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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

GUIMARÃES ROSA: A SABEDORIA DO SERTÃO EM QUARENTA E DUAS FRASES


Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.

O rio não quer chegar, mas ficar largo e profundo...

O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo.

Tudo é real, porque tudo é inventado.

Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar.

Viver é um descuido prosseguido. Mas quem é que sabe como? Viver... o senhor já sabe: viver é etcétera...

Deus come escondido, e o Diabo sai por toda a parte lambendo o prato.

Viver é um rasgar-se e remendar-se.

Quem desconfia fica sábio.

Felicidade se acha é em horinhas de descuido.

Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.

O trágico não vem a conta-gotas.

A vida é feita de poucas certezas e muitos dar-se um jeito.

No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade.

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem...

Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.

Viver de graça é mais barato.

Há pessoas que estão vindo muito demoradas...

De sofrer e de amar, a gente não se desfaz.

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.

O passado é que veio até mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido; apenas não estou sabendo decifrá-lo.

Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.

O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver.

Sigo à risca. Me descuido e vou. Quebro a cara. Quebro o coração. Tropeço em mim. Me atolo nos cinco sentidos.

Se a gente puder ir devagarinho como precisa, e ninguém não gritar com a gente para ir depressa demais, então eu acho que nunca que é pesado.

Nunca digas que esqueceste um amor diga apenas que consegue falar nele sem chorar, pois o amor é... inesquecível

Coração de gente - o escuro, escuros.

O verdadeiro amor é um calafrio doce, um susto sem perigos.

Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão, contente com minha terra, cansado de tanta guerra, crescido de coração.

O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.

O de hoje é um dia que comprei fiado.

Para ódio e amor que dói, amanhã não é consolo.

O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas!

Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.

Esperar é reconhecer-se incompleto.

Viver para odiar uma pessoa é o mesmo que passar uma vida inteira dedicado à ela.

Merece de a gente aproveitar o que vem e que se pode, o bom da vida é só de chuvisco.

Ninguém é doido. Ou, então, todos.

Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.

Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina..

Vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro.

Entre as folhas de um livro-de-reza um amor-perfeito cai.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

SCOTT FITZGERALD (1896−1940)


Francis Scott Key Fitzgerald, filho de família de classe média, nasceu em Saint Paul, Minnesota, em 24 de setembro de 1896. A partir de 1913, frequentou aulas na Universidade de Princeton. Mais interessado nos esportes e na vida literária, abandonou os estudos antes de concluir a graduação. Mesmo assim, enquanto lá esteve, soube observar acuradamente um mundo que gira em torno de promessas, riquezas e sonhos. São essas imagens que alimentarão parte da literatura que escreverá alguns anos mais tarde. Em fins de 1917, foi convocado pelo exercito. Gore Vidal, com nítida má vontade, definiu esse período da vida de Fitzgerald, em ensaio publicado na coletânea De Fato e de Ficção, como Apressado e estranhamente pouco auspicioso: o soldado que nunca lutou (...) e o atleta que nunca competiu.

Depois do fim da guerra, em 1920, Scott casou com Zelda (nascida Sayre). Scottie (Frances Scott Fitzgerald) nasceu em outubro de 1921, em Saint Paul, Minnesota.

Foi em Paris e na Riviera Francesa, respirando o charme europeu e recriando a vida somente possível nos romances românticos (que alimentavam a fantasia de que a felicidade estava à disposição no bistrô da esquina), que a família Fitzgerald encontrou a literatura estadunidense. A Lost Generation (Geração Perdida) estava acampada entre a Rive Gauche e o bar do Hotel Ritz. Na companhia de Ernest Hemingway, Ford Madox Ford, Gertrude Stein, Sylvia Beach, John dos Passos, Sherwood Anderson, Ezra Pound, Waldo Pierce, e. e. cummings, Hart Crane, entre outros, Scott e Zelda brilharam. Parte dessa brincadeira é retratada, de forma bastante superficial, no filme Meia−noite em Paris (Dir. Woody Allen, 2011).

De volta a Estados Unidos, a doença mental de Zelda (e as sucessivas internações em sanatórios), o consumo excessivo de álcool e inúmeros problemas financeiros resultaram em incontáveis (e incontroláveis) crises. Sem muitas alternativas, Scott se mudou para Hollywood, onde alugou o seu talento para a indústria cinematográfica. Um enfarte o matou em Los Angeles, Califórnia, no dia 14 de dezembro de 1940.

Ars longa, vita brevis, diziam os latinos − principalmente quando queriam justificar as almas desvairadas, aquelas que consumem a existência em momentos de heroísmo ou de degradação. Em apenas 44 anos de vida, Scott Fitzgerald escreveu quatro romances (o quinto ficou inacabado), cerca de 160 contos, alguns fragmentos autobiográficos e uma dúzia de roteiros de cinema. Como disse Gore Vidal: Uma coisa se diga de Scott: ele foi show−biz desde o começo.

Em 1920, ao explicar a publicação de seu primeiro romance, This Side of Paradise (Este Lado do Paraíso), Fitzgerald disse: Eu estava certo de que todos os jovens seriam mortos na guerra e eu queria colocar no papel o registro da estranha vida que eles viveram em seu tempo. Essa tentativa de ficcionalizar a vida resultou em imediato sucesso. Na lista dos mais vendidos, o livro conseguiu rivalizar com Main Street (Rua Principal), de Sinclair Lewis.

Infelizmente, toda essa inesperada fama não foi suficiente para diminuir o escandaloso fracasso de The Beautiful and Damned (Belos e Malditos), de 1922. O ano somente foi salvo pela publicação do maravilhoso Tales of Jazz Era (Contos da Era do Jazz), que contém algumas das melhores histórias curtas escritas por Scott Fitzgerald.

Depois de nova viagem à França, Scott conclui o texto do romance em que a expressão "obra−prima" não é excessiva. The Great Gatsby (O Grande Gatsby), publicado em 1925, é a história de um traficante de bebidas que procura a ascensão social. Com talento e estilo, a narrativa aborda o caráter evanescente da beleza e do dinheiro, a inevitável danação dos indivíduos que procuram fugir das convenções sociais e a fragilidade das histórias pessoais. Unindo romantismo, frustrações e sonhos, O Grande Gatsby anuncia a tragédia. Inclusive para o escritor: o público não entendeu o livro, que se tornou um grande fracasso comercial.

