Páginas

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

“A TRISTEZA NÃO NOS MUDA, HAZEL”



Levei quase três meses para começar a leitura de A Culpa é das Estrelas, o best-seller escrito pelo estadunidense John Green. Aliás, para ser sincero, nunca tive a intenção de lê-lo. Basta olhar para a capa de um livro ou para uma daquelas listas dos mais vendidos para perceber que alguns deles estão em uma faixa de temas ou de estruturas narrativas opostas aos nossos interesses culturais e literários.

Gosto não se discute – dizem. Discordo. A diversidade somente adquire visibilidade no mundo desigual em que vivemos quando participa da discussão. Por isso, depois de superar vários preconceitos, enfrentei a aventura. Abri o livro e comecei a leitura. Que quase abandonei – diversas vezes. Um dos motivos que me impediu foi a curiosidade. Milhares de leitores adoram esse livro. O que será que isso significa?

Uma história linear de amor entre adolescentes. A menina, Hezel Grace Lancaster, 16 anos, tem um câncer terminal, que começou na tireoide, quando ela tinha 13 anos, e migrou para os pulmões – ela precisa carregar, para lá e para cá, um cilindro de oxigênio. O menino, Augustus (Gus) Waters, 17 anos, tem um câncer ósseo (osteosarcoma) e uma perna amputada. Ela adora um livro estranho, Uma Aflição Imperial, que mistura autoajuda e filosofia de terceira categoria. Ele só se interessa por histórias similares ao seu videogame favorito – O Preço do Alvorecer.

John Green é uma espécie de pop star da literatura

Os dois haviam desistido de alimentar planos de longo prazo antes de se conhecerem em uma sessão de terapia em grupo. Aliás, sequer imaginavam projetos para a próxima semana. Ela, mergulhada em autopiedade, reclamando da falta de misericórdia de Deus, espera pelo desfecho inevitável. Ele, movido por sarcasmo e pela violência masculina dos jogos e filmes, finge que está tudo bem.

O breve namoro, que não se caracteriza exatamente por ser um namoro, parece ser uma adaptação contemporânea do mito Romeu e Julieta.  Sem tentar evitar a interminável coleção de clichês sobre a perda e o luto, a narrativa se transforma no registro romântico da dor. Livro ideal para quem gosta de chorar. E isso, inegavelmente, caracteriza um dos seus inúmeros defeitos. Talvez o maior. A manipulação dos sentimentos impede que o leitor possa ter uma visão critica do fluxo narrativo. Ou se apaixona pelo casal ou abandona a leitura. Não há espaço para o meio termo.

O ponto decisivo da narrativa se concentra em uma cena fora de moda e que, possivelmente, seria sucesso em algum romance de cavalaria. Ao descobrir que o seu câncer voltou de forma agressiva, Augustus decide-se pelo gesto heroico. Recusa a internação hospitalar. Desiste do tratamento médico. E convida Hazel para viajar até a Holanda. Quer visitar Peter Van Houten, o autor de Uma Aflição Imperial.

Poster do filme, que será lançado em breve
Sem suspeitar que o quase namorado esteja planejando uma forma sofisticada de suicídio, ela aceita a viagem. Confirmando a tese de que a melhor forma de se decepcionar com a literatura está em conhecer o autor do livro, Peter Van Houten se mostra um alcoólatra mal-educado.

Esse choque de realidade resulta em algo bom: o casal vai para a cama. De forma desajeitada, claro. As limitações físicas impedem cenas fortes. Fofura total.

O desfecho se caracteriza por outra tempestade de lágrimas. A exposição narrativa do enterro (e a compensação moral, que surge com o arrependimento de Paul Van Houten) assusta a qualquer um que conheça o mínimo de carpintaria literária. Faltam elipses, sobram descrições sentimentais.

Terminei a leitura ligeiramente angustiado por não ter conseguido descobrir motivos significativos para gostar de A Culpa é das Estrelas. Ok, sou um insensível. Não encontrei a poesia que esse tipo de narrativa promete. Falta-me paciência com livros deprimentes ou com a cultura cristã do sofrimento. Acredito que a tristeza não nos muda, Hazel. Ela nos revela. Revela que a procura pela alegria e pelo prazer não se encontra no livro de John Green.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

MEMENTO MORI



Bondade, gentileza, generosidade e simpatia estão associadas com a velhice – a experiência mais terrível da existência humana. Não há um único ser humano na face da Terra que não sonhe com mães e pais, tias e tios, avós e avôs exemplares. Desses que adoram as crianças, são tolerantes com os adultos e suportam os outros velhos. E, sobretudo, aparentam felicidade enquanto esperam a indesejada das gentes.

