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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

FANTASIA LITERÁRIA: GEOGRAFIA


As mais eficazes armadilhas do realismo literário estão escondidas atrás das informações substantivas, “concretas”. Elementos do verossímil são espalhados pelo texto com o propósito elementar de negar (de uma forma ou de outra) que a ficção é produto criado pelo imaginário. Esse truque, que constitui parte indissociável do discurso, estabelece o ordenamento narrativo.

Datas históricas, locais facilmente reconhecíveis, situações triviais – vale tudo para que a experiência sociocultural do leitor se integre com os elementos constitutivos do texto. Alguns teóricos defendem a tese que o segredo da qualidade literária está nesse encaixe. Outros... Discordam.

Em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, Umberto Eco comenta uma experiência bastante divertida. Na noite de 23 para 24 de junho de 1984 ocorreu um grande incêndio em Paris. Casaubon, personagem de O Pêndulo de Foucault, está caminhando próximo desse local.  O problema é que o narrador do romance não cita o incêndio. Um leitor, que pesquisou jornais da época, reclamou dessa omissão.

Umberto Eco considera um exagero pretender que uma história de ficção correspondesse inteiramente ao mundo real no qual se situa. Difícil discordar dessa afirmação. No entanto... Há vários tipos de leitores e várias maneiras de ler ficção. Assim como há leitores que aceitam vampiros, lobisomens e bruxos infantojuvenis como verossímeis, também há quem queira encontrar no texto ficcional um espelho do real. Em outras palavras, essa mentira saborosa chamada pacto ficcional pode (e deve) ser comparada com uma salada de frutas – sabores e texturas se confundem no gozo literário.

De qualquer forma, narrativas em que  os deslocamentos geográficos são uma característica marcante instituem um tipo especial de discussão sobre o verossímil.  

Se a geografia narrativa for composta ad hoc, como nas Crônicas de Fogo e Gelo (George R. R. Martin), a consulta frequente aos mapas incluídos em cada um dos volumes fornece substância ao mundo imaginário. Embora estejam reduzidas ao mundo ficcional, Winterfall, Pentos e a Muralha ganham o mesmo status de realidade que, a partir de outros textos, Zenda, Xanadu e Gothan City. O leitor incorpora a topologia imaginária à geopolítica literária.    

 Se, por outro lado, o deslocamento for realizado em compasso on the road, como o recente A Terrível Intimidade de Maxwell Sim (Jonathan Coe), consultar o mapa “verdadeiro”, acompanhando o deslocamento do personagem pela Inglaterra e Escócia, acrescenta um novo (e saboroso) ingrediente ao prazer de ler. Lugares inimagináveis – mas que existem de fato – ampliam a experiência sensorial da leitura.

Como a ficção não possui compromisso com a verdade ou com a mentira, mas trafega entre as duas – flertando com o perigo e com a confusão – alguns leitores se desesperam.  Isso é bom ou ruim? Nem uma coisa nem outra. Ilusão e consistência beiram a sinonímia.

Se o leitor não concordar com esse artifício, nada mais restará senão abandonar o livro e a leitura. A única verdade possível na literatura é que cada história inventa as próprias verdades e mentiras. Resta escolher entre conviver com o mundo preto e branco da objetividade cartesiana ou mergulhar nas infinitas possibilidades instituídas pela fantasia.  

Umberto Eco, autor de Seis Passeios pelos Bosques da Ficção.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A HISTÓRIA DOS OSSOS



Quem iria ao cemitério reivindicar um morto que não era seu?

Família é território imaginário, instável, nômade – oásis onde sentimentos contraditórios oprimem e libertam. Quando se acrescenta a esse barril de pólvora um pouco de instabilidade emocional, o resultado mais comum é a perda dos parâmetros que instituem a racionalidade. 

A máquina de moer sentimentos, como alguém denominou a família, não costuma perdoar quaisquer deslizes.

Nunca entendi direito o porquê de um livro extremamente poético, que trata de dois momentos familiares importantes, A História dos Ossos, publicado em 2005, não ter recebido a devida consideração da crítica ou dos estudos acadêmicos. São apenas 68 páginas, dois contos aparentemente interligados – embora tratem de assuntos e linguagens completamente diferentes.