Depois de um período improdutivo, onde os problemas pessoais foram mais significativos do que a literatura, Fitzgerald publica Tender is the Night (Suave é a Noite). Beirando a autobiografia ficcionalizada, o romance aborda a vida social de um grupo de expatriados que procura omitir que a Guerra ainda está presente em suas vidas. Ricos, atraentes, intensos, imaturos, capazes de alternar a brandura com a mais cruel atitude predatória, eles são protagonistas de um mundo hedonista, glamoroso e perverso. Essa loucura está centrada no casal Dick e Nicole Diver, que esconde atrás das aparências sociais o inferno particular em que vivem. Eles acabam sendo arrastados para o centro do furacão − onde o caos os destrói.

Scott Fitzgerald morreu antes de terminar The Last Tycoon (O Último Magnata). O romance deveria contar uma história similar a de Suave é a Noite: as forças inexoráveis da vida destruindo a ingenuidade e a retidão moral. Sem espaço para o heroísmo, o livro está repleto de personagens destituídas de ética, esses mesmos que protagonizam os desastres emocionais.

Alguns críticos e admiradores da obra de Scott Fitzgerald consideram que a grande força do escritor estava nos contos. São essas estruturas concentradas, onde os principais elementos da comédia humana são dissecados com habilidade de relojoeiro suíço, que revelam as áreas sombrias da alma humana. Histórias curtas como Babilônia Revisitada, O Amor à Noite, Domingo Louco, O Diamante do Tamanho do Ritz, O Último Beijo e Os Nadadores justificam o esforço de Edmund Wilson (que era amigo de Fitzgerald desde Priceton) para ressuscitar o escritor nos anos 50. Como lembra Gore Vidal, A partir de 1945, foram escritos centenas, talvez milhares de biografias, estudos críticos e teses de doutorado sobre Fitzgerald. Junto com a imortalidade literária, Fitzgerald recebeu a iniquidade das falsas polêmicas e a indiscrição típica de quem – nada tendo de significativo para acrescentar ao debate intelectual – sente prazer em remoer aspectos secundários da vida pessoal do escritor.

De qualquer maneira, Scott Fitzgerald, com suas histórias pessimistas, onde a perda é um elemento importante, foi um escritor do primeiro time. Cada releitura de seus textos é uma chance de provar da adrenalina que está ao alcance daqueles que não se assustam com a aventura literária.



segunda-feira, 24 de setembro de 2012

MÁRCIO CAMARGO COSTA: UM ANO DE AUSÊNCIA

Durante alguns anos, pelo menos três vezes por semana, almocei com Marcio Camargo Costa. No espaço de uma hora, uma hora e meia, ocupávamos mesa no restaurante do Grande Hotel. No início da refeição, queríamos resolver todos os problemas do mundo. O ímpeto diminuía com o passar do tempo. Durante a sobremesa já estávamos domesticados. Mesmo assim, exercitávamos − sempre que possível − a nobre arte de falar mal do governo. Ele muito mais do que eu. Como convém aos inconformados, fazia parte de sua índole reclamar de tudo e de todos.

Márcio era engenheiro agrônomo. Tinha especialização em reprodução animal, feito em Caen (França) e Mestrado em Zoologia (UFRGS). Intelectual com boa formação humanística, conhecia quase todos os clássicos. E não se constrangia em deixar que isso transparecesse em seus contos. Misturando referências sofisticadas com a linguagem chula dos habitantes rurais do Planalto Catarinense, as coletâneas O Gaudério de Cambajuva (Florianópolis: FCC Edições/Jornal O Estado, 1986), A Caudilha de Lages (Florianópolis: Lunardelli, 1987) e Qüeras (Florianópolis: Editora da UFSC/Letras Contemporâneas, 1994), além do folheto Adeodato (Florianópolis: Edições Sanfona, 1985), constituem a parte mais significativa da produção literária de um escritor pouco conhecido – embora fosse muito talentoso. Também gravou, em edição limitada, uma coletânea musical: Márcio Camargo Costa, composições.

Nos últimos meses, em situações e circunstâncias diferentes, lembrei dele diversas vezes. Provavelmente foi dessa maneira tosca que o meu inconsciente resolveu reverenciar a memória do amigo. Passado um ano de seu falecimento, quero compartilhar duas dessas recordações.

Depois de muito protelar, resolvi limpar parte dos livros. Confesso que não é a tarefa que mais me agrada. Munido com um pedaço de flanela e um pincel de cerdas macias, fui à luta. Ou melhor, fui tirar o pó. Centenas de livros espalhados pelo chão. Reproduzindo cena de romance do século XIX, uma folha de papel caiu de um dos volumes. Um bilhete.

Márcio sempre teve problemas financeiros. Certa ocasião, em 2004, quando a situação ficou complicada, fiz uma sugestão tola. Em tom de brincadeira, propus que vendesse a biblioteca. Garanti que compraria uma parte. Ele engoliu em seco a ofensa. Talvez porque soubesse que eu também estava quebrado e que toda aquela conversa era esdrúxula. Menos de um mês depois, ele me devolveu uma coletânea de poemas que me havia tomado emprestado. Junto, como uma espécie de revide à agressão, mandou−me um recado por escrito:

Caro Don Raul

 

Por obra do acaso ou, ainda melhor, das coincidências de que fala Sartre, o certo é que, ao chegar em casa (hoje, 12:30, 02/05/04), tive uma gratíssima surpresa (algo assim como a máscara sigilosa que preside a poesia de Silvina Ocampo). Simplesmente, o crédito de um generoso numerário havido há algum tempo, por serviços de assessoria rural (em Barretos, SP) e bloqueado por motivos de inventário. O que me faz discordar de Juan José Saer que afirma que vivemos em uma sociedade que aceita mal a criação artística. Assim volto à tona, para desespero de meus "tradittori amici". Bem, aproveitando o feliz ensejo, apraz−me sobremaneira devolver teu livro, ao mesmo tempo em que agradeço, olimpicamente (é preciso ir incorporando esse espírito, como diria Pai Bodum da Popular) tua politicamente incorreta "solidariedade". Aliás, sobejamente evidenciada quando de tua paquidermicamente sutil oferta de, digamos, compra de minha invendável Biblioteca, que quase convive com a de Alexandria, eis que tem origem (a minha) em meus tataravôs. O que me faz concordar com o Mestre Ernesto Sábato que, do alto de seus sábios 90 e tantos, decretou que esse Mundo é um horror. Concordo, data máxima vênia da vossa das letras que, em breve, impávida, obrará impune. Alelurdia!!!

