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sexta-feira, 30 de maio de 2014

A ORIGEM DO MUNDO



O ácido da amargura me perfurava as vísceras, confessa Patricio Illanes, carinhosamente chamado de Pato e/ou Patito, protagonista do romance A Origem do Mundo, escrito em 1996 (publicado no Brasil em 2014) pelo chileno Jorge Edwards Valdés, e que trava um diálogo espe(ta)cular com Dom Casmurro (Machado de Assis, 1900). A frase de Patito não deve ser levada a sério, faz parte de sua personalidade e do show que lhe coube representar no mundo das circunstâncias sociais e dos exageros românticos.

Patrício Illanes tem cerca de 70 anos, médico praticamente aposentado, natural de Iquique, no norte do Chile, e está morando em Paris por motivos políticos.  Casado com Silvia – quase vinte anos mais moça –, leva uma vida tranquila, quase monótona.  Como não fuma e o álcool não lhe cai bem, poucas coisas o divertem. Uma dessas exceções é a companhia de Felipe Diaz. Sem muito pudor, para gozo mútuo, Felipe adora contar, muitas vezes com riqueza de detalhes, as aventuras sentimentais e sexuais que preenchem a sua vida de solteirão – igualmente degredado na capital francesa. Essa brincadeira, que mistura a canalhice adolescente com o bom humor masculino, serve para diminuir as diferenças políticas – que poderiam os separar. Enquanto Patito continua acreditando nos ideais humanitários, Felipe se desencantou com a esquerda. Tornou-se um cínico, desses que multiplicam a alegria ao desancar a utopia socialista. Evidentemente, a comunidade de hispano hablantes o transformou em persona non grata.

A tranquilidade se desmancha quando Felipe – talvez assustado com a forma avassaladora que as bebidas alcoólicas tomaram conta de sua vida, talvez com medo da impotência sexual – mistura tranquilizantes com uma boa dose de uísque. Essa atitude tranquiliza as angústias do morto e abre as portas para a inquietação na vida de Patrício Illanes.
  
Patito, ao ver o descontrole da esposa diante do cadáver, sente uma agulhada inesperada no coração. (...) observou de soslaio os olhos avermelhados, o olhar de ternura rasgada, intensa, de amor! – porque não era de nenhuma outra coisa – que Silvia dirigia à cabeça inerte de Felipe; e sua dúvidas, que até então havia se sustentado, apesar das aparências, e o tinham protegido e lhe ofereciam uma permanente porta de escape, se dissiparam naquele momento. Nesse instante,  os olhos perplexos do médico foram inundados pela centelha do ciúme. Felipe e Silvia tiveram um caso – só assim se justificaria toda aquela dor que ele viu nas lágrimas da esposa. Então, como só é possível nesses momentos, o que parecia paz perpétua se transforma em obsessão incontrolável. Com visível descontrole emocional, Patito invade o apartamento do morto e começa a procurar por provas da infidelidade. Encontra um pacote de fotografias. Fragmentos de um extenso discurso amoroso. Entre vários nus de péssima qualidade, Encontrei, porém, uma mulher mais para gordinha, bem constituída, com o rosto escondido debaixo dos lençóis em desordem e de pernas abertas, um sexo feminino fotografado em primeiro plano, curiosamente parecido com A origem do mundo, o quadro de Gustave Courbet que Silvia e eu acabávamos de visitar e que tinha sido exposto depois de mais de um século no Musée d’Orsay. Uma vertigem de desencanto o fez afundar na escuridão que acompanha a agonia. Em outras palavras, mergulha na camada de equívocos que constitui o confuso tema das traições conjugais. Creio que não era Silvia, pelo menos quis pensar que não era, mas produziu-se uma coincidência terrível, que durante longos minutos não consegui suportar. Minhas pernas fraquejaram e pensei que eu fosse cair de repente no chão, fulminado. Debaixo daquela réplica mal fotografada, mas não mal pensada, de A origem do mundo, réplica provavelmente inconsciente, simples coincidência com aquele suposto modelo, encontrei uma pequena fotografia, tamanho três por quatro, descolada de forma tosca de um documento velho.
– Silvia! – exclamei em voz alta, muitíssimo pálido, trêmulo, com o pulso a mil, a boca seca. 

Qualquer semelhança com alguns trechos de Dom Casmurro não são mera coincidência. Basta lembrar o (hipotético) insight que separa o antes e o depois na vida conjugal de Bento de Albuquerque Santiago e Maria Capitolina Pádua Santiago, protagonistas do texto machadiano: Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente. "Naturalmente", observou o mais célebre de todos os cornos da literatura brasileira, homem que só consegue obter alguma satisfação pessoal quando renega o filho e proclama ao mundo que foi traído pela mulher que amou ou melhor, pela mulher que diz ter amado.

