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quarta-feira, 14 de março de 2012

A DAMA DO CINE SHANGHAI


Foi numa dessas noites quentes e úmidas de verão, quando o calor deixa tudo imóvel, e você, pensando escapar da realidade, resolve ir ao cinema. Nem tanto pelo filme, mas pelo prazer de passar duas horas sentindo um ar gelado correndo pelo seu corpo. Mas você chega na bilheteria para comprar o ingresso e vê escrito em letras miúdas: ar condicionado em reformas. Ai você já está ali, não tem nada para fazer. Resolve entrar no cinema assim mesmo. Dentro está ainda mais quente do que você esperava. Mas você senta e fica assistindo ao filme e contando as gotas de suor que escorre em sua testa. Foi numa dessas noites que tudo começou.

A voz do personagem interpretado por Antonio Fagundes ecoa como se fosse um narrador distante, embora em primeira pessoa. O tom é propositalmente adequado para evocar o cinema "noir". Não seria surpreendente, se em algum momento de A Dama do Cine Shanghai (Dir. Guilherme de Almeida Prado, 1988), os rostos de Humphrey Bogart e James Cagney iluminassem a tela. Em lugar dessas presenças ilustres, o filme dentro do filme apresenta José Mayer e Maitê Proença em acrobacias ilusórias, o caráter fake do cinema expandido em mil alusões.

Enquanto não se estabelecem fronteiras entre o filme e o filme dentro do filme, o público do cinema continua a agir da forma como é costume agir dentro de uma sala de cinema: namorados continuam se agarrando, solitários seguem fantasiando aventuras que nunca se concretizarão, o crítico faz algumas anotações, a lanterninha entra e sai − ajudando ou atrapalhando. Ao contrário do comportamento reprimido que o escurinho sugere, a platéia de um filme não é estática. Assistir à película é apenas uma das atividades possíveis dentro de um cinema.

O espectador é um voyeur. A vontade quase incontrolável de espiar pelo buraco da fechadura. Há sempre a possibilidade de algum canalha estar escondido atrás de um móvel, enquanto a cena se desenvolve ou se dissolve dentro da nuvem de fumaça fornecida por milhares de cigarros. Há sempre a possibilidade de um corpo feminino estar nu, a deleitar olhos sequiosos por surpresas. Há sempre a possibilidade do corpo feminino não ser feminino, do corpo desejante desejar corpo que não é diferente do seu.

Suzana (ou Laila), a sociality (ou a atriz), mergulhou nas delícias do adultério. O marido está preocupado em ganhar dinheiro. As transações econômicas realizadas na alcova do casal são de outra ordem – Lucas, o corretor de imóveis, assume os riscos e projeta perdas e danos entre ais e uis no quarto do apartamento vendido para o empresário. Em frente ao prédio, no outro lado da rua, encontros furtivos para cenas implícitas de sexo em quarto vagabundo de hotel vagabundo ajudam a completar a atmosfera abafada e opressora que é possível encontrar nos romances policiais de Raymond Chandler e Dashiel Hammett.

Filme B. Pastiche, paródia, falsificação, imitação, mimeses, metalinguagem, homenagem. O a−pós−o−moderno dissolve os limiares, envolve o conhecimento em embalagem para presentes, sugere o velho como se fosse novo. Eu creio que agora as coisas estão ficando claras, diz a personagem interpretada por Maitê Proença, lá pela metade do filme. A vontade extrema de apagar as luzes através da repetição dos clichês. Aproximar-se da verdade é uma ilusão. Do mesmo modo, cinema é ilusão.

José Lewgoy como Linus Mickeyvicius, um diretor de filmes B aposentado, projeções do alter−ego, ego−trip, viagens entre miragens. Festa de casamento. Lucas se transforma em Tenente, como que a dizer que todos devem ser tementes aos seus punhos de ex−boxeador.

Nada é o que parece − inclusive o que desaparece aqui e ali. Entre golpes de armas brancas e disparos de armas de fogo, o espectro de um morto está rondando as cenas. Um travesti surge para colocar em xeque as doses de testosterona exaladas nessa tragicomédia com ares suburbanos. Manchetes de jornais e anúncios classificados aparecem diante dos olhos do espectador, indicando pistas falsas, complicações.

O triangulo amoroso possui outros vértices, pontas em que as figuras geométricas se confundem em formatos e utilidades. Enquanto houver dúvidas entre o côncavo e o convexo, o aparente não é transparente. Só pagando para ver é que se descobre se é um blefe ou a condenação aos círculos do inferno. Talvez. descontadas as trapaças e arruaças, tudo se resuma a um jogo de sombras.

Sabedoria de Felix Guattari: O cinema é o divã do pobre.

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