Um pérfido abraço,

Márcio


Aceitei calado o puxão de orelha. Era justo. Eu tinha feito por merecer

Alguns meses atrás, o José Carlos Arruda (um ilustre parente distante) me perguntou sobre como localizar uma cópia de Adeodato, um longo poema sobre um dos personagens mais emblemáticos da Guerra do Contestado. Eu tenho um exemplar, respondi de imediato – embora não tivesse a mínima idéia de onde ele se encontrava. Mais uma vez, armado dos instrumentos necessários, tentei colocar ordem na bagunça das estantes. E isso significa que foram horas de suor, dores nas costas e dispersão. Qualquer livro carrega centenas de referências. Sentado no chão da sala, como se estivesse brincando com um novelo de lã, fui puxando o fio da memória e me perdendo em divagações literárias. Em alguns momentos esqueci o que estava procurando. Por fim, cansado, concluí que o texto do Márcio não estava em lugar algum.

Um segundo antes de ligar o chuveiro, lembrei que havia separado diversos documentos em um envelope, junto com exemplares da Revista Sul (presente de inigualável Nereu Goss). Talvez Adeodato lá estivesse. Estava. Porém, em amarelado estado de conservação. Uma cópia digital impedirá que ele se perca na poeira que nos reserva a eternidade (Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris - diz o texto bíblico).

Nas mãos, o bilhete e o folheto (ferramentas da carpintaria literária). Na memória, as muitas conversas intermináveis que tivemos. E a sensação de que esse tipo de lembrança só aumenta a saudade.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

KONSTANTINOS KAVÁFIS (1863−1933)

Nascido em Alexandria (norte do Egito), sétimo filho de rico comerciante, Konstantinos Kaváfis foi funcionário publico a vida toda. Depois da morte do pai, em 1870, a família teve dificuldades financeiras. Foram morar em Liverpool, na Inglaterra. O regresso ocorreu dois anos depois, em situação bastante precária. Depois que terminou a Escola de Comércio, Kavafis ingressou no serviço público (Departamento de Irrigação). Com exceção das viagens que fez à Inglaterra (1897) e à Grécia (1901 e 1932), viveu o resto de sua vida em Alexandria.

Era um perfeccionista. Autor de apenas 154 poemas, nunca permitiu que eles fossem publicados em livro. Dizia que não estavam prontos, que precisavam de revisões. Foi com esse argumento que impediu que T. S. Eliot e E. M. Forster (admiradores de sua poesia) publicassem uma edição inglesa.

NA RUA

(Trad. José Paulo Paes)


Um rosto simpático, ligeiramente pálido;

olhos castanhos, como que pisados;

parecem quando muito vinte os seus vinte e cinco anos.

Tem um não sei quê de artista no modo de vestir−se

– talvez a cor da gravata, o feitio do colarinho;

sem rumo certo vagueia pela rua,

como se hipnotizado pelo prazer ilegal,

o prazer tão ilegal que ainda há pouco desfrutou.



Começou a escrever poesia em 1882, mas renegou quase todos os poemas que escreveu antes de 1911, por considerá-los imaturos (embora À Espera dos Bárbaros, Vozes, Preces e Muros já tivessem sido escritos). Em 1904, editou um panfleto com 13 textos. A edição de 1910 foi aumentada para 21 poemas. Quando estava satisfeito com o resultado do que escrevia, mandava imprimir folhetos ou folhas soltas, que eram distribuídos entre os amigos mais próximos. Muitas vezes, logo depois da publicação, resolvia modificar algum verso ou estrofe. Mandava reimprimir o texto. Em seguida, remetia a nova versão para aqueles que tinham recebido a anterior. A ideia era descartar a versão primitiva.

Em vida, houve grande rejeição à poesia de Kavafis. Parte da intelectualidade helênica costumava zombar dos versos que ele escreveu sobre o homossexualismo – um tema que, independente dos costumes temporais, costuma agredir a moralidade pública. Além disso, poetas menores invejavam o talento do grego que não era grego.

A conferência proferida por Aleko Singopoulos, em 1918, alterou o rumo dos acontecimentos. Na tentativa de impedir que o evento se realizasse, algumas horas antes do evento, Aleko foi embriagado por amigos. Quando estava praticamente inconsciente, jogaram−no dentro de um carro de aluguel. Ao cocheiro, recomendaram que o levasse para longe da cidade. No meio da viagem, ele conseguiu se recuperar. Pulou do carro e regressou a pé. Chegou atrasado e sem fôlego. Destacando o hedonismo e a sensualidade dos versos de Kavafis, mostrando o quanto havia de renovador na poética helênica, Singopoulos escandalizou a platéia (muitos abandonaram o salão, em sinal de protesto). Em compensação, a partir desse instante, a poesia de Konstantinos Kavafis recebeu um tratamento diferenciado.


O REI DEMÉTRIO

(Trad. José Paulo Paes)


Ao ser deixado pelos macedônios,

os quais mostraram preferir a Pirro,

o rei Demétrio (que a alma tinha

grande) de modo algum – assim disseram –

como rei comportou−se. Foi tirar

as vestimentas de ouro, jogou longe

os calçados de púrpura e, envergando

roupas simples, partiu logo em seguida.

Portou−se exatamente como o ator

que, uma vez o espetáculo acabado,

troca de roupa e vai−se logo embora.


Chamado de outro Oscar Wilde por uma serie de artigos publicados em 1924, Kavafis não se abalou. Seguiu escrevendo novos poemas e corrigindo os antigos.

Em 1932, descobriu que estava com câncer na garganta. Aleko Singopoulos e sua esposa, Rika (que haviam sido nomeados herdeiros literários de Kavafis) o levaram para Atenas, onde foi submetido a uma traqueotomia. Sem voz, comunicava−se através de bilhetes.

Morreu em 29 de abril de 1933, no exato dia em que completava 70 anos.

UMA NOITE

(Trad. José Paulo Paes)


Era o quarto vulgar e miserável,

escondido no andar de cima da taverna

suspeita. Da janela avistava−se o beco,

um beco imundo e estreito. Lá em baixo,

vinham as vozes de alguns operários

que jogavam às cartas, divertindo−se.


Ali, num leito reles, ordinário,

eu tive o corpo do amor, desfrutei−lhe dos lábios

rosados e sensuais toda a ebriez –

tal ebriez dos lábios róseos, que ainda agora,

ao escrever, tantos anos depois,

nesta casa vazia, eu de novo me embriago.



quinta-feira, 20 de setembro de 2012

DOIS (DES)ENCONTROS COM MARCELO MIRISOLA

A banca de revistas ambiciona ser livraria. Enquanto esse milagre não ocorre, vai vendendo publicações populares, especializadas em bobagens sobre os próximos capítulos das novelas televisivas. Nada muito diferente do andamento geral do país. Em algumas estantes, best−sellers estão à disposição de quem ambiciona uma (inde)leve(l) camada de verniz intelectual. Também estão à venda, em separado, alguns volumes menos glamorosos. Foi lá que encontrei um exemplar de O Homem da Quitinete de Marfim. Míseros R$ 14, 90. Melhor do que isso só um sebo paulista (próximo da esquina entre a Ipiranga e a São João) que vendia livros por quilo, isso nos distantes anos 80 do século passado – quando por lá tentei morar, interessado em gastar um dinheirinho que recebi de herança. Ainda tenho um exemplar de Malagueta, Perus e Bacanaço (João Antonio) a me lembrar de episódicos episódios daqueles dias em que alternei visitas a lugares pouco recomendáveis e shows de jazz.

