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terça-feira, 29 de abril de 2014

A GRANDE BELEZA



Considerado pela crítica especializada como uma versão contemporânea do clássico A Doce Vida (La Dolce Vita. Dir. Federico Fellini, 1960), o filme A Grande Beleza (La Grande Bellezza. Dir. Paolo Sorrentino, 2013), alternando momentos de nostalgia e crítica social, venceu vários prêmios internacionais, inclusive o Globo de Ouro (2014), BAFTA de Melhor Filme em Língua Estrangeira (2014) e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (2013).

Aos 65 anos, o jornalista e escritor bissexto Jep Gambardella (interpretado por Toni Servillo) é um bon-vivant intelectual – desses que misturam o cinismo e a alta cultura em doses desproporcionais, de acordo com as circunstâncias e o grau de tédio. Mora em uma cobertura, próximo das ruínas do Coliseu (lugar onde os imperadores romanos transformavam a bravura dos gladiadores em diversão perversa). Logo depois da interminável e dionisíaca comemoração de seu aniversário, Jep lança um olhar melancólico para o passado e percebe que alguma coisa está faltando em sua vida. Embora esteja cercado por amigos, conhecidos e celebridades, são as angústias produzidas pela solidão que prevalecem. O hedonismo, assíduo e inconsequente, constantemente reprisado em festas, jantares e encontros sexuais, se mostra insuficiente para suprir as questões básicas do existir. Falta consistência no glamour. Sobra superficialidade. Não há vida interior. Tudo é aparência. E vazio. Na minha idade, a beleza não basta, racionaliza o pacto faustiano que encena.

Roma oferece ilusões e devora os sonhos de quem imagina ser possível obter sucesso na capital italiana. A grandiosidade do antigo centro do mundo (espelhada em palácios, praças, jardins, fontes, monumentos, estátuas, pinturas), sem se preocupar em distinguir o verdadeiro do artificial, acolhe com igual fervor a sofisticação, a decadência e a religiosidade. O velho é melhor que o novo, diz Dadina, a anã, dona da editora que emprega Jep, sublinhando a preocupação de todos os habitantes de Roma em impedir que ocorram modificações substanciais na paisagem. Como lembra Walter Benjamin, em outro contexto, o rosto do anjo da história está voltado para o passado. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. O turista japonês, acometido pela Síndrome de Stendhal (desmaiar diante da beleza), ou os personagens exóticos que surgem a todo instante (travestis, prostitutas, o cardeal que só consegue conversar sobre receitas culinárias, a freira que imita Madre Teresa de Calcutá) servem de alavanca para ressaltar que o mundo das dissimulações está conectado com o viver em sociedade.

Os amigos de Jep (Romano, Stefânia, Ramona, Viola, Lello) também estão presos na armadilha. A cultura não lhes oferece uma porta de salvação. Isso não constitui um impedimento para que citem, sempre que possível, Gustave Flaubert, Alberto Moravia, Luigi Pirandello, Marcel Proust, Ivan Turgueniev, André Breton, Fiodor Dostoiévski, entre outros. A relação de falsa intimidade com a erudição literária e artística serve de anestésico para quem não possui força para suportar a crueldade do mundo "real" (seja lá o que isso for). Eles estão velhos demais. Em momento impreciso perderam a possibilidade de obter algum tipo de redenção. Tiveram que comercializar os raros talentos que receberam do destino no mercado desvalorizado das aparências, dos supérfluos e da corrupção intelectual. Não por acaso, Romano, antes de voltar para a província, negando as escolhas que fez durante toda a sua vida, afirma que Roma me decepcionou.

No mundo em decomposição em que transitam os personagens de A Grande Beleza, sobra o consolo de que os jovens também não dispõem de boas alternativas. Sintomaticamente, as crianças foram eliminadas de cena. As poucas que restam estão sintetizadas na menina, pintora abstrata, que é impedida de brincar com um amigo e forçada a produzir mais uma obra de arte, diante dos convidados de uma festa. As melhores pessoas de Roma são os turistas, desabafa Jep.

