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terça-feira, 13 de março de 2012

NUNCA FOMOS TÃO FELIZES

Tenho certeza. A primeira vez que vi Nunca Fomos Tão Felizes (Dir. Murilo Salles, 1984) foi no cinema. Não tenho certeza do local, nem da data. Pode ter sido em Florianópolis, Curitiba, Porto Alegre, São Paulo ou Araraquara – cidades em que me perdi, várias vezes, na metade dos anos 80.

Tenho certeza de que gostei quando li − pela primeira vez − Alguma Coisa Urgentemente, conto escrito por João Gilberto Noll. Não tenho certeza do local, nem da data.

Provavelmente não relacionei o conto com a informação que consta dos créditos do filme. A história foi modificada ligeiramente: a parte política foi ampliada, a parte sexual foi "corrigida", o distanciamento entre o pai e o filho foi expandido. De qualquer forma, as várias formas de desencontros permanecem – secas, abruptas, cheias de arestas.

Devo ter visto o filme umas cinco vezes. Canal Brasil. O conto é pequeno, seis páginas. Está em o O Cego e a Dançarina.

O Brasil sempre teve dificuldades de comentar a própria história. Embora não possa ser provado, há quem defenda a tese de que existe um pacto não−escrito de que somente os heróis é que devem ser lembrados. E que, entre 1964 e 1985, o país foi governado por bandidos. Exagero? Talvez. De qualquer forma,  há um hiato profundo na historiografia brasileira e que precisa ser desvelado urgentemente. A História − com H maiúsculo − é estudo muito diferente do jogo de empurra−empurra que muitas vezes não passa de mero transferir a culpa para o Outro.

Depois de oito anos vivendo em um colégio interno, Gabriel (Roberto Bataglin) recebe a visita do anjo da anunciação, aquele que revela os pecados do mundo, destrói a inocência e anuncia os novos tempos. A figura paterna (Cláudio Marzo), que até então esteve ausente, cumpre com essa função, sempre aditando intervalos, Depois eu te explico, interpondo ausências, construindo a não−presença. Os diálogos entre o pai e o filho são ásperos, desencontrados, cheios de hiatos e medos.

No Rio de Janeiro. A atmosfera de conspiração, a possibilidade implícita de a polícia aparecer a qualquer instante, as regras de segurança determinando procederes, os telefonemas que ampliam o distanciamento físico, o apartamento vazio, a imensidão do mar, a opressão psicológica – Gabriel não entende esse torvelinho.

Nunca Fomos Tão Felizes está repleto de cortes. As cenas foram editadas como conseqüência de um trabalho de adição. As elipses eclipsam o tempo e espaço afastados por uma técnica de mineração: as pedras sem valor são descartadas, jogadas fora, permanece apenas o que interessa.

O desencontro entre o pai e o filho assume contornos de novela de suspense, o rapaz tentando manejar as peças de um quebra−cabeças muito difícil, aquém de sua capacidade de formar algum desenho inteligível. Quando a garota da boate diz para Gabriel, Se você não quer fuder, diz logo. Não enche o saco, tá!, de certa forma também quer alertá−lo que não deve se meter em assuntos que não lhe dizem respeito.

O problema é que adolescente não se contenta em passar os dias sempre iguais vendo televisão, tocando guitarra, olhando para o mar. Quer mais − embora isso lhe seja negado o tempo todo. O pai sempre ausente. Negócios. Sempre encontrando desculpas para não estar junto.

Em determinado momento, Gabriel deve levar uma mala até o subúrbio. Há policiais nas ruas. Quase vai preso. E o pai não aparece no lugar combinado.

Sem conseguir controlar a ansiedade, Gabriel procura por Leonor (Susana Vieira), a mulher da fotografia. Aquela que estava no porta−retratos que ele encontrou dentro de um armário, no apartamento. Novas dúvidas se acrescentam.

Também há as urgências da carne. Na transição entre a adolescência e a idade adulta, o sexo ajuda a acalmar as dores. Ou a amortecê-las. A prostituta com idade para ser sua mãe. O fetiche de raspar os pelos pubianos. O orgasmo comprado com maços de dinheiro.

São muitas as crises e poucos os lenitivos.

E o tempo a escorrer lentamente, a acrescentar perigos em todos os instantes.

O pai aparece no apartamento, machucado, agonizando. O rapaz não possui o mínimo senso prático e se desespera. Não entende o ordenamento dos fatos ou a razão que move a loucura. Descobre que o país está em crise: seqüestro do embaixador suíço.

Entre os dias 20 de novembro e 8 de dezembro nos anos 60 do século XX, a liturgia do desencontro físico. A aproximação entre o filho e o pai. Pela televisão, a propaganda ideológica fazia questão de afirmar que nunca fomos tão felizes. A polaróide registra o corpo morto. Diante da foto, Gabriel pode − enfim − dizer, sem nenhum obstáculo, Meu pai.

Um comentário:

  1. Gosto muito do conto Harmada do gaúcho João Gilberto Noll, que revela estados esquizofrênicos e sempre acena aquela esperança utópica.

    O texto ficou bem interessante.

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