No primeiro texto, O cão no sótão, narrado pelo irmão mais novo, a mãe e os dois filhos se mudam para São Paulo – o pai fica morando no litoral. Logo depois, o filho mais velho vai morar sozinho. No sótão do escritório que trabalhava, começa a escrever uma peça de teatro. As mudanças psíquicas e comportamentais que ocorrem com o irmão mais velho vão sendo registradas com uma linguagem pesada, emaranhado de vozes indistintas, misturando o real e o imaginário, a insanidade e a dramaturgia. Em algum momento, quando desabam as vigas da coerência, o desfecho trágico se transforma em extensão do que estava sendo anunciado desde a primeira linha do conto.

A segunda história, A história dos ossos, relata várias mortes – e isso a torna mais humana. Ou seja, mais assustadora. O narrador recebe a notícia de que houve uma infiltração no túmulo do pai. O cemitério está em obras e alguém da família precisa resolver a situação. A viagem ao litoral, como uma espécie de passeio sentimental, reconstrói a ponte afetiva. Para mim, a cidade sempre fora uma faixa de areia cinza que mudava de tom em direção ao mar.  O presente e o passado, integrados, colocam em evidência um elemento pouco agradável: nada resiste ao desgaste do tempo. Segurando o embrulho de papel pardo com os ossos paternos, deixa para trás o cais, o porto, o mar. Deveria procurar pelo crematório, em vez disso entra na barafunda de ruas estreitas em que se aglomeravam bancos, casas de cambio e comercio, escritórios de contabilidade, galpões de torrefação, lojinhas de carimbos e centenas de oficinas miúdas instaladas nos térreos das casas. Nesse labirinto, onde se confunde a cidade que existia na memória e a cidade por onde está caminhando, outras urgências se pronunciam. Em um bar, (...) senti uma vontade estúpida de trepar. O sexo sem amor, o amor distante do sexo, o peso da herança familiar, a tarde modorrenta. Depois de dirigir por ruas desconhecidas, deixa o carro numa praça. No trapiche, aluga um barco. Meti o remo na água e fui cavando, cavando devagarinho para dentro do lagamar. A última morte, talvez a síntese de todas as outras, ocorre quando as mãos firmes arrebentam o pacote: Com um palmo de largura, virei a boca para baixo e ouvi uns sons, uns quatro ou cinco sons, só, como um sussurro, um gole no escuro.


O escritor e artista plástico (xilogravura e escultura) Alberto Martins nasceu em Santos (SP), em 1958. 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O RUÍDO DAS COISAS AO CAIR


A literatura colombiana está invadindo o Brasil. Faz algum tempo. Cerca de quarenta anos. Há quem diga que o fenômeno teve a sua origem quando Gabriel García Márquez (Cem anos de solidão) ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982. Quem conhece a literatura sul−americana discorda, lembrando que − antes que o realismo mágico se transformasse em boom literário − os livros de Álvaro Mutis (A neve do Almirante) faziam algum sucesso nas livrarias brasileiras.

De qualquer forma, em oposição aos viejos, a literatura colombiana contemporânea está se mostrando bastante diversificada. Ao lado do estilo irreverente de Efraim Medina Reyes, que manda o comportamento politicamente correto para o espaço em textos instigantes como Técnicas de masturbação entre Batman e Robin ou Era uma vez o amor mas tive que matá−lo, é possível encontrar o realismo agressivo de Fernando Vallejo − que não poupa nada ou ninguém em A virgem dos sicários e Despenhadeiro. Um dos melhores retratos do Brasil, durante o período em que os governos militares estiveram no poder, está em Impávido colosso, de Daniel Samper Pizano. Santiago Gamboa realiza um estudo quase anatômico do imigrante latino (que vai para a Europa estudar ou fugir dos governos autoritários) no divertidíssimo A síndrome de Ulisses. Os temas políticos também estão presentes na prosa límpida de Laura Restrepo (Heróis demais).


