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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

SEMANA DE ARTE MODERNA (1922)

Eles não eram trezentos, nem trezentos e cinqüenta. Para ser mais exato, nem mesmo meia centena. Conforme uma carta publicada no jornal "O Estado de São Paulo", não passavam de uns pândegos, filhos de famílias ricas, que decidiram ser modernos apenas porque não sabem rimar. Talvez. Há um fundo de verdade nesse equívoco. Para alguns brasileiros, principalmente aqueles que vivem às margens da pobreza, acostumados com o adestramento que separa a casa grande da senzala, não convém participar de algumas bagunças – principalmente as artísticas, estéticas e políticas. O que não pode ser contestado é o pontapé que a Semana de Arte Moderna (des)feriu na bunda da tradição, inesquecível confusão promovida em São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922.

Paranóia ou mistificação, aleg(r)ou, aos anestesiados brasileiros, Monteiro Lobato, alguns anos antes, em 1917, cego ao tsunami que separou em fatias desiguais as iguarias nunca antes deglutidas antropofagicamente. A Velha República continuava velha, embora nesse ano precursor a amizade entre os profetas de novos tempos, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, tenha se solidificado. Enquanto risadas e saraus esculhambam com a estreiteza mental do criador de Emília, a gestação do movimento rebelde foi se desenvolvendo em alguns lançamentos literários: Juca Mulato (Menotti Del Picchia), Cinza das Horas (Manuel Bandeira), Nós (Guilherme de Almeida) e Há uma Gota de Sangue em Cada Poema (Mário de Andrade).

Entre 1917 e 1922, embora ninguém soubesse contra o que estava realmente lutando, surgiram novos sinais de mudanças na paisagem aparentemente tranqüila da cultura brasileira − que adorava (ainda adora) copiar as idéias fora de moda da Europa.

Movimentos como o Expressionismo, o Cubismo, o Dadaísmo e o Futurismo aformosaram o sentimento insurgente de demolir com os modelos obsoletos que vicejavam em terras tupiniquins. Inconformados com tudo e todos, sem saber distinguir entre quem era amigo ou inimigo, os modernistas tinham dificuldades de conviver com as contradições surgidas no embate entre o provincianismo e o cosmopolitismo industrial. Queremos a revolução Caraíba, proclamará, em 1928, o Manifesto Antropófago, que também gritava que Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses."

Aqueles que se pretendiam revolucionários eram apenas anárquicos, quase ingênuos, jovens (quase todos os participantes mais importantes tinham menos de 30 anos). Belos e malditos, ricos e malucos (salvo exceções pontuais), sem a mínima consciência de classe ou de identidade cultural, sonhavam com a fundação de um país somente possível como ficção.

A ascensão e glória do Abapuru (do tupi aba, homem, e puru, que come) principiou nas três noites em que a burguesia esclarecida, motivada pelos "melhores" ideais artísticos, tomou de assalto o Teatro Municipal de São Paulo. Assalto? Houve quem pensou em chamar a polícia. Não era para tanto. Entretanto, a arruaça foi suficiente para provocar urticária nos conservadores. E, conseqüentemente, mais uma crise na saúde pública. Faltou dermatologista para atender as incontáveis toneladas de fascistas enrustidos que contaminaram o Teatro Municipal de São Paulo.

A festa promovida pela "fase heróica" do Modernismo foi grande, mas, como lembrou Oswald de Andrade, alguns anos depois, algumas doses de senso crítico se mostraram ausentes do cenário׃ dos dois manifestos que anunciavam as transformações do mundo, eu conheci em Paris o menos importante, o do futurista Marinetti. Karl Marx me escapara completamente.