Os livros do Marcelo não frequentam minhas estantes. Foi o que constatei, logo que cheguei ao apartamento. Estranho. Tinha um exemplar de O Herói Devolvido. Tinha. Aparentemente, se perdeu em um desses desacertos que a vida resolve aprontar com a gente. Só encontrei o Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia. Pouco. Muito pouco. Cadê Bangalô ou O Azul do Filho Morto ou Joana a Contragosto?

Encontro nas estantes Capão Pecado (Ferréz) e Ao Som do Mar e a Luz do Céu Profundo (Nelson Motta) − que são livros ruins até não querer mais. Diante desse assombro, cabe perguntar: porque não possuo os livros do Marcelo Mirisola, que – qualitativamente − escreve muito melhor? Mistérios, mistérios. Será que declarar a posse de um exemplar de Pornografia Pessoal, obra-prima de um dos autores favoritos de Marcelo, Nilo Oliveira, diminui o meu crime? Provavelmente não. Azar. Meu − claro.

Desconhecia as crônicas que integram O Homem da Quitinete de Marfim. Quase todas escritas para um site da AOL. São muito engraçadas. Como, aliás, compete ao mau humor. O livro é garantia de muitas gargalhadas. Enfim, que a ata do condomínio registre o desatino: gostei de O Homem da Quitinete de Marfim. Sim, gostei - apesar de algumas crônicas precisarem daquilo que os modernosos chamam de up date (o livro é 2007 e há textos de 2004).

Marcelo é um daqueles caras que adoram usar metralhadora giratória. Sem se preocupar muito com danos colaterais, engata uma segunda, acelera e... foda−se. Cadáveres estendidos no chão iluminam a sua alegria. Poucos possuem coragem para embarcar nesse voo kamicase.

De qualquer maneira, as pedradas que Marcelo jogou no São Paulo Fashion Week e no Festival de Gramado mostram o quanto é afiada a pontaria do escrevinhador. Humor corrosivo atemporal, desses que só alcançam a plenitude na dramaturgia confessional (cenário a media luz, onde o autor usa e abusa de um poético e patético eu lírico, perturbado e perturbador). Confusões muito distantes dos critérios de inclusão cordial que adornam o panorama literário brasileiro. E isso significa que, ao tocar fogo na festa, Marcelo solta um monte de porradas contra a superficialidade de alguns eventos culturais, locais que confundem arte com acontecimento turístico, a vaidade borboleteando esplendorosa na passarela do inútil.

Também há algumas reflexões sobre a literatura. Sem o uso da didática educacional, usando palavrões e exemplos ambíguos, muitas vezes beirando a obscenidade, Marcelo não perdoa os medíocres: quando cometo o ato de juntar uma sílaba com a outra, penso em hecatombes, apocalipses, catedrais de ouro (...) e penso também, nos picaretas que publicam livros exotericos e de auto−ajuda, penso no Jô Soares acendendo charutos no Roda−viva (...) e que o Paulo Coelho é diretamente responsável e devia ser indiciado criminalmente (por vender milhões de livros) junto com dona Zibia Gasparetto.... Esses excessos de ternura, poemas subversivos e corruptores, resultam em assombrosa síntese: [o] Abismo [é] que é [a] salvação.

Nos textos em que lava roupa suja em público (desentendimentos com Ademir Assunção e Ivana Arruda Leite) ou em que se desmancha em elogios (Dos Nervos, Meninos de Kichute, Junichiro Tanizaki, Ricardo Lísias, Juliano Garcia Pessanha), a pegada continua forte, exageradamente passional. Estilo? Ou jogo de cena? Sei lá. Pouco importa. A ideia é mostrar uma das portas de saída do mundinho Barrichelo em que estamos vivendo – a escolha é pessoal, sair ou ficar?

O segundo (des)encontro ocorreu quando abri o exemplar de setembro da revista Cult. Sim, eu sou um daqueles que gostam de ler Cult! Marcelo está lá, contando uma viagem que fez a Montevidéu, na República Oriental del Uruguay. A passagem em que relata a quase aquisição de uma múmia, em um leilão, é antológica. Hilária. Genial. Os analfabetos funcionais, travestidos de escritores, esses mesmos que comparecem a todas as FLIPs da vida, devem estar se mordendo de inveja.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

TRÊS DÚZIAS DE FRASES QUE JAMAIS SAIRÃO DE MODA

Vista−se mal e notarão o vestido. Vista−se bem e notarão a mulher. (Coco Chanel)

O incapaz se cobre; o rico se enfeita; o presunçoso se disfarça; o elegante se veste. (Honoré de Balzac)

O estudo profundo das modas é a literatura de muitas mulheres. (Pierre Beauchêne)

Todos os vícios, quando estão na moda, passam por virtude. (Jean Molière)

A moda é a única lei que todos obedecem – provavelmente porque é facultativa. (Pierre Vèron)

O bom gosto é o pior vício já inventado. (Edith Sitwell)

Em matéria de moda, são os loucos que ditam a lei aos sensatos, as cortesãs que o impôem às mulheres honestas, e o melhor que temos a fazer é respeitá−la. (Dênis Diderot)

Há pessoas que têm um impecável mau gosto. (Otis Fergunson)

As modas são legítimas nas coisas menores, como o vestuário. No pensamento e na arte, são abomináveis. (Ernesto Sábato)

Chegar à harmonia no mau gosto é o máximo da elegância. (Jean Genet)

Certas roupas femininas nunca saem de moda. Apenas ficam mais ridículas com o passar dos anos. (Fred Allen)

A moda é o refinamento que corre à frente da vulgaridade e teme ser ultrapassado. (William Hazlitt)

Moda é estar eventualmente nua. (Vivienne Westwood)

Quando, afinal, nos acostumamos com uma moda e porque ela já está completamente em decadência. (Millôr Fernandes)

Moda, afinal de contas, não passa de uma epidemia induzida. (George Bernard Shaw)

A moda é uma variação tão intolerável do horror que tem de ser mudada de seis em seis meses. (Oscar Wilde)

Moda é a arte de transformar coisas bonitas em feias ou coisas feias em bonitas em função do momento em que são apresentadas. (Gilmar Iendrick)