Sem poder sujar o terno com o sangue do comborço, de qualquer forma uma impossibilidade, visto que o rival já estava morto, e ele, Patrício Illanes, o marido traído, estava vivendo no século XX, bem afastado do medievalismo narrado em Madame Bovary (Gustave Flaubert, 1857) e O Primo Basílio (Eça de Queiróz, 1878), só lhe restou manter a dignidade e a elegância. Patito nunca foi um homem de ações bruscas ou de destemperos passionais.

Quer dizer, se comparado com Bentinho, Patito Illanes pode ser considerado um fidalgo. Diante da desgraça, trata (apesar do péssimo trocadilho) o pathos – paixão, sofrimento, doença – com bom humor. Em contrapartida, como compete a todos os maridos que foram traidos (literariamente ou não), não consegue escapar do patético. Ciente de que as paixões prevalecem sobre a razão e que a morte nunca significa o término de uma história, pois sempre ficam testemunhas, começa a importunar os amigos, na ânsia de conseguir algum tipo de informação que confirme o que imagina ser uma certeza. Ninguém sabe de nada. Nunca viram o mínimo indicio. E o aconselham a parar de tentar sabotar um casamento que todos invejam. 

Remando contra a correnteza, talvez para autenticar a falsificação amorosa em que transformou a própria vida, Patito prefere continuar a jornada na direção da insensatez. Cada negativa reabastece as dúvidas, multiplica as suspeitas. Até que...

Silvia, assumindo o papel de narradora, dando voz ao outro lado da questão, relata que, como compete às mulheres enamoradas, resgata o marido completamente bêbado no apartamento de antigos desafetos. É hora de colocar as cartas na mesa. Ele, pela primeira vez, desperta do delírio e encara a esposa. Envolto pelo medo, faz a pergunta que pode destruir para sempre o casamento. Ela fica confusa com essa necessidade intempestiva de discutir a relação. Como boa esgrimista, desfere alguns golpes defensivos, lembra que ele também já cometeu deslizes. Por fim, seja para acalmar o marido, seja para evitar novos desentendimentos, confessa ter tido um caso rápido, uns quatro ou cinco encontros, com Felipe. E se propõe a contar as minúcias dessa história.

Acariciei-o por baixo dos lençóis, pensando que contar as coisas era um jogo, uma invenção curiosa, e que contar tudo, toda a verdade, (...), era impossível, e notei, de repente, com surpresa, que ele estava com uma ereção como as de seus anos maduros, distantes, apesar de estar semiadormecido. Me pareceu a prova de que seu transtorno, sua súbita demência, não era nenhuma brincadeira. Ele suspirou, murmurou frases desconexas e depois, já mais desperto, pegou a foto maior, a que se parecia com o quadro.
– Parece muito com você – murmurou, com uma voz que tinha se enrolado no fundo da garganta.
Não respondi nada. Ele ou me mataria ou me estrangularia, porque ainda tem muita força, ou se salvaria e nos salvávamos todos.
– Não quer ficar na mesma posição da mulher da foto?
Não respondi nada também. Ele, então, levantou os lençóis, que mal se podia suportar por causa do calor, e cobriu meu rosto. Depois separou minha perna esquerda. Olhou para mim, acho, porque eu não o via, durante algum tempo, e provavelmente me comparou com a foto.
– É você – sussurrou, subindo em cima de mim, me penetrando, sem deixar que tirasse o lençol do rosto.
– Sim – eu disse. – Sou eu.

Fantasticamente bem escrito, repleto de frases caudalosas, dessas em que o olhar do leitor se perde entre vírgulas e chistes, A Origem do Mundo, além de reescrever um tema machadiano, onde contrastar alguns episódios provavelmente é parte mais divertida da leitura, aposta em tese oposta a aquela foi defendida por Bentinho: não há maior prazer do que o celebrar da vida.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

AMÁLGAMA, DE RUBEM FONSECA



Ficar vários anos sem ler Rubem Fonseca ajuda a afastar a sombra dos contos e romances que ele escreveu no século passado. A distância, entre tantas vantagens, possibilita espaço para construir uma nova perspectiva crítica. Diante de um dos escritores fundamentais da história da literatura brasileira contemporânea, quais são as chances do leitor se decepcionar com o autor dos contos que constituem Lucia McCartney (1967), Feliz Ano Velho (1975) ou O Cobrador (1979), entre tantos outros livros?

