Páginas

quarta-feira, 18 de julho de 2012

EU SOU UM GATO

No vasto mar chamado literatura, timoneiros de frágeis naus raramente escapam do naufrágio – conclusão inevitável para quem está prestes a se afogar. Durante anos, ignorei a qualidade literária de Natsume Soseki. Quem? Aquele escritor japonês que nasceu Natsume Kinnosuke, e, que, aos vinte anos de idade, adotou o pseudônimo Soseki (incômodo ou estorvo, em chinês). Um ilustre desconhecido - pelo menos para mim, que não recordo sequer ter lido ou ouvido alguma referência ao autor de Eu Sou um Gato. Recentemente alguém me alertou que ignorar esse autor era uma grave falta e uma irreparável falha. Comprei um exemplar de Eu Sou um Gato na Estante Virtual.

Eu Sou um Gato é uma espécie de autobiografia felina – refletindo com humor e ironia a vida humana. O gato, que não possui nome, e que se refere a si mesmo como Gato, é um narrador antropomorfo. Ou seja, se comporta e pensa como se humano fosse.

Morando com a família do professor Kushami (espirro, em japonês) e sendo maltratado por todos (inclusive pela empregada), Gato está condenado a ser um espectador passivo dos acontecimentos. Não lhe cabe agir – em muitos momentos, imita a indolência de seu dono, um homem sem grandes habilidades diante do mundo concreto. Em compensação, misto de jornalista tagarela e filósofo cético, Gato tudo vê, tudo relata, tudo delata. É um narrador descritivo, desses que juntam detalhes e mais detalhes para compor o quadro onde as ações se desenvolverão. Depois, com clareza analítica e riqueza enciclopédica, não deixa que nada do que ocorre diante de seus olhos escape de alguma observação crítica. As principais vítimas dos comentários mordazes são a família que o abriga e alimenta (Kushami, a esposa e as três filhas) e os três principais amigos do professor: Kangetsu, Meitei e Dokusen.

Kushami gosta de dormir, mas precisa fingir que é um intelectual. Está sempre tentando ler, mas depois de duas ou três páginas cai no sono. Ensina inglês, mas tem dificuldades de entender o que não consta do livro−texto que usa. É um homem irritadiço e confuso − como pode ser comprovado em algumas das anotações que faz em seu diário. As mulheres aparecem pouco na narrativa, reduzidas que estão a figurar secundariamente na vida de um Japão quase feudal. A exceção é a esposa de Kushami, que domina sem piedade o marido. As crianças são pequenos monstros, de hábitos tirânicos, capazes de crueldades indescritíveis.

Kangetsu está concluindo estudos em física. Prestes a defender o doutorado, efetua estudos sobre a dinâmica do enforcamento. Uma vizinha de Kushami pretende casá−lo com a filha, desde que defenda a tese. Meitei é a figura mais divertida. Com um senso de humor peculiar, não leva nada a sério e gosta de confundir as pessoas. Conta histórias cheias de detalhes e surrealismo. Dokusen estuda zen−budismo, tem pensamentos profundos (que ninguém compreende) e prega o pacifismo.

Em outros momentos, comprovando que as palavras são o playground do escritor, Gato faz longas descrições sobre as artes de caçar ratos, andar em cima de cercas de bambu, ir à sauna masculina para matar as pulgas que o incomodam ou desprezar adolescentes provocadores. Nesses trechos, a narrativa se torna hilária.

Gato despreza olimpicamente o ser humano. E a melhor maneira de provar isso está nas histórias que conta sobre aqueles que almejam garantir a aceitação social a qualquer preço. A vida (e, provavelmente, os livros que o professor possui em casa) lhe ensinou alguns valores, que, paradoxalmente, os homens e as mulheres não utilizam.

Ao final da narrativa, 485 páginas de humor e criatividade, a maneira estóica com que Gato narra a própria morte se assemelha com uma folha que se desprende da árvore e, ondulando no vento, vai deitar no gramado, junto com outros detritos da natureza.

9 comentários:

  1. Interessantíssima sua resenha!
    Deu vontade de ler o livro...
    Parabéns pelo blog Raul.
    Grande abraço.

    ResponderExcluir
  2. Li O GATO e também amei. Comprei por um acaso (ah, que acaso feliz!!!) ao folhear um catálogo de livros na FNAC em uma viagem que fiz à São Paulo. Gostei tanto do autor que comprei outro livro dele - mas ainda não li -: E DEPOIS. Comprei também o mais recente dele: CORAÇÃO. Agora estou na espera dele chegar...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Andréia: Eu também estou com vontade de fazer esse percurso. Vou ler "E Depois" (que está na fila, mas - infelizmente - existem outras prioridades). De qualquer maneira, o que importa é que a Literatura Japonesa é maravilhosa e que não devemos ignorá-la! Beijos e abraços!

      Excluir
  3. Foi uma das maiores obras que li. Gostei muito! É certo que a leitura pode parecer cansativa, realmente precisa de dedicação.Na verdade toda obra precisa... A criatividade é sensacional. Não podemos ignorar Soseki, ele é sinônimo de genialidade. Sou amante da literatura japonesa...Soseki, Kawabata, Nagai Kafu, Akira Yoshimura...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Srta G: Que conste dos autos que eu desconhecia esse romance até que você o mencionasse em outra postagem deste blog. Li, gostei. Aliás, gostei muito! Obrigado pela dica!

      Excluir
  4. Depois de tantos elogios
    só me resta ir atras

    ResponderExcluir
  5. Eu encontrei um exemplar deste livro na biblioteca da escola, primeiramente, eu gostei bastante da arte da capa (sei que ler um livro pela capa é uma vergonha, mas...) e lendo, posso dizer que é uma obra realmente interessante e digna do tempo de quem a lê.

    ResponderExcluir
  6. Que bom que você gostou, Arthur Diniz! Espero que você (independente da capa dos livros) continue um leitor!

    ResponderExcluir