Um aviso às mulheres: nunca usem roupas capazes de assustar um gato. (P. J. O’Rourke)

Eu me visto para as mulheres e me dispo para os homens. (Angie Dickinson)

Louva−se ou critica−se muitas coisas porque está na moda louvá−las ou criticá−las. (François La Rochefoucauld)

Para ser original, basta imitar os autores que já não estão na moda. (Jules Renard)

A maneira de falar e de escrever que nunca passa de moda é a de falar e escrever sinceramente. (Ralph Waldo Emerson)

Quando se diz que um escritor está na moda, isso quer dizer que ele é admirado por menores de trinta anos. (George Orwell)

A moda é o que a gente traz. O que está de fora da moda é o que trazem os outros. (Oscar Wilde)

Todos os vestidos da mulher são simples variações da eterna luta entre o desejo confesso de se vestir e o desejo inconfesso de se despir. (Lyn Yutang)

Nunca use bijuteria – estraga a reputação de uma mulher. (Colette)

O salto alto foi inventado por uma mulher que só tinha sido beijada na testa. (Christopher Morley)

Brega é perguntar o que é chique. Chique é não responder. (Zózimo Barroso do Amaral)

Sou contra a moda que não dure. É o meu lado masculino. Não consigo imaginar que se jogue uma roupa fora, só porque é primavera. (Coco Chanel)

Muitos homens pensam que o que importa numa mulher é o que se vê por fora. Mas a lingerie também e importante. (Humprey Bogart)

A incredulidade que é da moda nas pessoas jovens, torna−se o seu tormento na velhice. (Marquês de Maricá)

Seja realista. Se as pessoas não estão interessadas no que você tem a dizer, por que estariam interessadas no que a sua camiseta está dizendo? (Fran Lebowitz)

A moda é uma variante oblíqua de se lutar contra a morte. Ora na velhice essa luta é problemática. E é por isso que no velho a moda é problemática. (Vergílio Ferreira)

A elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado sutil de se distinguir. Portanto, saber a hora de aparecer ou deixar alguém aparecer é o que pode haver de mais chic. Civilizado é não invadir e não abusar. (Glorinha Kalil)

Os detalhes são sempre vulgares. (Oscar Wilde)

A moda sai de moda, o estilo jamais. (Coco Chanel)


terça-feira, 18 de setembro de 2012

SERENA

Tour de force narrativo, falso romance de espionagem, exercício excessivo de metaficção – são muitas as possibilidades para adjetivar Serena, romance de Ian McEwan. Tentando abranger uma parte do terreno instável onde a política e a literatura se encontram, as 380 páginas do livro estão conectadas com as (cada vez mais raras) estruturas ficcionais que culminam em desfechos surpreendentes.

Com o olhar voltado para o passado, década de 70 do século XX, no auge da Guerra Fria e da contracultura, Serena Frome (pronuncia−se Frum), alinhando os fatos em ordem cronológica, com linguagem simples e clara, sem omitir detalhes, relata, em primeira pessoa, a própria história. Filha de um bispo anglicano e recém−formada em matemática em Cambridge, apesar de ter interesses literários, Serena ingressa de maneira desajeitada no MI5 (um dos segmentos de segurança e contra−inteligência do Estado Britânico). Depois de algum tempo como funcionária burocrática subalterna, recebe ordens para participar de uma operação de recrutamento. Disfarçada de funcionária de uma fundação que distribui bolsas literárias, consegue cooptar o escritor Thomas Healy para lutar pelos valores democráticos (que raramente são valiosos e democráticos − se alguma coisa pode ser assim designada).

Em tese, emulando o estilo de George Orwell, Thomas Healy deveria escrever panfletos contra o socialismo e o comunismo. No entanto, na medida em que o tempo vai escorrendo pela ampulheta narrativa, ocorrem vários desvios de função. O escritor não se mostra domesticado o suficiente para atender os interesses de quem o está pagando. Escreve vários contos sobre desacertos afetivos e uma distopia sobre a devastação humana (imitando J. G. Ballard). Ganhar um prêmio literário não melhora a situação.

Para mostrar a produção literária, a narradora, em exercício surpreendente de metaficção, espalha fragmentos dos textos ao longo da narrativa. Desinteressada de discussões sobre estilo ou inovações formais, sua percepção está ligada com a empatia pessoal. Ou gosta ou não gosta. Então, quando comenta (com alguma crueldade) as narrativas escritas por Healy, o faz baseada em valores pouco racionais. Ela não sabe distinguir um escritor do outro. Eis o descompasso e a confirmação literária: fiel ao texto que está narrando, Serena foge das complicações: Eu disse que não gostava de truques, eu gostava da vida que eu conhecia, recriada no papel. Ele disse que não era possível recriar a vida no papel sem truques.

A situação se complica quando Thomas e Serena iniciam um relacionamento amoroso. Como acontece eventualmente, a felicidade dispara o gatilho do rancor. Um colega de Serena, visivelmente apaixonado, julgando−se traído, resolve sabotar a operação e deixa vazar algumas informações para a imprensa. O escândalo estampado nas primeiras páginas dos tablóides coloca um freio nos objetivos ideológicos. O casal se separa.

O fim da narrativa somente se torna público 40 anos depois, quando Serena publica as suas memórias e, espelhando um tempo muito complicado da história mundial, revela que o destino de algumas pessoas é o de ser manipulado pelo sistema ou por pretensos amigos. É a carta de Thomas, no último capítulo do romance, que estabelece o arremate – e a decepção. Ao contrário da realidade, a cor que a ficção reflete na vida dos outros está repleta de surpresas.

Junto com Martin Amis e Hanif Kureishi, Ian McEwan é, provavelmente, um dos escritores ingleses mais criativos. Publicou dois livros de contos e mais de dez romances. Os mais conhecidos são: Amsterdam (1998), Reparação (2001), Sábado (2005) e Na Praia (2007). Amsterdam recebeu o Brooker Prize de 1998.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

TODA SUA (UM ROMANCE PORNOGRÁFICO)

Mais do mesmo é uma das melhores fórmulas para o sucesso. E para enganar o público. Esse recurso costuma ser usado principalmente para quem não possui talento. Esse recurso costuma ser usado principalmente por quem possui talento para plagiar. Basta reciclar um modelo consagrado, mudar algumas bobagens aqui e ali, alterar nomes, centralizar o enredo em algum lugar charmoso – e utilizar todos os recursos de marketing que estiverem ao alcance.

