of Paradise, talvez ligeiramente diferente do apresentado no ano passado, serviu para acordar quem estava ficando entediado. De qualquer forma, continuou igualmente ruim, exceto para tentar fingir que a reunião de todos os instrumentistas em cena resulta em algo que lembra – mesmo que vagamente − música.

Depois de várias peças sacras, todas muito chatas − mas que não podem ser evitadas, porque a Orquestra está ligada a um grupo religioso −, muitos expectadores pensaram em se levantar e ir embora. Quem não rompeu a inércia se arrependeu no ato. Não foi fácil suportar o arranjo arrastado da valsa Danúbio Azul, de Johann Sebastian Strauss. Um pouco mais (muito mais!) de vivacidade não faria mal.

Compreensivelmente, a peça seguinte não se caracteriza por brilhantismo, grau trezentos de dificuldade, como Jesus, Alegria dos Homens (Johann Sebastian Bach). O regente optou por uma dessas tolices regionalistas, popularizadas em anúncios de sorvete ou em cantorias familiares ao redor de algum garrafão de vinho. O diferencial desse momento italianíssimo esteve sob a responsabilidade do barítono Samuel Vargas, uma voz com boa extensão, que arrancou alguns aplausos depois de executar, literalmente, O Sole Mio. Como esse tipo de canção se adapta melhor à voz dos tenores, o desastre não demorou a acontecer. Na segunda vez que subiu ao palco, cantando Con Te Partirò, Samuel derrapou. Acontece. Principalmente em Orquestras provincianas.

Típico final com anticlímax, o desfecho da noite ocorreu com um trecho chocho de Puccini, que não conseguiu entusiasmar o público.

Acabou? − perguntaram algumas pessoas, depois dos últimos acordes. Felizmente − responderam outras, confirmando que o concerto continua sem conserto.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

DEUS DA CARNIFICINA, O FILME

Teatro é teatro, cinema é cinema. Apesar do caráter simplório desse esclarecimento, ele se faz necessário quando o objeto de análise transita entre as duas formas artísticas. Também convém não esquecer que, durante algum tempo, o cinema flertou com a hibridez do teatro filmado – que desapareceu logo depois que o realismo assumiu o proscênio artístico.

O filme Deus da Carnificina (Carnage. Dir. Roman Polanski, 2011), baseado na peça de teatro escrita por Yasmina Reza, caracteriza um interessante curto−circuito. O texto dramatúrgico, transposto para a tela grande, se parece com diversas coisas − exceto cinema. Essa é a sua principal característica – simultaneamente, o seu principal defeito. A verossimilhança que o espectador imagina ser possível em determinado tipo de cinema não se apresenta neste caso. Falta algo. Ou sobra. E isso o filme não consegue superar.

Diante das imagens, do caráter inegavelmente artificial das imagens, quando a quarta parede do teatro não se apresenta, quando as cenas ficam restritas ao espaço físico limitado do apartamento e do corredor do prédio, o festival de horrores protagonizado pelos dois casais em cena não se sustenta. Parte da culpa desse problema está no inequívoco descompasso entre o que está sendo projetado na tela e os diálogos cortantes, que estão entrelaçados com o nonsense. Enquanto o discurso dos atores se deslocada em uma direção, a geografia cênica está centralizada em outro espetáculo.

O motivo do encontro de Alan (Christoph Waltz) e Nancy Cowan (Kate Winslet) com Michael (John C. Reilly) e Penelope "Penny" Longstreet (Jodie Foster) parece banal: os filhos pré−adolescentes brigaram em um parque. Infelizmente, não foi uma briga qualquer. Na única cena externa do filme, Zachary Cowan, perde a paciência e bate com um pedaço de madeira no rosto de Ethan Longstreet.

Alan Cowan, talvez em função de sua profissão (advogado corporativo), flerta com o cínico profissional. Além disso, ele está ressentido por ter que abandonar os negócios para resolver o problema criado pelo filho. Sua esposa, Nancy, trabalha com investimentos financeiros e não parece ter instinto maternal – embora entenda que o filho ultrapassou a perigosa linha que divide a civilização da barbárie.

Michael, vendedor de ferramentas, não possui instrução acadêmica ou habilidade intelectual. Suas idéias políticas se aproximam perigosamente da direita reacionária. Sua esposa, Penelope, também chamada de Penny, adora o discurso politicamente correto e divide os aborrecimentos da vida doméstica com o amor que sente pelos livros de arte.

Quando o filme inicia, os casais parecem estar cientes de que − de alguma forma – devem reparar a situação que os levou até aquele labirinto emocional. Logo se dissipa essa sensação, dando lugar ao ressentimento e ao histerismo feminino. A discussão, cada vez mais agressiva, não cessa.

Como os dois homens não gostariam de estar presentes naquele local, no apartamento dos Longstreet, cada um deles procura algum esconderijo. Alan, através do celular, continua trabalhando. Irritante, o aparelho toca a todo instante. Nancy não perde a oportunidade e alfineta o marido, dizendo aos anfitriões:

− Eu convivo com isso... dia e noite. O celular guia nossas vidas. O que acontece em outro lugar é sempre mais importante.

Michael procura abrigo na garrafa de whisky (18 anos). Como a conversa não avança, todos avançam na bebida – e isso contribui para piorar o clima. A briga dos filhos se torna uma desculpa para resolver questões pessoais ou para esclarecer tensões internas entre os casais. Nessa bagunça, dois momentos críticos. Ambos protagonizados por Nancy. Primeiro, ela sente algum tipo de mal−estar (talvez causado por uma torta servida antes pelos anfitriões). Depois de beber uma dose reforçada de whisky, Nancy vomita sobre os livros de arte de Penelope. Embora esse ato não seja conscientemente intencional, expressa o descompasso dramático. O fato de ter estragado uma coleção de gravuras de Oscar Kokoschka, um pintor não muito agradável para a estética burguesa, parece indicar o quanto pesado está o ambiente que separa os dois casais.

Essa cena possibilita um intervalo para todos poderem respirar e reagrupar suas estratégias. Como o telefone não para de tocar, interrompendo a conversa a todo instante, Nancy, em um ataque de fúria, arranca o celular da mão do marido e joga o aparelho dentro de um vaso cheio de água e flores. Evidentemente, esse ato desesperado não corta a comunicação com o mundo exterior.

Em dado momento, os pares se mostram modificados. As mulheres se unem contra os homens, os homens combatem as mulheres. Talvez seja através dessa trapaça tática que as quatro pessoas encontram uma maneira de não resolver o conflito, de continuar o impasse.

Deus da Carnificina não convence como cinema. O tom pesado da edição impede que espectador veja a tragicomédia. O drama parece artificial. São defeitos insuperáveis. Talvez seja um bom convite para assistir a montagem teatral.