A escocesa Muriel Spark, nascida Muriel Sarah Camberg (1918-2006), consciente de que a crueldade nunca está relacionada com a idade cronológica, tinha um olhar diferenciado para essas questões – como comprova Memento Mori, um dos mais impiedosos (e divertidos) exercícios literários sobre a decomposição do corpo físico e intelectual. A forma linear com que estão encadeados os elementos que compõem a carpintaria narrativa valoriza o texto – que mistura humor negro e ironia na medida certa. 

Quase todos os personagens do livro estão na faixa entre 70 e 80 anos – embora, em diversas ocasiões e circunstâncias, alguns deles se comportem como adolescentes mal-educados. Sem o mínimo escrúpulo – e sempre que surge a oportunidade – mentem, traem, roubam, tentam machucar uns aos outros. Seja através de atos físicos, seja utilizando a violência silenciosa das palavras, destroem qualquer coisa que atrapalhe a ambição, a inveja, a mesquinharia, o ciúme, a carência afetiva e os desvios de caráter. Se eles não estivessem tão perto da morte, poder-se-ia dizer que estão lutando pela vida. Desesperadamente.

Um elemento adicional atrapalha a diversão. No telefone, uma voz sem identificação anuncia para todos os idosos: Lembre-se de que vai morrer. Somente isso. Quem recebe o aviso entra em pane. Embora a morte possa atingir a qualquer um, a qualquer instante, ser intimidado não ajuda a manter a sanidade.

Muriel Spark em 1960
Toda essa movimentação pode ser resumida em parte da conversa entre a Dame Lettie Colston e Taylor. Quando a ex-patroa visita a sua antiga empregada, que está morando em uma casa de repouso, Taylor, com boa dose de estoicismo, coloca o dedo na ferida: Ter mais de setenta anos é como estar em guerra. Todos os nossos amigos estão indo ou se foram, e nós sobrevivemos entre os mortos e os moribundos, no meio de um campo de batalha. A elegância que Lettie sempre defendeu não permite que concorde com esse delírio mórbido. Talvez seja por esse motivo que Taylor completa o pensamento: Ou então sofrendo de neurose de guerra. Viver significa carregar lembranças, pecados, iniquidades.

As 251 páginas de Memento Mori, que foi publicado em 1959, se parecem com um campo minado, armadilhas explosivas espalhadas pelo chão, centenas de vítimas a cada movimento humano. A proximidade da morte não é uma visão agradável. Por isso a personagem mais ambiciosa da narrativa, Mabel Pettigrew, se mantém ocupada o tempo todo. Seus golpes contra os ingênuos se repetem com assiduidade. Movida por interesses pouco éticos, aceita posições subalternas, não se incomoda em chantagear quem tenha algum segredo a esconder, fornece lembranças eróticas (!!!) para os pervertidos. Ela quer o dinheiro. Nada menos do que isso.

Outros personagens perseguem o reconhecimento social, a paixão intelectual, a estabilidade financeira. Todos se desapontam ao perceber que a tranquilidade em que se encontram não serve para resolver os problemas. A grande tragédia reside no fato de que não possuem forças para enfrentar o vendaval da vida ou a voracidade da morte.



P.S: A expressão latina Memento Mori significa lembre-se que você é mortal ou lembre-se que você vai morrer.
 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O CAPITAL, UM FILME DE COSTA-GAVRAS



No final do filme O Capital (Le Capital. Dir. Constantin Costa-Gavras, 2013), Marc Tourneuil (interpretado por Gad Elmaleh) é aplaudido entusiasticamente pelos membros da diretoria do Banco Phenix. Reconduzido à presidência, termina o discurso de posse com uma frase de impacto: Meus amigos, sou seu Robin Hood moderno, continuarei roubando dos pobres para dar aos ricos.

É uma elegia à banalidade do mal. Também significa que a carreira bancária que começou alguns anos antes, quando Marc foi contratado como ghost writer de Jack Marmande (Daniel Mesguich), o Chief Executive Officer (CEO) do banco, atingiu o sua apoteose. Quando o patrão, vítima de um câncer de próstata, precisou se aposentar, Marc – por parecer confiável – foi indicado para substituí-lo.