Salvo engano, Toda Sua, primeiro volume da trilogia Crossfire, escrito pela estadunidense Sylvia Day, deve ser o romance pornográfico mais ridículo que a indústria editorial brasileira teve coragem de comprar no lixo das publicações mundiais. Sintomaticamente − segundo o discurso persuasivo da orelha –, alguns leitores e críticos especializados o consideram melhor do que Cinqüenta Tons de Cinza, de E. L. James. Difícil acreditar nessa conversa para boi dormir. A narrativa da inglesa possui um vestígio de enredo, uma linha muito vagabunda por onde o texto flui. Nem isso a cópia pode declarar. A estética proposta pelo livro de Sylvia Day é idêntica a dos filmes pornográficos – muita ação e pouca reflexão. Há quem goste. E isso, obviamente, explica porque esse tipo de porcaria vende milhares de exemplares. Ou porque a editora responsável pela publicação no Brasil optou por usar uma capa aveludada (imitando, mais uma vez,Cinqüenta Tons de Cinza).

Toda Sua coleciona clichês. Os piores possíveis. Gideon Cross, um charmoso empresário multimilionário, se apaixona por Eva Tramell, funcionária de uma empresa de publicidade. Ela também é milionária – dessas que não se preocupam com o dinheiro (que está sob guarda do atual padrasto). Residindo em Nova Iorque, freqüentando os melhores restaurantes, bebendo champanhe como se fosse água mineral, o casal vive uma relação passional, repleta de crises emocionais. A cada dois segundos, ou umas dez páginas, discussões furiosas, brigas histéricas. Os motivos são banais. Ciúmes e intolerância liderando a fila. As reconciliações são ganchos para intermináveis e detalhadas descrições sexuais. Tem de quase tudo: cunnilingus, felação, sexo vaginal. As restrições ficam por conta de um diferencial: Gideon e Eva foram vítimas de abuso sexual no passado. A história de Eva já foi revelada: o filho adolescente de um dos muitos homens que desfilaram pela cama de sua mãe ultrapassou a linha da decência e a estuprou quando tinha dez anos. Estranhamente, em lugar de se mostrar frígida ou temerosa com relacionamentos sexuais, Eva se tornou um vulcão sexual. Melhor para Gideon − que desfruta de toda essa loucura. Quer dizer, nem sempre ele consegue aproveitar. Gideon apresenta defeito em algumas circunstâncias. Parassonia sexual atípica é o nome científico da doença que o acomete: comportamento violento durante o sono, freqüentemente envolvendo agressão sexual contra o(a) parceiro(a).

Além desse problema, Gideon Cross sofre da necessidade quase dolorosa de fornecer orgasmos para sua parceira. Muitas mulheres sonham com esse tipo de Príncipe Encantado. Provavelmente, imaginam que ganharam na loteria. Como esse tipo de homem só é possível em fantasia, ou em livros ruins, o leitor ou a leitora logo percebe o básico: as aparências enganam e o sujeito esconde muitos segredos.

Cary Taylor, uma espécie de valet de chambre de Eva Tramell, complementa a linha de frente da narrativa. Modelo fotográfico, bissexual e autodestrutivo, Cary mora junto com Eva e serve como conselheiro sentimental da ninfomaníaca. Ao mesmo tempo, acrescenta significativas doses de ação ao livro: ao final do texto, durante um ménage à quatre", se diverte sendo um dos recheios de um sanduíche duplo.

Toda Sua não é literatura. No máximo, na falta de algum vídeo pornô, material para masturbação.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

ALGUÉM PARA AMAR NO FIM DE SEMANA

Literatura é conquistar o leitor com boas histórias. Basta um enredo criativo, linguagem límpida, objetiva, e esses truques do a-pós-o-modernismo (experimentações com múltiplos narradores, monólogo interior, prolepses e analepses, metaficção, auto−ficção, fricção demi bombé) se tornam supérfluos. O que vale é a simplicidade dos relatos com início, meio e fim − nessa ordem. Que a desordem é de outra ordem − concorde ou não o leitor. O que importa é o combate corpo−a−corpo. Passeios por alcovas e matagais, ais e uis femininos compondo parte da trilha sonora. Gozar é a regra. Sem medo, sem culpa, sem desculpa. Tesão como estratégia narrativa.

Alguém para Amar no Fim de Semana, livro de contos (uma quase novela fragmentária, como diz Luiz Ruffato), brinca de dar voltas em torno de si mesmo, como que a querer voltar ao ponto. Retomar a ponta. Da erva maldita. O livro é todo perfumado. Un concentré d'odeurs intimes de femme, diria algum poeta passadista, desses que esquecem que o amor rima com dor em poemas paupérrimos; um desses poetas que nunca conseguirão apre(e)nder que a felicidade não se mistura com as fantasias românticas.

Luis Roberto Guedes, maitre à penser, driblando a selvageria atemporal que acompanha o existir, não deseja se afogar em pouca água. Quer exercer suas vontades em, no mínimo, um oceano. Talvez para poder construir embarcações com as palavras. Talvez para se esconder da crueldade − essa mulher com um sorriso encantador. Ou será enganador? Não importa. A vida é confusão. Fusão de equívocos e perigos. Pessoas inexistentes, Dois Elementos num Jipe Amarelo ou A Ilha dos Caranguejos relatam, delatam, o fluxo da barbárie.

Em outro tom, a voz de Billie Holiday escorrendo pelo mundo, formigando a pele, produzindo arrepios, prometendo sabores sexuais: o escritor cego que é seduzido (ou seduziu?) a secretária; a potência emocional do marido impotente que autoriza o acesso adolescente às necessidades da esposa; o desesperado que telefona para todas as mulheres que conhece e não encontra alguém para acompanhá-lo em uma festa (ou a um motel). O cenário de bolero fora de moda se completa no imobilismo do cara que foi abandonado pela mulher amada e recebe a visita do meio−irmão (que está se mudando para o Rio de Janeiro). Quando percebe que o isqueiro foi esquecido em cima da poltrona, o rejeitado corre até a rua para devolver o objeto e descobrir que destino de corno é triste: Deu tempo de ver uma figura de mulher no banco do passageiro, e de ouvir sua risada de pura felicidade, aquela risada infantil de Maria Alice.

Alguns contos são bem−humorados. Quer dizer, agridoces: o sabor travoso está sempre presente, a impor avisos de que as aparências enganam e que, por trás do cenário com cada coisa em seu lugar, há todo tipo de improvisos e violências. Josué Peregrino (algumas vezes acompanhado por seus primos, Zelito e Jefferson, ou pelo baterista Marcão), na medida em que tenta escapar da loucura cotidiana, assemelha−se a um Argonauta: quer encontrar o velocino de ouro. Nada muito explícito. Quem é que consegue resistir aos seios durinhos da namorada? Joboy é que não. Aos prazeres bem remunerados proporcionados pela mulher que complementa a renda de empregada doméstica domesticando ereções? Novamente Joboy sucumbe. Loucura pouca é bobagem, comprova quando encontra Maia Moon na Lua Minguante – esfinge que estabelece oásis outros.

