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segunda-feira, 7 de maio de 2012

DISTRAÍDOS VENCEREMOS

Sofro de distração. Algumas vezes pensei em pedir ajuda especializada para, no mínimo, tentar entender o que está acontecendo. Por isso, enquanto a cavalaria não surge no horizonte para salvar os carroções sitiados, tenho acumulado confusões e encrencas − algumas absolutamente ridículas. Um dos meus amigos, em momento de irritação e mau humor, não conseguiu se controlar e disse que sou tão alienado com determinadas situações que, se um dia o mundo acabar, só perceberei o que está acontecendo no momento em que a morte bater no meu ombro e me convidar para acompanhá−la. Apesar da acusação se mostrar pouco amável, nunca a contestei. Ele está certo.

Diferente de alguns distraídos clássicos, minha patologia nunca passou pela humilhação de usar pés de sapatos (ou de meias) diferentes. Tampouco precisei amarrar fio de barbante (ou de linha) nos dedos para recordar alguma coisa importante. Jamais saí à rua faltando botão na camisa. Sempre tirei os óculos antes de ir para o banho. Em tempo algum entrei na sessão errada de cinema. Nunca deixei no balcão da locadora os DVDs alugados cinco minutos antes. Ah, consegui evitar o vexame que é esquecer o lugar onde o carro está estacionado (embora aqui não haja grande vantagem: nunca tive carro e − outro pecado capital − não sei dirigir).

Essas encenações de opereta não fazem parte do meu show. Também não me condenarão ao fogo eterno que aquece o inferno. O meu problema sempre foi de outra (des)ordem: nomes, datas, rostos. Repetidamente esqueço o dia de vencimento das contas – o que me causa graves problemas com multas. Raras vezes consigo recordar do rosto das pessoas que me foram apresentadas na semana anterior. Certa vez quase viajei para Florianópolis sem documentos e dinheiro (a carteira ficou em cima da mesa e só percebi a tragédia dentro do taxi). Costumo ser pontual (exceto quando esqueço o compromisso – estranhamente essa amabilidade ocorre pouco). Prometo escrever textos para jornais e revistas e só percebo a proximidade do "dead line" umas duas horas antes (nessas situações, pedidos de desculpa sempre se mostraram insuficientes). As datas dos aniversários familiares estariam condenadas ao limbo se não existisse essa maravilha tecnológica chamada agenda (que, felizmente, consulto diariamente).

Uma situação clássica ocorreu quando encontrei Paulo, um antigo colega dos tempos de colégio. Por princípio social, costumo tratar a todos os conhecidos pelo primeiro nome. Conversamos bastante sobre os velhos tempos. Coincidentemente, a partir daquele dia, encontrei Paulo diversas vezes (banco, supermercado, vídeo−locadora). Um dia, visivelmente incomodado, ele fez uma retificação: Meu nome é Júlio. Meu primo, que também estudou conosco, é que se chama Paulo. Então, não esqueça: eu sou o Júlio!

Seria um pequeno embaraço, se essa cena não se repetisse freqüentemente. Como não tenho aptidão marqueteira para transformar minhas deficiências em algo positivo, muitos adjetivos ofensivos (antipático, esnobe, convencido, prepotente, metido, arrogante) costumam ser disparados em minha direção. Alguns acertam o alvo. E nada é mais triste do que um coração distraído ou um ego destroçado.

Uma das últimas aventuras aconteceu na manhã de domingo. Faltou luz. Ao acordar, entre um bocejo e outro, fiquei a perguntar o que teria acontecido, pois essa irregularidade estava impedindo algumas horas de dolce far niente diante da televisão. Em contrapartida, o apartamento está cheio de livros e de luz, outra luz, a do conhecimento. As figuras de papel − não lembro quem disse isso − diminuem a solidão. E, mais importante, evitam recordar obrigações sociais ou horários a cumprir.

Abandonei a cama e fui à luta. Depois de abrir a porta da geladeira, fui ofuscado pelo triste espetáculo produzido pela minha distração: outra vez, havia olvidado as compras semanais. Ao perceber que o vazio se parece com alguns sinônimos da angústia, decidi tomar o rumo do supermercado. Depois de colocar alguma roupa sobre o corpo, abri a porta do apartamento e...

Encontrei uma de minhas vizinhas, D. Maria, uma senhora simpática que deixou para trás os seus dias de esplendor e glória há uns dois séculos ou mais. Ela também estava descendo as escadas. Comentei a falta de luz e perguntei−lhe se sabia do porque de estarmos naquela condição. Ela riu. E bastante. Disse que eu sou uma pessoa divertida. Não tenho certeza se isso foi um elogio. Perguntou−me: Não notou o aviso? Que aviso?, retruquei. Nova risada. A empresa que fornece energia elétrica estava fazendo manutenção da rede e havia distribuído um cartazete, uns quinze dias antes, informando o evento.

Lembrei vagamente de ter visto a notificação, dentro do elevador. Como sempre, seguindo as regras da distração, não estava programado para qualquer alteração da rotina. Ó vida, ó azar, exclamava aquele personagem de desenho animado dos meus tempos de pré−adolescência.

No supermercado, percebi que não havia levado uma lista do que era necessário comprar. Talvez tivesse que voltar mais tarde. Ou no dia seguinte. De qualquer forma, a cena não era nenhuma novidade. Apenas a repetição da repetição, como em uma partida de xadrez interminável, onde algumas posições de jogo começam a se repetir com insistência enervante.

Como uma coisa leva à outra, andei pensando sobre esses meus momentos de distração crônica. Concluí que o meu problema é outro. Provavelmente o inconsciente sente algum tipo de prazer pouco ortodoxo em procrastinar, em deixar para depois todas as tarefas que causam algum tipo de desconforto. Como uma espécie de Peter Pan, em muitas ocasiões, os casos mais extremos, a diversão está em repetir, com todas as forças possíveis, o mantra de Bartleby, o escriturário, Prefiro não fazer.

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