Publicado no Brasil, no início de 2013, o romance O ruído das coisas ao cair, de Juan Gabriel Vásquez, acrescenta novo agrupamento de situações e personagens a essa biblioteca babélica. O romance ganhador do Prêmio Alfaguara de 2011 está centralizado no narcotráfico. E talvez esse seja o seu maior defeito. Embora pareça ser uma narrativa isenta, dessas que somente desejam expor um conjunto de fatos, há alguns momentos de visível conservadorismo. Faltam explicações sobre como as questões macroscópicas se movimentam ao redor do tráfico. Há lacunas visíveis quando são abordados assuntos como a corrupção estatal e os interesses políticos.

Sobrou apenas um relato ingênuo, em primeira pessoa, voltado para um passado que ele mesmo fabrica, pois Lembrar cansa, isso é coisa que não nos ensinam, a memória é uma atividade exaustiva, drena as energias e desgasta os músculos. Ou seja, o narrador escolhe cuidadosamente a violência que deseja descrever. Fingindo buscar a explicação que não deseja fornecer, descarta toda e qualquer complicação que seja capaz de tumultuar a linearidade do relato.

A história do piloto de aviões Ricardo Laverde fornece substância à vida medíocre do professor universitário Antonio Yammara, o narrador. Enquanto o primeiro decide transgredir as regras sociais, ignorando as diferenças que separam o certo do errado, o segundo representa o poder normativo − o seu relato defenderá essa tese em 246 páginas.

Ricardo e Antonio se conhecem em um salão de bilhar, um daqueles lugares aonde vão em busca de alguma estabilidade as pessoas cuja vida, por qualquer razão, esteja instável. Eles jogam carambola, uma modalidade que exige grande habilidade − em cada tacada, para marcar pontos, o jogador precisa que a bola branca toque nas outras duas bolas. A amizade entre eles se desenvolve cheia de reticências, como se fosse fruto de algumas péssimas tacadas. Em dado momento, por questões particulares, eles se afastam um do outro. Ficam um bom tempo sem ter contato. A parte mais significativa do relato inicia quando eles se reencontram.

A experiência, isso que chamamos experiência, não é o inventário de nossas dores, mas a simpatia aprendida pelas dores alheias – diz o narrador, em algum ponto do texto, abrindo as portas para o que há de mais nocivo na comiseração. Ao descrever, da maneira mais superficial que lhe foi possível, a história amorosa de Ricardo Valverde e Elaine (Elena) Fritts, interrompida por vinte anos de cadeia e a queda de um avião de passageiros, Antonio Yammara aproveita a oportunidade para assumir o proscênio de uma história que nunca foi a sua. Nessa confusão, a própria incapacidade de gerir uma família se mistura com a história colombiana: estava ainda a salvo: a salvo da peste de meu país, de sua atribulada história recente: a salvo de tudo aquilo que me acossava como a tantos de minha geração (e também de outras, sim, mas principalmente da minha, a geração que nasceu com os aviões, com os vôos cheios de sacos e sacos de maconha, a geração que nasceu com a guerra contra as drogas e conheceu depois as conseqüências).

Antonio Yammara, o narrador, como se estivesse gerenciando um cassino, distribui cartas marcadas. Segundo a sabedoria popular, em qualquer tipo de aposta somente a casa ganha – perde o leitor que se deixa encantar pelo canto da sereia ou pelas trapaças de um narrador pouco confiável.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

GOSTO DISTO AQUI, UM ROMANCE DE KINGSLEY AMIS

O humor e a literatura formam um lindo casal, desses que deixam para trás uma fila de pessoas invejosas quando são vistos caminhando de mãos dadas pelas ruas da cidade. Em oposição, a depressão, a rapidez tecnológica e a necessidade predatória de ganhar dinheiro impedem que esse arranjo se torne rotina. A exceção, salvo engano, está ao lado da literatura inglesa − que possui uma vontade inquebrável de corroer com certos padrões de seriedade. Obviamente, essas brincadeiras não constituem motivo para comentários grotescos em mesa de bar, ao final da tarde, depois de um longo e cansativo dia de trabalho. Os britânicos gostam de provar de outra água, com cor e sabor muito diferentes. O nível de entendimento para o wit exige rapidez de reflexos, inteligência e habilidade crítica. Ou seja, para eles o sorriso de canto de lábios parece ter mais sabor do que a gargalhada escrachada.