Voyeur sofisticado, desses que conseguem reconhecer a grandeza do mundo, Jep Gambardella, com um copo de uísque em uma mão e um cigarro na outra, deambula por um mosaico de situações. Não possui a grandiosidade do personagem interpretado por Marcello Mastroianni, em A Doce Vida, mas não desafina quando finge tentar esquecer que, em algum momento, um grande amor ficou para trás. Talvez esteja cansado. Talvez perceba que a melancolia está acompanhada por relampejares de sanidade. E embates desagradáveis. Em determinado momento precisa rasgar o véu de fantasia que envolve Stefânia. As palavras agressivas que pronuncia – como se fosse a lição ministrada por um professor cansado do embotamento intelectual de seus alunos – colocam as coisas em ordem. Ou tentam. Ao mesmo tempo, produzem mais dor no emissor do que no receptor. Stefânia, mãe e mulher. Você tem 53 anos e uma vida destruída – como todos nós. Em vez de fazer sermão e nos enxergar com antipatia, deveria nos enxergar com afeto. Somos todos desesperados. Só podemos nos olhar de frente e nos fazer companhia, brincar um pouco. Ou não? O uso da negação no final da fala acena para a dialética, embora assinale a existência de uma falha na linguagem social. Mais uma vez, o silêncio perde sua substância diante da algaravia. 

Jep parece dizer a todo instante que a existência humana se transformou em uma zona de conflito entre o tudo e o nada, entre o sacro e o profano. Sic transit gloria mundi. A história que a câmera está narrando para o espectador se perde em travelings emocionais e instantes de realismo mágico. A aparição de uma inesperada girafa em momento dramático ou os flamingos que pousam na sacada de Jep ou o nonsense dos nobres de aluguel reinstalam, pelo olhar de Sorrentino, o universo de Federico Fellini (principalmente, o inesperado que surge em várias cenas de E La Nave Va, filmado em 1983) e possibilitam um passeio panorâmico pela magia do cinema. 

No entanto, tudo é naufrágio - como comprova a voz de Jep, em ritmo de despedida, quase que o lamento do sobrevivente de um naufrágio, alguns instantes antes de aparecerem na tela os créditos do filme: É sempre assim que termina, com a morte. Antes, no entanto, houve a vida, escondida embaixo do blábláblá... É tudo sedimentado por baixo das conversas e do barulho. O silencio e o sentimento. A emoção e o medo. Os frágeis e inconstantes vislumbres de beleza. E, depois, a maldita desolação e a humanidade miserável. Tudo debaixo do constrangimento de estar no mundo. Blábláblá... Mais além está o mais além. Não penso no está mais além. Portanto, que comece essa história. No fundo, é só um truque. Sim, é só um truque.


 Paolo Sorrentino (Nápolis, 31 de maio de 1970) dirigiu O Divo (Il Divo, 2008), Aqui é o Meu Lugar (This Must Be the Place, 2011) e A Grande Beleza (La Grande Bellezza, 2013).

terça-feira, 22 de abril de 2014

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ (1927 – 2014)




Na noite de 17 de abril, algum tempo depois de saber que Gabriel García Márquez está morto, abri uma garrafa de cerveja de trigo. Talvez essa não seja a bebida adequada para lamentar (ou celebrar) a morte de um escritor, mas não tenho em casa nenhuma aguardente fabricada na Colômbia, e faltou-me ânimo para abrir e beber uma garrafa de vinho. Enquanto o líquido amarelo escuro, de sabor intenso, escorria garganta abaixo, me lembrei do prazer que tive ao ler alguns dos livros espetaculares que foram escritos por Gabo (a forma carinhosa com que os amigos o tratavam).

Cem Anos de Solidão, O Amor nos Tempos do Cólera, O Outono do Patriarca, O General em seu Labirinto – são tantas as obras-primas que é difícil dizer qual é a melhor. No entanto, destoando dos lugares comuns, meus dois livros favoritos sempre foram outros. 

Na contracorrente, tenho imensa admiração por Ninguém Escreve ao Coronel, escrito em 1957. Reli – diversas vezes – a história do homem que, aos 75 anos, coloca todas as suas esperanças em uma hipotética briga de galos, que deve ocorrer três meses depois do início da narrativa. Esperando pelo pagamento de sua aposentadoria (praticamente inexistente, depois de quinze anos de atraso), o Coronel, todas as sextas-feiras, vai até a agência de correios. O carteiro, inevitavelmente, anuncia que não há nenhuma carta. Simultâneos a esse vazio econômico, a esse desprezo burocrático, vários elementos se acrescentam à lista de infortúnios que abatem o Coronel e sua esposa. Talvez o pior deles seja a morte do filho, Agustin, crivado de balas pela polícia. A Colômbia está atolada em outra crise política. A cidade está em estado de sítio. A saúde do Coronel não pode ser considerada excelente (costuma delirar durante o sono). A hipoteca da casa vai vencer logo. O casal, próximo de passar fome, tenta – sem sucesso – vender algumas coisas (o relógio, o quadro, as alianças de casamento, o galo). Chove interminavelmente. Em um mundo visivelmente antagônico, A única certeza na vida é a morte.

