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segunda-feira, 6 de agosto de 2012

JONATHAN FRANZEN ENSAISTA

Tenho problemas com Jonathan Franzen. Nada muito sério. Picuinhas. Obviamente, não serão minhas queixas que abalarão o sono do grande artista. Aliás, nem o meu sono foi perturbado por esse desacerto. Objetivamente, considero As Correções um romance de qualidade. Quando o li, obtive grande prazer. Em contrapartida Liberdade me parece pretensioso e chato (em alguns trechos). Essa desavença resultou em diversas conseqüências elementares. Ainda estou tentando obter coragem para enfrentar Tremor − que foi escrito no início do século, quando Franzen precisava correr para não ser atropelado pelos credores.

Alguém me disse que ele esteve na FLIP. Sou leitor a tempo suficiente para não me deixar enganar pelos mecanismos de persuasão da indústria publicitária. Quase disse – em voz alta − que o público literário brasileiro adora brilhar ao lado de celebridades de terceira grandeza. Consegui me controlar. O silêncio eloqüente é mais coerente – conforme recomenda a arte cavalheiresca do arqueiro zen.

A festança passou, o sujeito foi embora e as livrarias ficam entulhadas com as edições e reedições dos calhamaços que o venerável e venerado escritor está legando à humanidade. Uma dessas preciosidades tem título típico de livro de auto−ajuda: Como Ficar Sozinho. Quando o livro perder o ar de novidade, e isso não vai demorar, não será surpresa se o funcionário encarregado de repor o estoque de alguma livraria guardar, em momento de distração, alguns exemplares ao lado de best−sellers como O Segredo (Rhonda Byrne) ou Mulheres Inteligentes, Relações Saudáveis (Augusto Cury). Sim, eu sei que essa foi triste adaptação de piada antiga e descolorida: procurar por Ao Vencedor, as Batatas (Roberto Schwarz) ou Morangos Mofados (Caio Fernando Abreu) na seção de agricultura.

Na livraria, com um exemplar de Como Ficar Sozinho nas mãos, pensei umas dez vezes antes de me decidir se deveria comprá−lo. Em pé, li a orelha (um desses textos de laboratório, próprio para convencer leitor desavisado), olhei o índice, folhei o livro várias vezes, li alguns trechos. Coloquei−o de volta na prateleira. Fui procurar por outras coisas, quem sabe não encontrava algo melhor na estante do lado? Dez minutos depois... Voltei. Abri o volume em alguma página aleatória e... Tá certo, aquilo que parecia não estar lá na primeira vez, me interessou. Depois de ler alguns parágrafos, vi um ensaio que não tinha percebido na primeira vez. Ele adora Alice Munro (Ela faz parte daquele punhado de escritores, alguns vivos, a maioria morta, que tenho em mente quando digo que a ficção é a minha religião). Foi uma surpresa. Eu também coloco Alice Munro no alto do pedestal. Ou melhor, sou fã de carteirinha. Da Alice.

Sentei numa poltrona e comecei a ler o texto. Não tenho certeza, mas foram uns quinze minutos de leitura. No mínimo. Em alguns trechos, reler se mostrou necessário. Não porque houvesse dificuldades de entendimento, mas há passagens interessantíssimas e um retorno à página anterior equivalia a um abraço em velho amigo – desses que encontramos casualmente na rua, depois de alguns anos sem o ver.

Fiquei surpreso em descobrir que tinha essa afinidade com Franzen. Afinidade eletiva, diria Goethe, naquele alemão árido que poucos conseguem ler nos dias de hoje. Parte do tempo de leitura foi utilizado para lembrar de alguns contos da Munro. Retirar livros da estante (mesmo que seja apenas metaforicamente) e ficar conversando sobre eles é uma sensação embriagadora. Um dos grandes prazeres da vida.

Entretido, com o livro nas mãos, desconsiderei o mundo ao redor. Passei no caixa e paguei o preço da diversão.

Alguns dos ensaios de Como Ficar Sozinho podem se lidos como se fossem peças de ficção. Franzen raramente aborda assuntos polêmicos − no trivial variado, principalmente nos assuntos que o atormentam (telefone celular, privacidade, cigarros) mostra domínio técnico e pensamento analítico diferenciado. O que diminui o brilho dos ensaios é o uso excessivo da narrativa auto−centrada, onde a primeira pessoa é glorificada e santificada. Franzen adora um espelho – e reflete o mundo pelo que visualiza diante de si mesmo: Vou fazer o que escritores fazem, que é falar sobre si mesmos, na esperança de que minha experiência tenha alguma ressonância em vocês. Em temas difíceis como a morte paterna (O Cérebro de meu Pai - também publicado na revista Piauí), o sujeito não se contém e convida Narciso para assumir o proscênio literário.