Praticamente desconhecido no Brasil, Kingsley William Amis (1922−1995) foi um dos grandes prosadores ingleses surgidos depois da II Guerra Mundial. Ao lado de John Osborne, Philip Larkin, John Wain, Harold Pinter, John Braine, William Cooper, Colin Wilson, entre outros, fez parte de um grupo conhecido como Angry Young Men.

Os Jovens Zangados (Irritados, Revoltados) eram contemporâneos por idade, não por identidade ideológica ou estética − embora criticassem comportamentos e grupos econômicos. Intelectuais, quase todos oriundos da classe trabalhadora ou da baixa classe média, se espalharam pela poesia, prosa, teatro e filosofia. Expressavam, com bastante veemência, desprezo e frustração com a ordem sociopolítica do Reino Unido − que não aproveitou as reformas pós−guerra para banir algumas formas de exclusão social e econômica. Do ponto de vista artístico, os Angry Young Men eram conservadores - evitavam qualquer experimentalismo radical.

Embora recebido o Booker Prize por The Old Devils, de 1986, quase todos os romances de Kingsley Amis desapareceram na poeira do tempo, exceto, talvez, Lucky Jim, publicado em 1954 − que trouxe fama (Somerset Maugham Award) e algum dinheiro ao autor. Ao todo, Amis escreveu duas dúzias de romances, vários livros de poesias, contos e crítica literária, três livros sobre bebidas e um volume de memórias. Casou duas vezes e teve três filhos. Foi sagrado Cavalheiro pela Rainha Elizabeth II em 1990, mas a sua vida costuma ser diminuída por dois acidentes literários: foi grande amigo do talentoso poeta Philip Larkin e, não menos importante, pai do romancista Martin Amis.

Martin Amis, quando jovem, ao lado do pai, Kingsley Amis
Um de seus mais divertidos romances, embora não seja um dos mais significativos, Gosto Disto Aqui (I Like It Here), foi publicado em 1990 pela editora portuguesa Cotovia. Um dos motivos que justificaram essa edição é a curiosidade literária. Embora a ação narrativa esteja situada em Portugal, o "aqui" do título se refere à Inglaterra – medida de todas as coisas, referência inquestionável para distinguir o certo e o errado, o educado e o quase selvagem.

Garnet Bowen, escritor inglês que sobrevive fazendo free lancer jornalístico, aceita escrever uma reportagem para uma publicação estadunidense. Seu amigo, Bennie Hyman, que trabalha em uma grande editora, ao saber que o amigo vai viajar para o continente, o convence a mudar a rota e ir até Portugal, onde, com despesas pagas, deve tentar desvendar um pequeno mistério literário. Ou seja, confirmar o autor de um manuscrito que a editora recebeu. Como se trata de um texto "menor", há a suspeita de não ter sido escrito por um famoso escritor − o maior talento indiscutivelmente surgido desde a morte de Conrad.

Em princípio, deveria ser uma tarefa fácil. Alguns pequenos obstáculos impedem o sucesso. Garnet Bowen viaja com a família (três filhos e a esposa) e o carro. Defensor da tese de que os filhos devem crescer sem qualquer tipo de auxilio do pai, a natureza provavelmente suprindo todas as lacunas (psicológicas, sociais e educacional), sonha com a tranqüilidade e a felicidade. Obviamente, as crianças aniquilam com qualquer possibilidade disso acontecer.

Contrastando as qualidades da Inglaterra com os defeitos que vê nos países estrangeiros, inclusive a forma engraçada com que falam a língua inglesa, o narrador do romance descreve um Portugal de caricatura. Para os brasileiros (que falam e escrevem uma variação muito particular da língua portuguesa), a reunião do pedantismo dos ingleses com as idiossincrasias lusitanas resulta em boas risadas.

Somente quando consegue se livrar da esposa, dos filhos e do carro, é que Garnet (que detesta ser chamado de Garret) consegue se concentrar em resolver o enigma que o levou para aquela parte da Europa. Embora ocorram vários episódios ridículos nesse intervalo, consegue concretizar a tarefa. E voltar a Inglaterra – único lugar no mundo onde se sente bem.

