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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

"A FELICIDADE É FÁCIL", DIFÍCIL É ESCREVER UM ROMANCE


O segundo romance escrito por Edney Silvestre foi publicado em 2011, tem título de livro de auto−ajuda, A felicidade é fácil, apresenta epígrafe em francês de um trecho do filme Asas do Desejo, escrito e dirigido por dois alemães (Peter Handke e Wim Wenders), e se concentra em um período da história recente, o governo Fernando Collor de Mello.

Esse conjunto de aparentes contradições não atrapalha o texto que muita gente devorará "de uma sentada", as 219 páginas fluindo diante dos olhos ávidos do leitor, com estilo cortante, desses que parecem acenar gulosamente para o "quero mais". Parte dessa vertigem é conseqüência do uso abusivo de anacronias literárias, mistura competente de analepses (também chamadas de flashback) e prolepses, recursos cada vez mais raros na literatura contemporânea. Obviamente, esse truque não é nenhum ovo de Colombo. Se utilizado de forma competente, adiantar e recuar a ordem temporal de alguns trechos de uma narrativa fornece um dinamismo que a arquitetura textual em ordem natural (início, meio e fim, nessa ordem) muitas vezes não consegue obter.

Tendo como eixo dramático o primeiro bloco narrativo e reconstruindo o enredo ao longo de cenas que vão acrescentando inúmeras camadas de informações, mas em ordem pouco ortodoxa, o romance desliza na direção do desfecho sem grandes tropeços, ampliando a curiosidade do leitor ao fim de cada um dos 17 capítulos, a cada soma de novos elementos. Esse tipo de encadeamento, acrescido de vários monólogos interiores, fornece suspense e impede que a atenção (e a tensão) narrativa se disperse.

A tentativa de seqüestro, em São Paulo, do filho de um publicitário ligado ao governo federal detona o conflito. A associação entre agências de publicidade e o governo federal está conectada com um dos problemas mais significativos das narrativas contemporâneas. Ou seja, a necessidade psicológica do leitor de buscar amparo em fatos que ainda estão gravados na sua memória (e no inconsciente coletivo). Leitores menos experimentados e/ou mais mal−intencionados recordarão de episódios policiais (e pouco públicos) em que se misturam histórias de sequestros e nomes de publicitários como Roberto Medina, Luiz Salles, Washington Olivetto e Marcos Valério. Mas não são apenas as sombras desses quatro personagens que servem de moldura para a estrutura do texto e se deslocam transversalmente pela narrativa. Também adentra ao palco o inconfundível Turco ("Rouba, mas faz". O povão gosta dele. Enquanto estiver construindo túneis e viadutos, e mandando matar bandidos, continuará sendo eleito.) ou alguns novos ricos, figurinhas eternamente presentes nas colunas sociais (Cuidando da conta de uma rede de supermercados dos arrogantes filhos de um português semianalfabeto, a quem a inflação e a falta de escrúpulos transformaram em milionário em menos de uma década.). A classe política verde−amarela também é identificada nesse espetáculo grotesco (Quando estava perto evitavam citar cargos e sobrenomes. Só usavam prenomes. O Fernando. O Marcílio. O Bernardo. A Zélia. O Leonel. O Pedro. A Teresa. Se queriam evitar revelações ou demonstrar intimidade com os poderosos, para ela tanto fazia.).

Como Amar é um verbo que só faz sentido em publicidade, o maior peso social acaba sendo despejado nas costas dos pobres. Para quem precisa trabalhar de sol-a-sol, a felicidade nunca foi fácil, é preciso tentar renová-la a cada dia. Como peso extra, há um pacote de pragas bíblicas a separar a casa grande e a senzala. Enquanto os ricos se divertem construindo ligações perigosas, aos trabalhadores resta o discurso religioso, onde se misturam ignorância e má-fé. Ou então, o desastre que é descobrir que o menino surdo−mudo, filho dos empregados, Irene e Stephan, foi raptado em lugar do bem−nutrido filho do patrão.

Do outro lado da situação, os seqüestradores são mercenários multinacionais (argentino, uruguaio, chileno, brasileiro), alguns deles mimetizando os ideais da direita reacionária, saudosa de um tempo que já não mais existe, mas esperta o suficiente para farejar onde está o dinheiro e, conseqüentemente, se adaptar aos novos tempos.

Enquanto o Brasil procura adentrar na modernidade, superando o arcaísmo que o acompanha desde a época da colonização, a classe política (e seus asseclas) se locupleta no assalto diário ao erário público. Na tarefa sempre complicada de explicar o porquê do patrimônio pessoal de alguns dirigentes políticos ser incompatível com o salário que recebem ao final de cada mês, "laranjas" surgem a todo instante − entre eles, sem fazer muito alarde, alguns valorosos publicitários, os abre−alas da corrupção.

A tarefa proposta pela narrativa escrita por Edney Silvestre está em retratar esse movimento de usurpação da dignidade nacional por parte da República de Alagoas. Travestida de narrativa policialesca, parte da intenção ficcional se cumpre, apesar da óbvia ausência de densidade do enredo (que é encoberto pela esperteza de usar uma forma narrativa pouco usual). Também falta um pouco mais de profundidade ao descrever as duas quadrilhas. Como o romance está concentrado em São Paulo, a política "suja" praticada em Brasília ficou restrita ao mundo "limpo" dos crimes de colarinho branco. Mesmo assim − e isso é uma qualidade −, ao final do romance, é arriscado apontar quem são os criminosos: os políticos ou os seqüestradores.

Outra deficiência está no fato de diversos personagens (Olavo, Ernesto, Daniel, Emiliano) serem "planos" (como gostava de definir E. M. Foster). Falta−lhes humanidade, sentimentos, interação com a estrutura narrativa. A escolha da fórmula "menos é mais" como elemento constituinte das características mais significativas das personagens aumentou a superficialidade temática.

Enfim, se A felicidade é fácil, difícil é escrever um romance.

P.S: Edney Silvestre é o autor de Se eu fechar os olhos agora, vencedor do Prêmio Jabuti, categoria Melhor Romance, em 2010. Apresenta o programa Espaço Aberto Literatura, na televisão a cabo.

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