Talvez o exemplo mais óbvio dessa estratégia sejam os textos Encontre−me em St. Louis, O Fradinho Chinês e Sobre Ficção Autobiográfica.

O primeiro relata as gravações televisivas para divulgar As Correções − que havia sido escolhido para integrar o Clube do Livro do programa da Oprah Winfrey. Cheio de timidez e reticências, o texto pretende persuadir o leitor que tudo aquilo foi um suplicio. Tarefa inútil. Se houvesse timidez e escrúpulos, o texto não teria sido escrito.

O segundo ensaio está centrado em uma viagem à China. Usando como desculpa um estranho hobby ("estranho" para os brasileiros, óbvio), a observação de pássaros, Franzen, enquanto procura por espécimes raros e massageia o próprio ego, descreve suas impressões antropológicas sobre as relações de trabalho. É uma crítica impiedosa ao capitalismo predatório – que mede as relações de produção pelos custos da mão-de-obra.

Talvez o ponto alto do Como Ficar Sozinho esteja no texto Sobre Ficção Autobiográfica. Mostrando bom conhecimento da teoria da literatura, citando dezenas de livros e autores, elaborando alguns aspectos de sua mitologia pessoal, Franzen implode com quatro perguntas básicas do jornalismo sem criatividade (Quais são as suas influencias?, Quando você trabalha e o que você usa para escrever?, Li uma entrevista de um autor que diz que, a certa altura do romance, os personagens "assumem o controle" e lhe dizem o que fazer. Isso também acontece com você? e, por último, Sua ficção é autobiográfica?). São respostas duras e um pouco agressivas − talvez por terem sido ditas, repetidas, reelaboradas milhares de vezes. Provavelmente 80% dos escritores mundiais gostariam de ter escrito esse texto (apesar do tom mal−educado), porque estabelece um marco comportamental às relações entre literatura e jornalismo.

Outra questão que preocupa Jonathan Franzen é a necessidade quase física de citar nominalmente alguns de seus melhores amigos. As ex−esposas são mencionadas de forma indefinida (minha futura mulher, minha mulher era uma nova-iorquina talentosa e sofisticada ou a californiana - como se tivesse medo de usar os nomes das mulheres, ele sempre usa uma dessas fórmulas). Com os amigos não há esse pudor. Quando escreve sobre David Foster Wallace (autor de Breves Entrevistas com Homens Hediondos) ou David Means (autor de Sinistros com Fogo) não disfarça o orgulho de estar cercado por escritores inteligentes. Só baixa a guarda quando, discorrendo sobre a solidão de Robinson Crusoé, lembra o suicídio de David Foster Wallace – morte que ele provavelmente nunca entenderá. Ninguém está preparado para perder aqueles que amam.

Provavelmente a tese mais controversa que Franzen defende em Como ficar Sozinho seja a de seguir o pensamento de Flannery O`Connor e concordar que a ficção se alimenta da especificidade, e que os costumes de determinada região sempre proporcionaram solo especialmente fértil aos ficcionistas. No mundo globalizado, onde a essência é diluída pela força da mercadoria, buscar no regionalismo a redenção literária parece simpático, mas... essa é uma tese que não convence – as grandes empresas editoriais não costumam arriscar com talentos obscuros, surgidos do nada ou morando lá onde o Judas perdeu as botas.

A essência da ficção é trabalho solitário: o trabalho de escrever, o trabalho de ler, escreve Franzen em algum lugar de Como ficar Sozinho. Ao mesmo tempo, ele está consciente de que o verdadeiro material da ficção somente pode ser adquirido com a convivência com outras pessoas, com outros seres humanos. É necessário admitir que, nesse mundo tecnoconsumista (a expressão é dele), Um dos alentos da praga dos celulares na minha vizinhança em Manhattan é que, entre zumbis enviando torpedos e imbecis combinando festas nas calçadas, às vezes caminho ao lado de alguém que está discutindo de peito aberto com a pessoa que ama. Tenho certeza de que eles preferiam não discutir em público, mas de qualquer maneira é isso o que está acontecendo e o comportamento deles não é nada legal. Gritam, trocam acusações, protestam, se insultam. Esse é o tipo de coisa que me dá esperança no mundo.

Um comentário:

  1. como ficar sozinho. Como se precisássemos de um livro para obter esse conhecimento. Ai de nós, talvez precisemos.

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