A vida − pulsante, visceral, brutal – está presente em todas as páginas de Alguém para Amar no Fim de Semana. Para o bem ou para o mal, parece desmentir uma das melhores frases do livro: Só escritores é que se ocupam de pessoas que não existem.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

VIDA – TRÊS DÚZIAS DE FRASES

Viver bem é a melhor vingança. (Provérbio Basco)

Vida é o que acontece enquanto você está fazendo outros planos. (John Lennon)

A vida é dura e os cem primeiros anos são os piores. (Wilson Mizner)

Viver é desenhar sem borracha. (Millôr Fernandes)

A vida é uma doença incurável. (Abraham Crowley)

A vida é uma ópera bufa com intervalos de música séria. (Machado de Assis)

Só há duas coisas inevitáveis na vida: morte e impostos. (Benjamin Franklin)

Antes de suportar a vida, convém tomar anestesia. (Karl Kraus)

Nunca precisei de sonhos para interpretar minha vida, mas da vida para interpretar meus sonhos. (Susan Sontag)

Uma vida inteira de felicidade! Nenhum homem vivo conseguiria suportá−la. Seria o inferno. (George Bernard Shaw)

Que bela comédia seria essa vida se não fôssemos os protagonistas dela! (Denis Diderot)

Tudo bem que a vida humana não passe de um teatro. O problema é que grande parte dela é só um melodrama barato. (Malcolm Muggeridge)

Muitas vezes a vida real é aquela que não vivemos. (Oscar Wilde)

Viver faz mal à saúde, envelhece, cria rugas, dá reumatismo, ataca os rins, o fígado e o coração. (Fernando Sabino)

Descobri cedo na vida que continuar vivendo era a única maneira de continuar sobrevivendo. (Groucho Marx)

Entre as três melhores coisas da vida, comer está em segundo e dormir em terceiro. (Stanislaw Ponte Preta)

Vida é algo que se faz quando não se consegue dormir. (Fran Lebowitz)

Meço minha vida com colherinhas de café. (T. S. Eliot)

No desenvolvimento da vida intelectual, só se extravia quem sabe aonde está indo. (Oscar Wilde)

O fato básico sobre a existência humana não é o de que ela seja uma tragédia, mas uma chatice. (H. L. Mencken)

O sentido da vida é que ela acaba. (Franz Kafka)

(...) A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. (Machado de Assis)

A vida é uma coisa muito importante para ser discutida a sério. (Oscar Wilde)

Aqueles que não conseguem vencer na vida, vingam−se falando mal dela. (Voltaire)

A vida não é tão ruim assim, desde que você tenha sorte, saúde e pouca imaginação. (Christopher Isherwood)

Levar uma vida dupla é a única preparação adequada para o casamento. (Oscar Wilde)

A vida não é um retrato: é uma caricatura, e nem é parecida. (Millôr Fernandes)

Os vivos são os mortos em férias. (Maurice Maeterlinck)

A vida só lhe dera alegrias médias e dores máximas. (Machado de Assis)

A vida pode ser um cabaré, mas não no meu bairro. (Fran Lebowitz)

A vida se divide entre horrível e miserável. (Woody Allen)

Saio da vida para entrar na Historia. (Getulio Vargas)

Envelhecendo, tornamo−nos mais loucos e mais sábios. (La Rochefoucauld)

Envelhecer não é tão mau assim, quando se considera a alternativa. (Maurice Chevalier)

Todo mundo e capaz de envelhecer. Basta viver o suficiente para chegar até lá. (Groucho Marx)

A morte não é o fim. Sempre resta a briga pelo espólio. (Ambrose Bierce)

(As ilustrações reproduzem pinturas do estadunidense Edward Hooper, 1882-1967)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

PARAÍSOS ARTIFICIAIS


Uma das trilogias que caracterizam o a−pós−a−modernidade (sexo, drogas e música eletrônica) encontra companhia nas histórias que acenam para o desencontro (amoroso, familiar, social). Em outras palavras, por mais injusto que isso possa parecer, o prazer possui prazo de validade e finais felizes não são compatíveis com narrativas que tangenciam a marginalidade comportamental.

Paraísos Artificiais (Dir. Marcos Prado, 2012), título que remete ao texto clássico de Charles Baudelaire, é um filme com um pé no consumo e outro no tráfico de drogas sintéticas. Acenando para a tradição da história musical – que está repleta de músicos dependentes químicos de todos tipos, independente do gênero musical – e dos drug-dealers, a história inicia em uma rave em uma praia no Nordeste e continua em Amsterdam. Reunindo clichês do mundo underground o filme dialoga (mesmo que seja de forma rápida) com algumas narrativas transpostas para o cinema: O Expresso da Meia−Noite (Midnight Express. Dir. Alan Parker, 1978), Trainspotting (Trainspotting. Dir. Danny Boyle, 1996), Réquiem para um Sonho (Requiem for a Dream. Dir. Darren Aronofsky, 2000) e Meu nome não é Johnny (Dir. Mauro Lima, 2008), entre outros.

A diferença está no tom utilizado pelo diretor do filme, que se apoiou na suavidade romântica para contar uma história sobre os perigos resultantes da falta de unidade familiar e da autodestruição. Além disso, como filtro para diluir questões mais agudas, Marcos Prado misturou inúmeras cenas de sexo selvagem e algumas ilusões: em terras européias, a história interrompida no Brasil se transforma em algo mais profundo. Unificando as situações, um menino criado sem o amor do pai.

Tudo começa quando Erika (Nathalia Dill) e Lara (Lívia de Bueno), junto com inúmeros amigos alternativos, participam de uma rave. Erika é DJ e foi contratada para trabalhar na festa. Lara não tem muitas ambições: quer aproveitar das coisas boas da vida. Isso significa dançar muito, ficar chapada o tempo todo e trepar sempre que for possível. Quando as duas mulheres estão juntas, Nando (Luca Bianchi), típico garotão carioca, é envolvido em uma rede de sedução – de onde não faz o mínimo esforço para escapar.

O resultado de tamanha confusão é uma tragédia básica (Lara morre em consequência de uma overdose). Os três amantes se separam. Sobram cicatrizes dolorosas.

Nando e Erika se encontram alguns anos depois em Amsterdam – o rapaz, por falta de sensatez, concorda em ser mula do tráfico internacional. Nova separação. Na volta ao Brasil, Nando é preso e passa quatro anos na prisão.