A resposta surge sem nenhuma dificuldade: basta ler o último livro, Amálgama, publicado em 2013. O Mestre, assim mesmo, em maiúsculas, aos 88 anos, perdeu a noção de que deve se aposentar – imediatamente. Ninguém o avisou que livros desastrosos colocam em perigo reputações que pareciam estar acima do bem e do mal. Com aspectos de comida requentada, sem gosto, sem tempero, os 34 textos que integram Amálgama encontram no adjetivo ruim uma definição natural. Alguns dos “contos”, se considerarmos que conto é tudo aquilo que chamamos conto, como defendia Mário de Andrade, não passam de esboços mal feitos, desses que parecem ter sido feitos por algum principiante literário. O leitor, comprovando o quanto é triste a decadência, precisa superar o desconforto de ler narrativas mal construídas, patéticas, risíveis.

Em outras palavras, é inadmissível aceitar que textos como Noite, Conto de Amor, Poema da Vida, Na Hora de Morrer, O Espreitador, O Matador de Corretores, Crianças e Velhos, entre outros, levem a assinatura de Rubem Fonseca. Ao abrir o livro e encontrar tanta porcaria, cabe a pergunta: será que ele nunca mais conseguirá alcançar a força de histórias como Feliz Ano Velho, O Cobrador, Passeio Noturno (I e II)?

Ao mesmo tempo, alguns desses arremedos, que levam a griffe Rubem Fonseca, apresentam características distintivas do autor. A obsessão pelas explicações desnecessárias (típicas da arrogância intelectual) e a violência sem sentido se repetem com insuportável constância. O mesmo se pode dizer do gosto duvidoso por lamentos misóginos, mutilações e anomalias físicas. Em todos os personagens falta densidade psicológica. Parecem gravuras recortadas de alguma revista e que foram coladas uma ao lado da outra, compondo um painel sem unidade ou coerência.
   
Alguns dos textos foram agrupados como se fossem poemas. A poesia é outra coisa, muito diferente do empilhar uma frase em cima de outra. Considerar que textos como Sopa de Pedra, Restos, Sentir e Entender, Lembranças e Sem Tesão possuem (mínima) qualidade poética equivale a jogar a literatura brasileira na lata de lixo.

Os poucos “contos” que se salvam (Segredos e Mentiras, Decisão, Best-seller) não valem muito. Ou melhor, parecem exprimir o conceito básico do último texto: foda-se.


TRECHO ESCOLHIDO



Rua do pecado não vendeu nada.”

“Como não vendeu nada.”

“Eu li no jornal que  era um dos mais vendidos.”

“Demos uma grana para sair aquela nota. Mesmo assim não adiantou.”

“Puta merda.”

“O nosso depósito está abarrotado de Ruas do pecado. Você tem que escrever um romance que seja autobiográfico, que conte a história de alguém da sua família com uma doença grave, uma doença que faça a pessoa sofrer muito, algo maligno que não seja mortal. Entendeu? É isso que os leitores querem hoje em dia, uma história que tenha veracidade. Ninguém mais quer ler ficção, a ficção acabou. É isso que vende. Você tem alguém assim na sua família?”

“Sim, tenho.”

“Alguém próximo, uma pessoa muito querida?”

“Sim.”

“Você pode me dizer quem é?”

“Não, não, por enquanto é um segredo.”

“Não tem problema. Então, mãos à obra.”   


terça-feira, 20 de maio de 2014

A LITERATURA EM CINQUENTA FRASES



A literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta. (Fernando Pessoa)

– O que procuramos na literatura é um estremecimento na espinha dorsal. (Vladimir Nabokov)

Para fazer literatura você tem que ser terrivelmente sincero. E é incrível; se você atinge a verdade, está fazendo ficção, que é mentira. (Elvira Vigna)

– A literatura é sempre uma expedição à verdade. (Franz Kafka)

O mais belo triunfo do escritor é fazer pensar os que podem pensar. (Eugène Delacroix)

– Deixar a literatura nas mãos dos imbecis é como deixar a ciência nas mãos dos militares. (Boris Vian)

Escrever é uma boa maneira de falar sem ser interrompido. (Jules Renard)

– Escrever é uma luta contínua com a palavra. Um combate que tem algo de aliança secreta. (Julio Cortázar)

A diferença entre a ficção e a realidade? A ficção tem que ter sentido. (Tom Clancy)

– Tudo já foi dito uma vez, mas como ninguém escuta é preciso dizer outra vez. (André Gide)

Julio Cortázar
 – A realidade não é uma inspiração para a literatura. No máximo, a literatura é uma inspiração para a realidade. (Romain Gary)

– Literatura, a mais sedutora, mais enganosa, mais perigosa das profissões. (John Morley)

Se você precisa de muitas palavras para dizer o que pensa, pense mais. (Dennis Roch)

