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terça-feira, 29 de outubro de 2013

MADRUGADA SUJA

O português Miguel Sousa Tavares colheu os seus merecidos quinze minutos de fama com um romance de incontornável qualidade: Equador. O trabalho seguinte, Rio das Flores, também é bom e visivelmente superior a No Teu Deserto – uma narrativa frouxa.

Madrugada Suja, o quarto romance, mistura humor e melancolia em poções desmedidas, um pouco desta, menos daquilo, sem se importar muito com o andamento narrativo desigual – que flerta descaradamente com uma das significativas contradições dos romances realistas do século XIX, isto é, o conflito entre o bucolismo da área rural e os mecanismos de sedução do mundo urbano. Em todas as páginas da narrativa também há uma discussão (quixotesca) em torno das diferenças morais entre o certo e o errado.  

O enredo gira em torno da vida de Filipe Madruga, arquiteto paisagista, e que só tem o avô como parente vivo (que reside nas lonjuras portuguesas de Medronhais da Serra). Funcionário público menor, aos poucos vai descobrindo elementos da própria história: (...) aos trinta anos, a vida ainda mal começara a doer! A mais significativa revelação está contida na carta que sua mãe, Maria da Graça, endereçou a Francisco, o marido, pouco tempo antes de morrer. Depois de jurar amor eterno ao marido, confessou adultério e que Filipe é filho do comborço. A carta jamais chegou ao conhecimento do destinatário, pois foi retida por Filomena, mãe de Francisco – que no interesse da harmonia familiar acreditou que não cabia promover a segunda morte da esposa de seu filho.

A isso se acrescenta incidente próximo da tragédia, ocorrido nos tempos em que Filipe frequentava a Universidade de Évora. Por razões que estão fora de seu controle e dos valores que defende, não consegue evitar que o fantasma do passado o visite – e de forma brutal. Ao emitir parecer desfavorável à construção de um resort de luxo, acaba arrastado por uma serie de acontecimentos vertiginosos – que multiplicam a sensação de impotência. Por isso, movido pela racionalidade ou pelo desespero, adota o procedimento mais radical possível. Um náufrago agarrando uma bóia encontrada à deriva e mesmo antes de se afogar, Filipe, ao procurar pelo pai biológico, interfere na vida política de Portugal. A conversa entre os dois é tensa, repleta de arestas: 

– Sabes de uma coisa? – Luis Morais debatia-se ainda com a sua derrota. – Tu tiveste a sorte de nascer meu filho e o azar de não teres sido educado por mim.
– Não, está enganado – respondeu Filipe, calmamente. – É exactamente ao contrário: tive o azar de nascer teu filho e a sorte de não ter sido educado por si.

Rompido o cordão umbilical que os une, restam destroços, desentendimentos, complicações. Tanto que, ao se despedir, Filipe determina o que está em jogo: Não sei qual é o seu limite. O meu é o de não deixar que a tristeza de fazer isso seja mais forte do que o remorso de não o ter feito. Peço desculpas, mas não vi outra saída.

Para o pecado cometido na juventude também não há saída. Entretanto, no último momento, uma porta se abre inesperadamente, mostrando o caminho da salvação.  

Repleto de diálogos ágeis e cortantes, Madruga Suja reafirma a lição de que a literatura não perde a qualidade quando faz a defesa intransigente de valores éticos e morais.



TRECHO ESCOLHIDO 

Quando soube do escândalo do padre Anselmo, deu-me um baque, uma moléstia de coração, que me pregou à cama por três dias, receitado de chás de cebola e infusões de alecrim. Não que eu conseguisse entender exactamente o que significa o facto terrível de a professora Fátima ter sido apanhada de saias em baixo na sacristia com o padre Anselmo – ele de saias em cima, pois era o tempo em que os padres ainda não usavam calças. Eu não entendia exactamente o significado carnal, brutal, do acontecimento, mas pressagiava que o meu caso futuro com a professora Fátima não tinha futuro. Entendi que tinha sido traído – a primeira de outras vezes na minha vida. E a sensação foi horrível: a cabeça azoava por todos os lados, o peito parecia querer rebentar, as tripas viraram-se do avesso e, por mais de uma vez, pensando na obscena cena da sacristia, ergui-me cambaleante na minha cama de enfermo e vomitei a alma sobre os espessos lençóis de linho do enxoval da minha mãe. Assim, eu vomitava a alma de que o Anselmo era suposto cuidar e sofria no corpo de que a professora Fátima se haveria de ocupar: será que existe forma mais cruel de um rapaz se começar a tornar adulto?

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