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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

TODOS NÓS ADORÁVAMOS CAUBÓIS

A maturidade literária é um estágio difícil de ser alcançado. Somente os “eleitos” (seja o que isso possa significar) conseguem chegar lá. São muitas as barreiras, são muitas as promessas – que não se cumprem. Muita gente fica pela beira do caminho. Nenhuma novidade.

Não levei a sério o texto da Carol Bensimon, Faíscas, publicado naquela edição pouco séria da revista Granta (que perdeu o rumo e a sensatez tentando nomear os melhores escritores brasileiros abaixo dos 40 anos). Pareceu-me uma bobagem. Duas meninas em um road book, preenchendo os espaços vazios com diálogos sobre a cor ideal para pintar os cabelos? Nonsense. Além disso, há um visível ar de drama besta, típico dessas historinhas pequeno-burguesas, em que os personagens descobrem a Europa antes do que o próprio país. A isso se acresce o fato de que perdi meu tempo lendo o romance anterior da Carol, Sinuca Embaixo d`Água (aqueles narradores múltiplos, todos iguaizinhos, aquela tristeza exagerada, depressiva). Tô fora!, disse para mim mesmo.

Tô dentro!, disse para mim mesmo, aceitando o fato de que o primeiro capítulo de um romance está longe de representar o conteúdo todo. De qualquer forma, a vida está repleta desse tipo de tropeção, faz parte do show. Como exercício cristão, essas coisas de mea culpa e tolices correlatas, só me sobra contar que comprei um exemplar de Todos Nós Adorávamos Caubóis. Comprei desconfiando. Será que o terceiro livro (os contos do primeiro, Pó de Parede, são sensacionais) acerta na mosca ou é mais um caso de mosca na sopa? Então, antes de adquirir o livro, pensei: vai que a guria melhorou e eu estou patinando no pré-conceito? Mais ou menos uns dez dias depois o livro estava em mãos. Li, de um fôlego só, absolutamente surpreso, as primeiras cem páginas. Narrativa esteticamente encorpada, repleta de nuances e revelações, Todos Nós Adorávamos Caubóis é um texto límpido, bonito, que flui mansamente pelo olhar do leitor. Contra fatos não há argumentos ou remendos, dizia minha avó. Então, nada mais me restou senão entregar os pontos. Está cada vez mais difícil encontrar na literatura brasileira contemporânea alguém que escreve assim, como estivesse bebendo água. E que consegue misturar à qualidade o insuperável gostinho de quero mais.

A história que une Cora (personagem e narradora) e Julia Ceratti não é muito diferente de outras narrativas em que o afeto dá as cartas (marcadas) em um jogo que nenhum dos participantes conhece as regras. Alguma coisa parecida com erro e acerto, cada uma das duas mulheres tateando no corpo da outra os elementos que compõem a liberdade. Comprovação elementar de que não é fácil criar uma receita fashion wear que combine Penélope Charmosa com botas Doc Martens.

Bastava olhar para mim com alguma atenção. Aos dezesseis anos, eu ainda era o que os falantes de inglês chamariam de tomboy. Em outras palavras, digamos que as tias e as tias-avós adoravam me puxar em um canto a fim de sugerir mudanças drásticas na minha aparência, afinal eu ficaria tão bem com um vestidinho estampado e uma sandalinha, e por que eu não soltava o cabelo?, cabelos soltos valorizariam muito os traços delicados do meu rosto.


Outra coisa bacana no texto da Carol é o uso do dialeto regional. Embora não seja algo inovador, constitui uma forma de dizer não à tese de que o Brasil foi unificado pela língua portuguesa. Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, como escreveu o Mário de Andrade, alertando para os perigos do reducionismo cultural. De qualquer forma, seria um despropósito narrar uma longa viagem pelo interior do Rio Grande do Sul (uma espécie de dívida moral do tempo da faculdade) e, no meio de um diálogo, alguém pronunciar alguma(s) das palavras que caracterizam o insonso linguajar que corrói o eixo Rio-São Paulo das telenovelas, conforme determina o Padrão Globo de achatamento linguístico.

Julia me esperava ao lado de uma dessas palmeiras. Usava uma jaqueta jeans com os botões fechados até em cima e uma calça skinny bordô. Tinha mudado o cabelo de forma radical; levemente ondulado, ele caía até os ombros, e sobre a testa havia uma franja considerável, que chegava quase a cobrir suas sobrancelhas. Nem com um milhão de chances seria possível adivinhar que essa garota tinha crescido no interior do Rio Grande do Sul.


O homossexualismo feminino é um tema delicado. Não faltarão piadinhas a respeito do amor que não diz o nome, versão Lesbos. Nenhuma graça ou desgraça. Todos Nós Adorávamos Caubóis, definitivamente, não é uma narrativa que defende bandeiras ou comportamentos. Não quer discutir o outro lado da lua. A transgressão está em contar uma história de amor enviesada, ligeiramente diferente dessas que estão amontoadas nas prateleiras das livrarias. Nada mais. É o que basta.

Acompanhei a viagem das duas mulheres (Porto Alegre, Antônio Prado, São Marcos, São Francisco de Paula, Cambará do Sul, Caçapava do Sul, Minas do Camaquã, Bagé, Soledade) com o mapa do Rio Grande do Sul aberto, imaginando caminhos, desenhando rotas, descobrindo uma parte do Brasil. Foi bom. Foi muito bom.

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P. S.) Carol cultiva o estranho (e delicioso) hábito de escrever frases inesperadas, dessas que modificam o olhar do leitor, impondo um novo ritmo narrativo ou permitindo um breve instante de interrupção na leitura – um ou dois segundos de intervalo em que o mundo adquire novas cores:  

– Era realmente devastador chegar atrasada na minha própria vida pessoal.

– Tudo tão quieto que dizer alguma coisa em voz alta parecia um crime ambiental hediondo.

– O teu sentimento de superioridade é tipo uma etiqueta pra fora da blusa.

– Mulher submissa abraça qualquer culpa sem hesitar. 

– (...) me transformando em alguma coisa entre a vítima de violência doméstica e a supermodelo viciada em tranquilizantes.

Um comentário:

  1. Estou louca para ler algo dela, esses sulistas são incríveis...adorei sua resenha, só fez aumentar minha vontade ;)

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