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segunda-feira, 18 de março de 2013

NOTURNO DO CHILE

Na história das ditaduras latino-americanas, o conluio entre os militares e a religião católica nunca constituiu surpresa. Em alguns casos, foi apenas um desdobramento natural das relações de poder. E isso significa dizer que, divididos entre defender os pobres e fechar os olhos para o arbítrio político, alguns servos do Senhor pecaram várias vezes. Seja por omissão, seja por colaboração.

O padre e crítico literário Sebastián Urrutia Lacroix (que adotava o nom de plume H. Ibacache) está morrendo. Na ânsia de impedir que alguns acontecimentos que viveu ou presenciou desapareçam na vala comum do esquecimento, gastou os seus últimos dias na redação de um verborrágico depoimento. É difícil não perder o fôlego no único parágrafo que constitui as 118 páginas de Noturno do Chile, novela de Roberto Bolaño. Inclusive porque o real e o delírio estão misturados em proporções desequilibradas.
Transitando entre o que aconteceu e o que imaginou, Sebastián faz um pequeno inventário da história literária do Chile – antes, durante e depois do governo de Augusto Pinochet. A parte mais folclórica ocorre “durante”. Contratado para um serviço que deve ser prestado na penumbra e na mudez, longe do fulgor das medalhas, ministra nove aulas. O combinado eram dez. A última não acontece. Os alunos, integrantes da junta militar que depôs Salvador Allende, estavam satisfeitos. Não era mais necessário continuar com os ensinamentos sobre marxismo.

Escondido atrás do argumento que a religião e a literatura operam em uma esfera superior às ambições humanas, Sebastián fecha os olhos para tudo o que o possa comprometer em um mundo em transição política. Blindado, conduz 90% de seu relato. Somente nas páginas finais, quando as forças vitais parecem estar se esgotando, quando não mais é possível tergiversar, é que revela o inominável.

Como se fossem criaturas especiais, desses que estão acima do bem e do mal, os artistas chilenos (aqueles que não haviam sido mortos, exilados ou presos) se reuniam uma vez por semana em saraus literários e etílicos na enorme casa de campo de María Canales, uma escritora de segunda classe. Para que ninguém fosse tentado a ir embora antes do amanhecer, quando era suspenso o toque de recolher instituído pelos militares, havia comida, bebidas e conversa. Tudo em quantidade.

A casa era enorme, três andares e um porão. Sebastián conta que certo dia um dos convidados, seja porque estava bêbado, seja porque tinha péssimo senso de direção, quando foi procurar pelo banheiro, errou o caminho e acabou entrando em um corredor a que os estranhos à vida diária da casa não deveriam ter acesso. Foi abrindo portas e mais portas, encontrou quartos vazios e mais corredores. Desceu uma escada. Abriu a última porta. Acendeu a luz. E viu o que estava escondido diante dos olhos de todos. Sobre uma cama metálica, um homem nu estava amarrado pelos pulsos e tornozelos. A pessoa que havia se extraviado, subitamente recuperada da bebedeira, apagou a luz, fechou a porta e foi embora – o mais rápido possível.

Algum tempo depois, a notícia se espalhou como se fosse rastilho de pólvora. Prisioneiros políticos eram torturados no porão da casa de campo de María Canales. Não era boato ou invenção. O marido de María, agente da CIA, estava a serviço da ditadura.

Era assim que se fazia literatura no Chile, diz, entristecida e lúcida, María Canales – enquanto olha para as ruínas que a cercam, enquanto não é devorada pela grande máquina de moer carne do tempo.

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