(...) Amanhecia. A janela recortava a claridade verde do domingo. Achou que estava com febre. Os olhos ardiam e ele teve de fazer um esforço fora do comum para recobrar a lucidez. 

– Que se pode fazer se a gente não pode vender nada – repetiu a mulher. 

– Então, já será vinte de janeiro – disse ele, perfeitamente lúcido. – Os vinte por cento são pagos no mesmo dia. 

– Isso se o galo ganhar – insistiu a mulher. – E se perder, você já pensou que o galo pode perder. 

– Um galo desses não pode perder. 

– Suponhamos que perca. 

– Faltam ainda quarenta e cinco dias para se pensar nessa hipótese. 

A mulher desesperou-se. 

– Enquanto isso, o que é que nós vamos comer – perguntou, agarrando o Coronel pelo colarinho. 

Sacudiu-o com força. 

– Diga, o que nós vamos comer. 

O Coronel precisou de setenta e cinco anos – os setenta e cinco anos de sua vida, minuto a minuto – para chegar àquele instante. Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de responder: 

– Merda.


Também gosto de Crônica de uma Morte Anunciada, publicado em 1981. A linguagem de reportagem policial – que desliza pelo texto com suavidade e elegância – relata na primeira frase do romance o destino do protagonista: No dia que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Ao eliminar o suspense e, ao mesmo tempo, ampliar a curiosidade do leitor (que precisa ler as 177 páginas do texto para entender os detalhes da história), García Márquez adota uma estrutura literária de difícil manejo. A grandeza trágica surge diante dos olhos do leitor sem perder – em nenhum momento – o ritmo narrativo. Além disso, a tensão se mantém intacta durante o tempo que antecede ao desfecho. Em diversos momentos do texto, a vida de Santiago, 21 anos, poderia ter preservada. Embora todos os movimentos do assassinato sejam visíveis (exceto para Santiago), ninguém faz nada para impedir que os irmãos gêmeos Pedro e Pablo Vicário cometam o crime – apesar dos rapazes, de uma forma ou de outra, se mostrarem propensos a ser impedidos. Todos estão paralisados, espectadores passivos. Ao narrador, que recuperou os fatos muitos anos depois, compete relatar essa ataraxia, exemplo de como o humano – instituído como pathos – perde suas características mais elementares. Na noite anterior, ocorreu a festa de casamento de Ângela Vicário com Bayardo San Román. Algumas horas depois, o marido devolveu a noiva, sob a alegação de que ela havia perdido a virgindade antes do casamento. A família ofendida resolveu vingar o ultraje e lavar a honra com sangue.

Começaram a tomar café quando viram Santiago Nasar entrar, empapado de sangue, levando nas mãos o cacho de suas entranhas. Poncho Lanao me disse: “Nunca pude esquecer o horrível cheiro de merda”. Mas Argênida Lanao, a filha mais velha, contou que Santiago Nasar caminhava com a altivez de sempre, medindo bem os passos, e seu rosto de sarraceno com os cabelos crespos desalinhados estava mais belo que nunca. Ao passar diante da mesa sorriu-lhes e caminhou pelos quartos até a saída dos fundos. “Ficamos paralisados de susto”, disse-me Argênida Lanao. Minha tia Wenefrida Márquez estava escamando um sável no pátio de sua casa, do outro lado do rio, e o viu descer as escadas do molhe antigo, procurando, com o passo firme, o caminho de casa. 

– Santiago, filho –gritou-lhe – que houve com você? 

Santiago Nasar reconheceu-a. 

– Me mataram, querida Wene – disse. 

Tropeçou no último degrau, mas se levantou imediatamente. “Teve até o cuidado de sacudir com a mão a terra que ficou em suas tripas”, disse-me tia Wene. Depois entrou em sua casa pela porta dos fundos, que estava aberta desde as seis horas, e desabou de bruços na cozinha.