– A essência da literatura é a guerra entre a emoção e o intelecto, entre a vida e a morte. Quando a literatura se torna demasiado intelectual – quando começa a ignorar as paixões, as emoções – torna-se estéril, tola e, na verdade, sem substância. (Isaac Bashevis Singer)

A literatura é essencialmente solidão. Escreve-se em solidão, e, apesar de tudo, o ato da leitura permite a comunicação entre dois seres humanos. (Paul Auster)

– A literatura é a infância por fim recuperada. (Juan Carlos Onetti)

A literatura não pode explicar o mistério, mas deve narrá-lo. (Javier Marias)

– Toda literatura é bisbilhotice. (Truman Capote)

A literatura pode ser uma boa terapia pessoal, uma espécie de psicanálise na qual não se paga um psicanalista. (Max Frisch)

Juan Carlos Onetti
 – Tudo o que é fácil de ler é difícil de escrever – e vice-versa. (Telmo Martino)

Os clássicos mudam muito de opinião para agradar os que os interpretam. (Millôr Fernandes)

– Um escritor é alguém congenitamente incapaz de dizer a verdade. Por isso, o que ele escreve chama-se ficção. (William Faulkner)

A literatura é mentir bem a verdade. (Juan Carlos Onetti)

– A literatura não é algo que nos faça felizes, mas nos ajuda a se defender da infelicidade. (Mário Vargas Llosa)

Não existem livros morais ou imorais. Livros são bem ou mal escritos, nada mais. (Oscar Wilde)

– A primeira condição de quem escreve é não aborrecer. (Machado de Assis)

Literatura: todos os gêneros são bons, exceto o aborrecido. (Voltaire)

Mario Vargas Llosa
 – O declínio da literatura indica o declínio de uma nação. (Johann Wolfgang Goethe)

A literatura é o vinho da vida, mas não pode ser o seu alimento. (Thomas Carlyle)

– A literatura não permite caminhar, mas permite respirar. (Roland Barthes)

O livro é uma das possibilidades de felicidade de que dispomos. (Jorge Luis Borges)

– Os governos suspeitam da literatura porque é uma força que lhes escapa. (Émile Zola)

Às vezes, a literatura se parece com uma operação na Bolsa. As cotizações sobem e descem e muitas vezes só dependem da promoção. (José Saramago)

– A censura não presta para nada, já se sabe. Mas o bom escritor deve convencer até os censores. (Gabriel García Márquez)

Escrever é por em ordem as nossas obsessões. (Jean Grenier)

– A glória ou o mérito de certos homens é de escrever bem; de outros, é de não escrever. (Jean de La Bruyère)

Minhas teorias e visões sobre a literatura variam com o adiantado da hora, a qualidade das minhas companhias e a quantidade de álcool. (James Thurber)

Tomas Eloy Martinez
 – As letras são o alimento da juventude, a paixão da idade madura e a recreação da velhice; dão-nos brilho na prosperidade; são uma consolação, um recurso no infortúnio; fazem as delícias do gabinete; não embaçam em nenhuma situação de vida; de noite servem-nos de companhia; e vão conosco para o campo e em viagem. (Marco Tulio Cicero)

No meu caso, a literatura é uma espécie de vingança. É algo que me dá aquilo que a vida real não pode nos dar – todas as aventuras, todo o sofrimento. Todas as experiências que eu só posso viver na imaginação, a literatura completa-as. (Mário Vargas Llosa)

– A história é escrita pelo poder, a partir do poder, a serviço pelo poder. Romances servem para questioná-la. (Tomás Eloy Martinez)

O romance é como um arco de violino, a caixa que produz os sons é a alma do leitor. (Stendhal)

– O romance é a chave dos quartos secretos da casa. (Louis Aragon)

O romancista é – de todos os homens – aquele que mais se parece com Deus: ele é o imitador de Deus. (François Mauriac)

– Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante. (Carlos Drummond de Andrade)

Quando lemos não procuramos ideias novas, mas pensamentos que já nos passaram pela mente e que adquirem, na página impressa, o selo da confirmação. (Cesare Pavese)

Gabriel Gárcia Márquez
 – Em literatura, o meio mais seguro de ter razão é estar morto. (Victor Hugo)

Escrever é transformar os seus piores momentos em dinheiro. (J. P. Donleavy)

– Escrever é a única profissão em que ninguém é considerado ridículo se não ganhar dinheiro. (Jules Renard)

Levei quinze anos para descobrir que não sabia escrever, mas aí já não podia parar – tinha ficado famoso demais. (Robert Benchley)

– Se quiser ficar rico escrevendo, escreva o tipo de coisa que é lida por pessoas que movem os lábios ao ler. (Don Marquis)