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segunda-feira, 10 de junho de 2013

A MORTE DO PAI, VERSÃO NORUEGUESA


Exemplares de A Morte do Pai, primeiro volume dos seis que constituem a série autobiográfica Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgård, estavam expostos na vitrine da livraria.

Inevitável catálogo de dúvidas geográficas e literárias. Noruega? Quem escreve na Noruega? Ao lado da pergunta indigesta, a resposta trivial: difícil lembrar daqueles nomes com muitas consoantes e poucas vogais que caracterizam os escritores nascidos na Escandinávia. Menos de cinco minutos na Internet revelam que o mundo é pequeno e a ignorância, enorme. Ao lado do teatrólogo Henrik Ibsen (1828-1906), autor de obras-primas como Casa de Bonecas e O Inimigo do Povo, está Knut Hamsun (1859-1952), Prêmio Nobel de Literatura de 1920, famoso por narrativas como Fome e Um Vagabundo Toca em Surdina – textos ligeiramente fora de moda, mas de inegável qualidade. Há outros, muitos outros, basta citar um exemplo recente, o romance O Meio-irmão, de Lars Saabye Christensen, que obteve relativo sucesso nos círculos intelectuais menos dependentes da lixeratura convencional.

Karl Ove Knausgård
Folheando A Morte do Pai, um pouco de alívio pelas recordações não entrarem em curto-circuito. Nos momentos de crise emocional, a união de palavras-chaves como morte e pai pode se transformar na fagulha que destrói o equilíbrio psíquico. Em alguns casos, além de gerar alucinações, produz avalanches de emoções. Há iniludível desconforto quando se torna necessário enfrentar a representação de uma história (em) comum. Menos traumático deve ser construir castelos de cartas.

Mesmo que pareça mórbido, viver em família implica em carregar cadáveres (reais, imaginários, simbólicos). E todos são pesados – insuportavelmente pesados. Poucos indivíduos possuem força para arrastar esse fardo com um mínimo de elegância. A estradinha cheia de buracos que conduz até as Moiras (Cloto tece o fio da vida; Láquesis cuida da extensão e do seu desenrolar; Átropos determina o fim da existência), também encaminha para a danação eterna. O inferno somos nós. Por pertença ou anátema. E a válvula de escape para o exterior desse lamaçal incompreensível está na invenção do inimigo. Transferir para o Outro a infração. Ou a inflamação. Sem escrúpulos, sem pânico.

Henrik Ibsen
Depois de ler rapidamente a “orelha”, comprei um exemplar de A Morte do Pai. Há algo de terapêutico em transferir para a vida alheia os fantasmas que nos assustam. Embora esse anestésico – na maioria dos casos – se mostre pouco eficaz, quase protagoniza o afastamento dos problemas legítimos. Será essa uma forma razoável de dissimulação? O silêncio preenche o temor de que a resposta seja sim. Mas também não elimina o medo se for não.

Verborrágicas. As 511 páginas de A Morte do Pai flertam com a dispersão narrativa. Leitores impacientes (acostumados com o ritmo frenético da literatura pragmática estadunidense, repleta de ação, diálogos e nenhuma reflexão) provavelmente não terão calma para atravessar esse mar muitas vezes excessivo, onde as palavras flutuam sem demonstrar o mínimo cansaço. O tom depressivo também não contribui para angariar alguma simpatia.

Knut Hamsun
Alguns críticos literários lançaram a hipótese absurda de que a voz literária de Karl Ove Knausgård se assemelha com a de Marcel Proust. Tolice. Marketing de segunda categoria – desses que embrulham interesses comerciais em embalagens sofisticadas. Faltam as frases espiraladas e intermináveis, as metáforas que se desdobram como evocação sensorial, a elaboração sofisticada da tessitura literária. Knausgård, misturando intermináveis divagações pseudo-filosóficas e lembranças embaciadas – e que vão sendo recuperadas aos poucos, seja como construção da memória, seja como artifício ficcional –, lembra (de longe, muito longe) Milan Kundera. O que talvez não seja exatamente um elogio.

Usando o cadáver do pai como ponto de partida, Knausgård desenvolveu significativa coreografia em torno da morte. Uma cerimônia do adeus muito particular. Uma forma de tentar romper com antigas carências – que, mesmo depois da morte paterna, continuam apavorando, asfixiando. Difícil suportar (superar) a rejeição. Traumas e cicatrizes não podem ser corrigidos por psicólogo ou cirurgião plástico.

O fluxo da história, através de dezenas de recuos e avanços no tempo narrativo, se alimenta de episódios desencontrados da infância e da adolescência. Algumas recordações ampliam os graus de tensão afetiva, comprovando que nem mesmo a distância temporal corrige o desacerto familiar.

Talvez seja isso que Knausgård tenta esclarecer quando menciona os filhos. Os seus e os de Yngve, o irmão. Misturando ternura, lágrimas e um pouco de melancolia, ele esboça uma estrutura familiar diferente daquela com que teve conviver antes de atingir a maturidade. Foi com horas de leituras e futebol que sobreviveu à separação dos pais – e, consequentemente, à solidão. A falta de segurança e autoestima – qualidades que sobram no irmão (modelo paterno que tentou seguir durante algum tempo para preencher a lacuna psicológica) – foram superadas pela couraça emocional.

Quando Knausgård recebe a notícia que o pai foi encontrado morto, sentado em uma cadeira, não há surpresa. Alcoólatras são suicidas em potencial. São indivíduos que costumam lançar os familiares nas ruínas que constroem diariamente. Dor e sofrimento estão na contramão da dignidade. Em Kristiansand, os dois irmãos (diante do cadáver paterno, diante daquele que – de uma forma ou de outra – os havia amado e oprimido com igual intensidade) contemplam a fragilidade da vida.


TRECHO ESCOLHIDO


 O mesmo carro estava estacionado perto da entrada, o mesmo homem abriu a porta quando bati. Ele me reconheceu, meneou a cabeça, abriu a porta da sala onde estivéramos na véspera, sem entrar, e eu me vi novamente diante de papai. Dessa vez estava preparado para o que me esperava, e seu corpo, a pele devia ter escurecido ainda mais com o passar de mais vinte e quatro horas, não despertou nenhuma das sensações que tinham me invadido na véspera. Agora eu via somente a ausência da vida. E já não havia diferença entre aquilo que um dia fora meu pai e a mesa onde ele jazia, ou o chão onde estava a mesa, ou a tomada na parede embaixo da janela, ou o fio que ia até a luminária ao lado dele. Pois os seres humanos são apenas formas em meio a outras formas, as quais o mundo não cessa de reproduzir, não só naquilo que tem vida, mas também naquilo que não tem, desenhando na areia, na pedra e na água. E a morte, que eu sempre considerara a maior dimensão da vida, escura, imperiosa, não era mais do que um cano que vaza, um galho que se quebra ao vento, um casaco que escorrega do cabide e cai no chão.

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