Páginas

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

GOSTO DISTO AQUI, UM ROMANCE DE KINGSLEY AMIS

O humor e a literatura formam um lindo casal, desses que deixam para trás uma fila de pessoas invejosas quando são vistos caminhando de mãos dadas pelas ruas da cidade. Em oposição, a depressão, a rapidez tecnológica e a necessidade predatória de ganhar dinheiro impedem que esse arranjo se torne rotina. A exceção, salvo engano, está ao lado da literatura inglesa − que possui uma vontade inquebrável de corroer com certos padrões de seriedade. Obviamente, essas brincadeiras não constituem motivo para comentários grotescos em mesa de bar, ao final da tarde, depois de um longo e cansativo dia de trabalho. Os britânicos gostam de provar de outra água, com cor e sabor muito diferentes. O nível de entendimento para o wit exige rapidez de reflexos, inteligência e habilidade crítica. Ou seja, para eles o sorriso de canto de lábios parece ter mais sabor do que a gargalhada escrachada.

Praticamente desconhecido no Brasil, Kingsley William Amis (1922−1995) foi um dos grandes prosadores ingleses surgidos depois da II Guerra Mundial. Ao lado de John Osborne, Philip Larkin, John Wain, Harold Pinter, John Braine, William Cooper, Colin Wilson, entre outros, fez parte de um grupo conhecido como Angry Young Men.

Os Jovens Zangados (Irritados, Revoltados) eram contemporâneos por idade, não por identidade ideológica ou estética − embora criticassem comportamentos e grupos econômicos. Intelectuais, quase todos oriundos da classe trabalhadora ou da baixa classe média, se espalharam pela poesia, prosa, teatro e filosofia. Expressavam, com bastante veemência, desprezo e frustração com a ordem sociopolítica do Reino Unido − que não aproveitou as reformas pós−guerra para banir algumas formas de exclusão social e econômica. Do ponto de vista artístico, os Angry Young Men eram conservadores - evitavam qualquer experimentalismo radical.

Embora recebido o Booker Prize por The Old Devils, de 1986, quase todos os romances de Kingsley Amis desapareceram na poeira do tempo, exceto, talvez, Lucky Jim, publicado em 1954 − que trouxe fama (Somerset Maugham Award) e algum dinheiro ao autor. Ao todo, Amis escreveu duas dúzias de romances, vários livros de poesias, contos e crítica literária, três livros sobre bebidas e um volume de memórias. Casou duas vezes e teve três filhos. Foi sagrado Cavalheiro pela Rainha Elizabeth II em 1990, mas a sua vida costuma ser diminuída por dois acidentes literários: foi grande amigo do talentoso poeta Philip Larkin e, não menos importante, pai do romancista Martin Amis.

Martin Amis, quando jovem, ao lado do pai, Kingsley Amis
Um de seus mais divertidos romances, embora não seja um dos mais significativos, Gosto Disto Aqui (I Like It Here), foi publicado em 1990 pela editora portuguesa Cotovia. Um dos motivos que justificaram essa edição é a curiosidade literária. Embora a ação narrativa esteja situada em Portugal, o "aqui" do título se refere à Inglaterra – medida de todas as coisas, referência inquestionável para distinguir o certo e o errado, o educado e o quase selvagem.

Garnet Bowen, escritor inglês que sobrevive fazendo free lancer jornalístico, aceita escrever uma reportagem para uma publicação estadunidense. Seu amigo, Bennie Hyman, que trabalha em uma grande editora, ao saber que o amigo vai viajar para o continente, o convence a mudar a rota e ir até Portugal, onde, com despesas pagas, deve tentar desvendar um pequeno mistério literário. Ou seja, confirmar o autor de um manuscrito que a editora recebeu. Como se trata de um texto "menor", há a suspeita de não ter sido escrito por um famoso escritor − o maior talento indiscutivelmente surgido desde a morte de Conrad.

