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terça-feira, 22 de abril de 2014

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ (1927 – 2014)




Na noite de 17 de abril, algum tempo depois de saber que Gabriel García Márquez está morto, abri uma garrafa de cerveja de trigo. Talvez essa não seja a bebida adequada para lamentar (ou celebrar) a morte de um escritor, mas não tenho em casa nenhuma aguardente fabricada na Colômbia, e faltou-me ânimo para abrir e beber uma garrafa de vinho. Enquanto o líquido amarelo escuro, de sabor intenso, escorria garganta abaixo, me lembrei do prazer que tive ao ler alguns dos livros espetaculares que foram escritos por Gabo (a forma carinhosa com que os amigos o tratavam).

Cem Anos de Solidão, O Amor nos Tempos do Cólera, O Outono do Patriarca, O General em seu Labirinto – são tantas as obras-primas que é difícil dizer qual é a melhor. No entanto, destoando dos lugares comuns, meus dois livros favoritos sempre foram outros. 

Na contracorrente, tenho imensa admiração por Ninguém Escreve ao Coronel, escrito em 1957. Reli – diversas vezes – a história do homem que, aos 75 anos, coloca todas as suas esperanças em uma hipotética briga de galos, que deve ocorrer três meses depois do início da narrativa. Esperando pelo pagamento de sua aposentadoria (praticamente inexistente, depois de quinze anos de atraso), o Coronel, todas as sextas-feiras, vai até a agência de correios. O carteiro, inevitavelmente, anuncia que não há nenhuma carta. Simultâneos a esse vazio econômico, a esse desprezo burocrático, vários elementos se acrescentam à lista de infortúnios que abatem o Coronel e sua esposa. Talvez o pior deles seja a morte do filho, Agustin, crivado de balas pela polícia. A Colômbia está atolada em outra crise política. A cidade está em estado de sítio. A saúde do Coronel não pode ser considerada excelente (costuma delirar durante o sono). A hipoteca da casa vai vencer logo. O casal, próximo de passar fome, tenta – sem sucesso – vender algumas coisas (o relógio, o quadro, as alianças de casamento, o galo). Chove interminavelmente. Em um mundo visivelmente antagônico, A única certeza na vida é a morte.

(...) Amanhecia. A janela recortava a claridade verde do domingo. Achou que estava com febre. Os olhos ardiam e ele teve de fazer um esforço fora do comum para recobrar a lucidez. 

– Que se pode fazer se a gente não pode vender nada – repetiu a mulher. 

– Então, já será vinte de janeiro – disse ele, perfeitamente lúcido. – Os vinte por cento são pagos no mesmo dia. 

– Isso se o galo ganhar – insistiu a mulher. – E se perder, você já pensou que o galo pode perder. 

– Um galo desses não pode perder. 

– Suponhamos que perca. 

– Faltam ainda quarenta e cinco dias para se pensar nessa hipótese. 

A mulher desesperou-se. 

– Enquanto isso, o que é que nós vamos comer – perguntou, agarrando o Coronel pelo colarinho. 

Sacudiu-o com força. 

– Diga, o que nós vamos comer. 

O Coronel precisou de setenta e cinco anos – os setenta e cinco anos de sua vida, minuto a minuto – para chegar àquele instante. Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de responder: 

– Merda.


Também gosto de Crônica de uma Morte Anunciada, publicado em 1981. A linguagem de reportagem policial – que desliza pelo texto com suavidade e elegância – relata na primeira frase do romance o destino do protagonista: No dia que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Ao eliminar o suspense e, ao mesmo tempo, ampliar a curiosidade do leitor (que precisa ler as 177 páginas do texto para entender os detalhes da história), García Márquez adota uma estrutura literária de difícil manejo. A grandeza trágica surge diante dos olhos do leitor sem perder – em nenhum momento – o ritmo narrativo. Além disso, a tensão se mantém intacta durante o tempo que antecede ao desfecho. Em diversos momentos do texto, a vida de Santiago, 21 anos, poderia ter preservada. Embora todos os movimentos do assassinato sejam visíveis (exceto para Santiago), ninguém faz nada para impedir que os irmãos gêmeos Pedro e Pablo Vicário cometam o crime – apesar dos rapazes, de uma forma ou de outra, se mostrarem propensos a ser impedidos. Todos estão paralisados, espectadores passivos. Ao narrador, que recuperou os fatos muitos anos depois, compete relatar essa ataraxia, exemplo de como o humano – instituído como pathos – perde suas características mais elementares. Na noite anterior, ocorreu a festa de casamento de Ângela Vicário com Bayardo San Román. Algumas horas depois, o marido devolveu a noiva, sob a alegação de que ela havia perdido a virgindade antes do casamento. A família ofendida resolveu vingar o ultraje e lavar a honra com sangue.

Começaram a tomar café quando viram Santiago Nasar entrar, empapado de sangue, levando nas mãos o cacho de suas entranhas. Poncho Lanao me disse: “Nunca pude esquecer o horrível cheiro de merda”. Mas Argênida Lanao, a filha mais velha, contou que Santiago Nasar caminhava com a altivez de sempre, medindo bem os passos, e seu rosto de sarraceno com os cabelos crespos desalinhados estava mais belo que nunca. Ao passar diante da mesa sorriu-lhes e caminhou pelos quartos até a saída dos fundos. “Ficamos paralisados de susto”, disse-me Argênida Lanao. Minha tia Wenefrida Márquez estava escamando um sável no pátio de sua casa, do outro lado do rio, e o viu descer as escadas do molhe antigo, procurando, com o passo firme, o caminho de casa. 

– Santiago, filho –gritou-lhe – que houve com você? 

Santiago Nasar reconheceu-a. 

– Me mataram, querida Wene – disse. 

Tropeçou no último degrau, mas se levantou imediatamente. “Teve até o cuidado de sacudir com a mão a terra que ficou em suas tripas”, disse-me tia Wene. Depois entrou em sua casa pela porta dos fundos, que estava aberta desde as seis horas, e desabou de bruços na cozinha.



Gabriel García Márquez, o primeiro colombiano e o quarto latino-americano a receber o Prêmio Nobel de Literatura (1982), pai de Rodrigo e Gonzalo, amigo pessoal de Fidel Castro, desafeto de Mário Vargas Llosa, tinha câncer linfático e demência senil.  Morreu alguns dias depois de sair do hospital, onde havia sido internado para tratar uma infecção respiratória.

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