A primeira noite foi comportada. Quer dizer... Entre mortos e (pre)feridos, escaparam todos com ligeiros hematomas no ego. O avô dos revoltosos, José Pereira da Graça Aranha, 54 anos de inconformismo bem−comportado, ficou sem graça depois de ser exaustivamente apupado. Sua conferência, A Emoção Estética na Arte Moderna, não conferiu com o gosto do passadismo paulista. Nos intervalos, os poetas Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, querendo demonstrar o quão eram modernos e inovadores, contemplaram o seleto público com alguns versos de suas lavras. Foram lav(r)ados pelas vaias, como se fossem terra ruim sendo (re)virada por tratores. Os defensores do tradicionalismo paulista não pouparam sequer os números musicais executados pelo maestro Ernani Braga.

Na segunda parte do evento, antes que o vento levasse embora o distinto público, Ronald de Carvalho palestrou. Não teve melhor sorte do que os outros. A pintura e a Escultura Moderna no Brasil também não agradou. Ernani Braga e Heitor Villa−Lobos tentaram acalmar a turba enfurecida com solos de piano. Igualmente frustrado foram varridos por nova saraivada de vaias. A platéia, inconformada com tanta novidade, não aceitou negociar com os artistas.

Oswald de Andrade tentou ler alguns poemas. Alguns anos mais tarde, em depoimento a Mário de Silva Brito, disse: Apenas me levantei e o teatro estrugiu numa vaia irracional e infrene. Antes mesmo d’eu pronunciar uma só palavra. Esperei de pé, calmo, sorrindo como pude, que o barulho serenasse. Depois de alguns minutos, isso se deu. Abri a boca, então. Ia começar a ler, mas nova pateada se elevou, imensa, proibitiva (...) Devo ter lido baixo e comovido. O que me interessava era representar o meu papel, acabar depressa, sair, se possível.

Mário de Andrade também quis fazer papel de herói. Queria falar sobre Estética. Ninguém o ouviu. Como recordou algum tempo depois: Não sei como pude fazer uma conferencia sobre artes plásticas nas escadarias do teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer.

No saguão do teatro, igualmente rechaçadas foram as pinturas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, John Graz, Zina Aita, J. F. de Almeida Prado e Vicente do Rego Monteiro, as esculturas de Victor Brecheret e os projetos arquitetônicos de Antonio Moya e Georg Przirembel.

Nos outros dois dias (15 e 17 de fevereiro) as atrações mudaram, o comportamento do público continuou igual. Relinchos, latidos, miados e gritos foram constantes. No dia 17, quando Heitor Villa−Lobos entrou em cena de casaca, com um pé calçado com sapato e outro com chinelo, o público (que não sabia que o Mestre estava com um calo inflamado) não gostou dessa "atitude futurista". Um espectador da primeira fila abriu um guarda−chuva preto em sinal de protesto ao figurino do regente.

De todos os que se apresentaram durante a Semana de Arte Moderna, apenas a pianista Guiomar Novaes foi aplaudida (quando tocou, sem o consentimento dos organizadores, alguns clássicos consagrados).

Foram três dias que inscreveram na história artística da idolatrada salve salve uma quebra de valores. Em lugar dos existentes, os amotinados queriam criar uma literatura nacional, com identidade própria. A contribuição milionária de todos os erros instituía o slogan adequado para decorar out−door (se, na época, a ishperteza dos publicitários fosse favorável ao uso de out−doors).

A cultura passou a refletir outros valores, como a liberdade informal, a apropriação da linguagem coloquial como crítica da expressão literária ou o humor descarado (que satiriza o sentimentalismo romântico e o formalismo parnasiano praticado pelos passadistas e academicistas). As revistas Klaxon, Estética, A Revista, Terra Roxa e Outras Terras e Revista Verde e os movimentos artísticos e intelectuais Antropofagia, Pau−Brasil e Verde−Amarelismo (mais tarde denominado Anta) especificaram as novas diretrizes do comportamento cultural.


Como A alegria é a prova dos nove, nunca mais houve outra insurreição do calibre da Semana de Arte Moderna, as armas e os barões sem fôlego para brigar pelo que precisa ser modificado. Tupi or not tupi that is the question.

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