Martin Amis, não muito jovem, ao lado do pai, Kingsley Amis


Kingsley Amis, em razão da postura anti−estabilishment dos primeiros romances, foi considerado esquerdista. Em 1957, declarou lealdade ao Partido Trabalhista. No entanto, dez anos depois, no ensaio Why Lucky Jim Turned Right (Porque Jim, o sortudo, virou à direita), anunciou uma surpreendente guinada para a direita. Desse momento em diante adotou uma postura conservadora em relação aos diversos assuntos políticos da época: a guerra do Vietnam, armas nucleares, expansão do ensino, direitos das mulheres.


TRECHO ESCOLHIDO


− Pai?

− O que é?

− De que tamanho é o barco que nos vai levar a Portugal?

− Não sei bem. Bastante grande, acho.

− Tão grande como uma baleia assassina?

− O quê? Ah, sim, claro.

− Tão grande como uma baleia azul?

− Sim, claro, tão grande como qualquer espécie de baleia.

− Maior?

− Sim, muito maior.

− Quanto maior?

− Esquece quanto maior. É só maior, é o que posso dizer−te. Não há para aí um livro de quadradinhos para ler?

− O Mark está a ler o único que ainda não li, pai.

− Mark, és capaz de dar esse livro de quadradinhos ao David e ler outro, só por um bocadinho? Esse é o único que ele ainda não leu.

− Também é o único que eu ainda não li, pai.

− De qualquer modo, eu não quero ler, quero conversar.

− Valha−me Deus.

− Pai.

− O que é?

− Se dois tigres saltarem para cima de uma baleia azul, podem matá−la?

− Ah, mas isso não podia acontecer, compreendes. Se a baleia estivesse no mar, os tigres afogavam−se logo, e se a baleia estivesse...

− Mas supondo que eles saltavam para cima da baleia?

− ... em terra, morreria rapidamente, de qualquer maneira. Tenho a certeza disso. Ou talvez já estivesse morta. Sim, acho que tinha que estar, tinha que estar em terra. De qualquer modo, não podia acontecer.

− Mas supondo que podia?

− Valha−me Deus. Bom, penso que os tigres talvez matassem a baleia, mas levaria muito tempo.

− Quanto tempo levaria um tigre?

− Mais tempo ainda. Agora não respondo a mais perguntas sobre baleias ou tigres.

− Pai.

− O que é agora, David?

− Se duas serpentes marinhas...

Nesta altura Bowen proibiu o filho mais velho de abrir a boca, sob pena de mutilação física. Foi feita e autorizada uma petição de excepção em casos de excreção iminente ou de vômitos, mas só porque naquela altura os cinco Bowens viajavam de automóvel. Bárbara conduzia com concentração e perícia, e até com certa energia (...).


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

CARTA ABERTA AO SÉRGIO FANTINI

Sérgio,

Recebi teu livro (Silas) faz algum tempo, mais de seis meses. Lembro que o li quase que imediatamente. Se eu fosse o sujeito organizado que gosto de fingir que sou, deveria ter feito algum comentário na primeira oportunidade, logo depois de ter recebido o livro. O problema é que costumo deixar tudo para depois – que é uma forma confortável de ser irresponsável. Além disso, Sérgio, não posso negar que o fantasma de Macunaíma gosta de passar longas e intermináveis temporadas aqui em casa. O tempo escorre, a inércia faz aniversário e eu continuo lendo um livro atrás do outro, sem me incomodar com aqueles que ficaram para trás.

Semana passada, ao revirar as estantes, tirar o pó de alguns livros, separar outros para um artigo que sonho escrever daqui a alguns dias, percebi que estava em débito contigo. Como reparar tamanha falha? Não sei. Aliás, também não sabia onde estava o teu livro. Nas estantes não o encontrei. Um amigo costuma dizer que os livros adoram se esconder e que, quando os estamos procurando, são eles que nos encontram − nunca o contrário. Fui procurar lá no quarto. Costumo, de forma idiossincrática, separar aqueles que merecem atenção dos que ainda não foram lidos. Essa foi a chance de mudar um pouco a história, de resolver o mistério. Não posso tê−lo perdido, repeti baixinho, várias vezes, como se essa frase fosse um mantra, como se fosse escudo suficiente para afastar os maus espíritos.