Em princípio, deveria ser uma tarefa fácil. Alguns pequenos obstáculos impedem o sucesso. Garnet Bowen viaja com a família (três filhos e a esposa) e o carro. Defensor da tese de que os filhos devem crescer sem qualquer tipo de auxilio do pai, a natureza provavelmente suprindo todas as lacunas (psicológicas, sociais e educacional), sonha com a tranqüilidade e a felicidade. Obviamente, as crianças aniquilam com qualquer possibilidade disso acontecer.

Contrastando as qualidades da Inglaterra com os defeitos que vê nos países estrangeiros, inclusive a forma engraçada com que falam a língua inglesa, o narrador do romance descreve um Portugal de caricatura. Para os brasileiros (que falam e escrevem uma variação muito particular da língua portuguesa), a reunião do pedantismo dos ingleses com as idiossincrasias lusitanas resulta em boas risadas.

Somente quando consegue se livrar da esposa, dos filhos e do carro, é que Garnet (que detesta ser chamado de Garret) consegue se concentrar em resolver o enigma que o levou para aquela parte da Europa. Embora ocorram vários episódios ridículos nesse intervalo, consegue concretizar a tarefa. E voltar a Inglaterra – único lugar no mundo onde se sente bem.

Martin Amis, não muito jovem, ao lado do pai, Kingsley Amis


Kingsley Amis, em razão da postura anti−estabilishment dos primeiros romances, foi considerado esquerdista. Em 1957, declarou lealdade ao Partido Trabalhista. No entanto, dez anos depois, no ensaio Why Lucky Jim Turned Right (Porque Jim, o sortudo, virou à direita), anunciou uma surpreendente guinada para a direita. Desse momento em diante adotou uma postura conservadora em relação aos diversos assuntos políticos da época: a guerra do Vietnam, armas nucleares, expansão do ensino, direitos das mulheres.


TRECHO ESCOLHIDO


− Pai?

− O que é?

− De que tamanho é o barco que nos vai levar a Portugal?

− Não sei bem. Bastante grande, acho.

− Tão grande como uma baleia assassina?

− O quê? Ah, sim, claro.

− Tão grande como uma baleia azul?

− Sim, claro, tão grande como qualquer espécie de baleia.

− Maior?

− Sim, muito maior.

− Quanto maior?

− Esquece quanto maior. É só maior, é o que posso dizer−te. Não há para aí um livro de quadradinhos para ler?

− O Mark está a ler o único que ainda não li, pai.

− Mark, és capaz de dar esse livro de quadradinhos ao David e ler outro, só por um bocadinho? Esse é o único que ele ainda não leu.

− Também é o único que eu ainda não li, pai.

− De qualquer modo, eu não quero ler, quero conversar.

− Valha−me Deus.

− Pai.

− O que é?

− Se dois tigres saltarem para cima de uma baleia azul, podem matá−la?

− Ah, mas isso não podia acontecer, compreendes. Se a baleia estivesse no mar, os tigres afogavam−se logo, e se a baleia estivesse...

− Mas supondo que eles saltavam para cima da baleia?

− ... em terra, morreria rapidamente, de qualquer maneira. Tenho a certeza disso. Ou talvez já estivesse morta. Sim, acho que tinha que estar, tinha que estar em terra. De qualquer modo, não podia acontecer.

− Mas supondo que podia?

− Valha−me Deus. Bom, penso que os tigres talvez matassem a baleia, mas levaria muito tempo.

− Quanto tempo levaria um tigre?

− Mais tempo ainda. Agora não respondo a mais perguntas sobre baleias ou tigres.

− Pai.

− O que é agora, David?

− Se duas serpentes marinhas...

Nesta altura Bowen proibiu o filho mais velho de abrir a boca, sob pena de mutilação física. Foi feita e autorizada uma petição de excepção em casos de excreção iminente ou de vômitos, mas só porque naquela altura os cinco Bowens viajavam de automóvel. Bárbara conduzia com concentração e perícia, e até com certa energia (...).


Nenhum comentário:

Postar um comentário