Mas, o plano não se efetiva. Uma das peças não encaixa no quebra-cabeça. Alguém se esqueceu de avisar a quem interessar possa (e aos fins a que se destina) que o poder e o dinheiro são gêmeos univitelinos. Idênticos em tudo. Inclusive na ambição insaciável. Um serve de escada ao outro. E os dois conseguem, por algum poder alquímico indecifrável, transformar os piores defeitos do ser humano (ambição, cinismo, crueldade) em substâncias afrodisíacas.

Marc Tourneuil, um predador natural, pensa em trabalho todo o tempo que lhe é disponível. Como não consegue relaxar um instante, se torna um workaholic caricatural. Somente se distrai com a promessa sexual inscrita no corpo de Nassim (Liya Kebede), uma modelo exótica que conheceu em Miami e depois reviu em Paris, em um evento denominado Le luxe est un droit. Mesmo assim, precisa viajar por metade do mundo para conseguir encostar um dedo (ou algo mais) no corpo da mulher.

O enredo do filme está centralizado em uma situação muito peculiar. Parte do banco Phenix caiu nas mãos de um grupo de investimentos estadunidense. Do outro lado do Atlântico, as regras são outras. O capitalismo selvagem não consegue imaginar os negócios sem a possibilidade de lucrar. Ou melhor, de multiplicar o capital investido. Liderados por Dittmar Rigule (Gabriel Byrne), exigem uma série de medidas gerenciais que não correspondem à cultura e ao estilo europeu: maximização dos lucros, demissões em massa e fusões corporativas duvidosas. O dinheiro nunca dorme, sintetiza um dos personagens, indicando que o aumento exponencial dos dólares se afasta do conceito de milagre religioso. Afinal, o dinheiro é um cão que não pede carinho, lance a bola cada vez mais longe e ele a traz, indefinidamente.

Depois que a devastação se completa sobram desempregados e ganhos imediatos nos títulos da Bolsa de Valores. Embora, Marc precise superar alguns desagradáveis momentos de consciência social (que desaparecem na mesma velocidade com que surgem), ao promover essas manobras econômicas dispensa delicadezas e gentilezas. Fortunas mudam de mãos com velocidade impressionante. E a presidência do banco – que ele tanto lutou para manter – torna-se um item descartável para os especuladores estadunidenses.

Diante do perigo iminente, cabem algumas providências. A principal é contratar um detetive para espionar os inimigos (dentro e fora do banco) e preparar, na medida do possível, algumas manobras de defesa. A cena em que eles se encontram pela primeira vez proporciona um diálogo muito instrutivo:

 

– O que você sabe fazer?

– Tudo. Desde que seja legal.

– E se for ilegal?

– Tudo. Só muda o preço.



No mundo das grandes transações financeiras, o fundamental consiste em acertar o preço. Por isso, com sangue frio e uma boa margem de segurança, Marc faz um acordo com alguns sócios do banco. E promove uma cilada para os estadunidenses. Confirmando uma regra social clássica, o nome familiar ultrapassa algumas barreiras. Ou seja, contra o inimigo externo os irmãos esquecem as diferenças.


Ninguém escapa de uma guerra sem perder alguma coisa. Superada a crise, talvez Marc não tenha muitos motivos para comemorar. As pessoas que poderiam significar alguma coisa na sua vida, como uma das consultoras do Phenix, Maud Baron (Celine Sallette), foram afastadas pela ganância e pela falta de escrúpulos. A esposa e o filho deixaram de sentir algum tipo de carinho por ele. 

Quem conquista o poder, repetindo mais uma vez a tragicomédia faustiana, precisa apre(e)nder que, mais cedo ou mais tarde, alguém vai apresentar a fatura. A forma de pagamento mais utilizada nesse tipo de circunstância é a solidão. 



Konstantinus Gavras (mais conhecido como Costa-Gavras) nasceu em Lutra Iréas, na Península do Peloponeso (Grécia), em 1933. Defensor do cinema político, dirigiu, entre outros clássicos, Z (1968, Prêmio do Júri, no Festival de Cannes), Estado de Sítio (1972) e Missing (1982, Palma de Ouro, no Festival de Cannes).