Salvo pelo gongo. Encontrei o volume. A capa, coloridíssima, que me lembra, por algum motivo, Roy Lichtenstein, o pintor pop estadunidense, é um belo cartão de visitas. Aliás, queria dizer (escrever?) uma bobagem. Mais uma. Posso? Lá vou eu: teu livro tem potencial para ser adaptado para o formato graphic novel. O engraçado, Sérgio, é que as expressões romance gráfico, história em quadrinho e gibi estão fora de moda.

Arrisco outro palpite: a modernidade odeia a língua portuguesa. Em qualquer situação possível, todos, pois é, todos os militantes culturais preferem usar alguma palavra da língua inglesa. Triste sina a dos escrivinhadores nacionais: condenados ao século passado – tempo em que a língua nacional era outra, muito diferente dessa que está sendo usada pela comunidade descolada. A norma culta e o coloquial foram substituídos por alguma forma de comunicação que eu ainda não sei o que é – e que, obviamente, não domino. Todos os dias percebo que fiquei anacrônico. E isso não é a melhor parte do que me cabe nesse latifúndio.   

Tergiversei. Mais uma vez. Essa é outra qualidade que podes encontrar no meu cultivar.

Sérgio, de vez em sempre faço esforço colossal para tentar omitir o que deveria ser claro e pedagógico. Neste caso, o do teu livro, fiz uma viagem ao redor do nada antes de conseguir dizer que seria interessante ver imagem e texto conjugados em unidade, a carne e o espírito, se me perdoa a metáfora cristã, igualmente fora de moda. Algumas cenas estão delineadas com um tipo de linguagem que imagino, mesmo sem ter certeza, própria para amalgamar palavra e desenho.

Estou errado? Posso estar. A crítica cultural, graças aos deuses que a protegem (ou a amaldiçoam), está repleta de equívocos. Alguns grosseiros. Outros, alegres desatinos. Coisas do destino. Passeios emocionais, como esse transitar de Silas pelas ruas das cidades, pelos bares, consumindo pedaços de carne, sentindo as dores tatuadas na pele.

Como cabe ao imaginário composto no fin−de−siècle, a solidão e o mau−humor de Mário, o dono de um dos botecos de Diz Xis, projetam o futuro. A vida costuma cobrar caro pelas fugas. Pelas decisões. Poucos conseguem perceber os sinais que o destino vai espalhando ao redor. E isso é engraçado. Ou farsesco. O que for de agrado do freguês.

Historicamente, desde os tempos coloniais, quando o barroco plantou as sementes das narrativas esparramadas, o penduricalho se tornou uma característica importante da literatura brasileira. Atualmente, não falta quem use da desculpa de que esse recurso é necessário para atingir a totalidade. Bobagem. Contar uma história não precisa de trezentas páginas descritivas. Graciliano Ramos e Ernest Hemingway continuam atualíssimos – só não vê quem não quer ver. Teu texto (linguagem enxuta, exata, que não deixa espaço para os adjetivos) provavelmente bebeu nessas fontes magistrais. Ganhou o leitor.

Simultaneamente, como compete a um artesão da palavra, você não tem pressa. As palavras escorrem pelas páginas produzindo imagens de grande densidade poética – mesmo quando apontam para o páthos (paixão, sofrimento, doença). Em cena, encenando algum tipo de ópera bufa, aqueles personagens que podemos qualificar como gente fina (traficantes, prostitutas, bêbados, a escória do lado menos edulcorado do mundo). Nenhum problema. Nós (eu, você, o leitor) somos eles.

Nos dois últimos contos, Silas, 30 do 2° Tempo e Silas, Velho, o que vale é o ritmo. Alternando diálogos cortantes com um pouco de humor difícil de ser decifrado, as narrativas fluem com segurança, sem medo de cortar o pulso diante do público, sem esperar aplauso. Poucos conseguem essa concisão, essa precisão. 

Por fim, ou enfim, queria pedir desculpas por ter demorado tanto tempo para escrever alguma coisa sobre teu livro.

Abraços,