O desfecho da trama somente ocorre no Rio de Janeiro, quase por acaso, em uma dessas soluções ad hoc que caracterizam narrativas com problemas de amarração estrutural.

Parte do dinamismo do filme foi resolvido na mesa de montagem. Intercalar os três momentos temporais (rave, Amsterdam e depois que Nando saiu da prisão) é um truque que se mostra sumamente eficiente para conseguir captar a atenção do espectador.

Outro diferencial é a trilha sonora, que foi composta por Rodrigo Coelho e produzida por Gustavo MM. No set list estão Deadmou5, Renato Cohen, Flow et Zeo, Froga Cult e Magnetrixx.

Produzido por José Padilha (leia−se Tropa de Elite 1 e 2), Paraísos Artificiais tenta fornecer uma nova versão para um problema antigo: como aproveitar o que há de bom nas drogas e escapar impune. Não chega nem perto. O moralismo burguês não consegue se controlar e, repetindo inúmeros lugares comuns em parábolas edificantes, nada faz além de repetir o óbvio.

Marcos Prado, diretor de Paraísos Artificiais

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

SEXO, MENTIRA E CINEMA

A história da arte sempre se alimentou de pequenos escândalos, que resultam em grandes confusões. De Michelangelo a Jackson Pollock, de Amadeus Mozart a Cole Porter, de Buster Keaton a Peter Greenaway, de Homero a James Joyce, independente da qualidade da obra artística, o que a marcará como diferente das demais – e, por isso mesmo, com maior número de admiradores e inimigos (leia−se público) – é a intensidade da polêmica que causou no momento em que foi apresentada.

Como grande parte da inteligentzia adora usar esse tipo de estratégia (também conhecida como síndrome do holofote), a regra geral passou a ser o uso de inovações (efeitos especiais, por exemplo) e temas polêmicos para obter o sucesso a qualquer preço. Todos estão cientes de que um bom marketing, independente de ser contra ou a favor, garante futuro e dinheiro.

No final do século passado, o filme Romance (Romance X. Dir. Catherine Breillart, 1999) obteve 15 minutos de fama. Infelizmente, pelos motivos errados. Apresentado como pornográfico, o filme teve sessões concorridas em 2000, no Festival do Cinema Francês, que teve edições em São Paulo e no Rio de Janeiro.

O mais significativo é que Romance − assim como alguns outros filmes, inclusive o excelente Nove canções (9 Songs. Dir. Michael Winterbottom, 2004) − não é pornográfico. Embora pareça. Motivos para tal confusão não faltam. A curiosa presença de Rocco Sifreddi, astro de centenas de filmes de sexo explícito, é um bom motivo para colocar o filme sob suspeita. Mas, convenhamos, suspeita é uma palavra tola diante da cena em que o garanhão italiano revela todo o seu, digamos, potencial artístico. São oito minutos (segundo os tarados que cronometraram) de sexo explícito.

E, como se não bastasse, o Romance coleciona outras delicadezas de igual quilate (felação, sadomasoquismo, estupro, etc.). É um prato cheio – para quem gosta deste tipo de iguarias.

Apesar disso tudo, Romance não pode, não deve, ser considerado um filme pornográfico. Por quê? Simples, não é um filme sobre sexo – embora tenha sexo, o que, convenhamos, é muito diferente.

Na modernidade não há mais lugar para aquelas metáforas pretensamente ingênuas, que eram usadas no início do cinema hollywoodiano: o quarto com duas camas; o casal entrando no quarto; a porta que se fecha lentamente; a câmara, como se fosse uma extensão de nossa curiosidade, focada no exato instante em que, através da fresta da porta, alguém apaga a luz lá dentro. Na platéia, o público dava uma piscadinha marota, demonstrando que havia entendido as sutilezas do desejo.

Na vida real não é assim. Diante da encruzilhada, os teóricos costumam perguntar: o cinema precisa ficar reduzido ao artificial? Mais do que depressa, respondem: não. Apoiados no pensamento de alguns diretores contemporâneos, principalmente europeus, defendem a tese de que o cinema, ou melhor, um entre os diversos tipos de cinema, deve estar comprometido com a realidade de tal forma que seja possível obter o grau zero de irrealidade (mesmo que, paradoxalmente, esses momentos possam parecer reais demais).

Romance é um filme triste. Desses que muitos espectadores dirão que é chato, insuportavelmente chato. Estão errados. O brasileiro médio está (muito mal) acostumado com o ritmo do cinema estadunidense (muita ação, pouco sentimento).

Romance procura outro andamento narrativo e aposta no tom intimista para retratar o desencontro amoroso. Paul (Sagamore Stevenin) e Marie (Caroline Ducey) estão em crise: Paul não mais deseja sexualmente Marie. Não é somente isso: há poucos sentimentos unindo o casal, falta um entender o que o outro quer. Quando conversam, as frases são desconexas, sem sentido, sem amor – assim como a relação que eles vivem. Frustrada, Marie procura outros homens. No entanto, esses encontros são insuficientes para resolver os problemas que a afligem.

Em Romance, as cenas de sexo explícito são uma forma de expressar o quanto a vida pode ser deprimente quando não se possui objetivos definidos. Esse desconforto, expresso nas atitudes dos personagens e visível nos olhos dos espectadores, parece real, como a história de alguém que conhecemos (e que, claro, muitas vezes mimetiza a nossa).

O desfecho da trama é complicadíssimo e daria um bom ensaio, desses que analisam misoginia, delírios feministas e sub−psicanálise. Breillat, com o nítido propósito de embolar o meio de campo, adota um final de características literárias. Marie fica grávida. Paul (que talvez seja o pai da criança) morre. No velho estilo viúva alegre, Marie recupera a alegria de viver.

Romance é um filme provocativo, desses que colocam o espectador contra a parede. As cenas de sexo explícito são tão agressivas que perdem a função considerada principal: excitar. O efeito que o filme causa é outro: assustar. Ninguém está preparado para ir ao cinema (ou assistir um DVD) e ver certas intimidades – que, o conservadorismo burguês gostaria de guardar debaixo do tapete, junto com outras sujeiras do cotidiano. Há também, como contraponto, a ilusão romântica de que as crises foram feitas para ser superadas e, lá pela metade do filme, não faltará espectador que aposte que, depois de 95 minutos (tempo de duração do filme), tudo voltará aos eixos. A mão firme de Catherine Breillat não deixa isso acontecer. O cinema europeu, felizmente, tem outra estética.


P. S: Este texto, com ligeiras modificações, foi publicado originalmente no jornal A Notícia (Joinville, SC, 13/02/2000, p. C6).