Gabriel García Márquez, o primeiro colombiano e o quarto latino-americano a receber o Prêmio Nobel de Literatura (1982), pai de Rodrigo e Gonzalo, amigo pessoal de Fidel Castro, desafeto de Mário Vargas Llosa, tinha câncer linfático e demência senil.  Morreu alguns dias depois de sair do hospital, onde havia sido internado para tratar uma infecção respiratória.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

JOVEM E BELA



Imerso na tristeza, o rosto de Isabella (interpretada pela belíssima Marine Vacht) não indica que ela – por opção própria – resolveu, aos 17 anos, se tornar prostituta. Vista ao longe, parece ser apenas uma pós-adolescente preocupada com as aulas do curso de letras, na Sorbonne. Em determinado momento, logo depois das férias de verão (quando se desvencilhou da virgindade com um rapaz que nunca mais viu na vida), aceita fazer sexo com homens mais velhos. Desconhecendo qualquer sentimento de culpa social ou problema econômico, Isabella cobra caro – embora não goze. Quer dizer, acredita que o pagamento constitui compensação suficiente para os perigos que acompanham esses encontros.

Dividido em quatro partes (verão, outono, inverno e primavera), possibilitando quatro pontos de vista (irmão, cliente, mãe e padrasto), Jovem e Bela (Jeune & Jolie. Dir. François Ozon, 2013) é um filme que provoca e incomoda. Talvez incomode mais e provoque menos. Ao optar por uma narrativa próxima da isenção de juízos morais, o diretor do filme deixa para o espectador a análise e o julgamento.

O enredo provavelmente teria outro tom se o andamento narrativo adotasse alguns elementos mais consistentes de investigação psicanalítica. O estranhamento seria composto por ingredientes mais palatáveis. Um pouco de elegância em um tema marginal sempre ajuda. 
 
A presença de um psicólogo – personagem indispensável depois que a mãe descobre o que a filha está fazendo – não contribui para melhorar o andamento narrativo. Ao mesmo tempo em que afasta as interpretações fáceis, principalmente aquelas que relacionam a ausência do pai com as motivações do comportamento sexual promíscuo, o profissional médico não consegue estabelecer um mínimo de ordem psíquica no caos familiar promovido por Isabella. Mas, como se trata de uma figura secundária, a sua contribuição ao enredo se afasta da efetividade para mergulhar no aspecto simbólico – o que não pode ser considerado um fator desprezível.

Transitando entre referências literárias (Chorderlos de Laclos, Rimbaud) e geográficas (em especial, Pont des Artes, um dos lugares preferidos dos casais apaixonados), todas acompanhadas por canções de Françoise Hardy, o filme vasculha a tragédia com alguma leveza e pouca poesia. Isabella gosta de sentir o poder do jogo sexual sobre os homens com que se encontra. Sente que a fantasia renova a carga de excitação, embora esteja apenas escutando o barulho de corpos que se chocam contra outros corpos, enquanto cédulas de Euros trocam de mãos. Falta-lhe perspectiva para entender que o prazer de cada encontro se apresenta como repetição: o corpo feminino como objeto descartável para fornecer prazer ao corpo masculino. Ao mesmo tempo, descobre que a prostituição implica na ausência do amor. Talvez seja isso que explique o motivo de ter rompido com Alex (Laurente Delbecque), um dos colegas da faculdade. Ao ver o prazer do namorado, Isabelle percebe que não é isso que a excita. O que a motiva sexualmente é a ausência de dependência afetiva.

Uma fatalidade resulta em uma pausa. Georges Ferrière (Johan Leysen), um dos clientes mais assíduos de Isabelle, morre durante o ato sexual. Através das gravações das câmeras de segurança do hotel, a polícia descobre que a jovem o estava acompanhando no momento da morte. É a hora da verdade. Os familiares são informados das atividades sexuais. Patrick (Frédérick Pierrot), o padrasto, e Victor (Fantin Ravat), o irmão, parecem aceitar com naturalidade a situação. Apenas Sylvie (Géraldine Pailhas), a mãe de Isabella, se opõe aos fatos e procura entender o que está acontecendo.

O filme termina de forma inusitada. Isabella e a esposa de Georges encenam a saudade do homem morto no quarto de hotel onde a jovem e o velho costumavam se encontrar.

François Ozon, diretor de Jovem e Bela