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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

BONECAS RUSSAS



As mulheres são como cordeirinhos com vestidos coloridos, carregando lobas por dentro, pensa o Padre Matheus, ciente de que está próximo da verdade. Duas páginas depois percebe que Só existe uma verdade. O desejo é tudo. O resto se aprende.

Bonecas Russas, novela escrita por Eliana Cardoso, é uma narrativa de aprendizagens. E de desejos. E tumultos. E mulheres. E, claro, cordeirinhos e lobas. Versão não-linear do brinquedo russo. Matryoshka. Uma série de bonecas que se escondem ou se revelam umas dentro das outras. Todas ocas, exceto a última, que deve (deveria) ser maciça. Que simboliza a última fronteira entre o afeto e o abandono. Metáfora conveniente (convincente?) do mundo reciclável que o a-pós-a-moderna-idade criou e destruiu.
 
Em paralelo, há os mistérios que assombram (e assombrarão até o fim dos tempos) os homens – esses seres minúsculos e incompetentes e que estão presentes no texto, embora pareça que não. Que não fazem falta. Coytados – no sentido etimológico. Basta ir ao dicionário. Ou ao Google. O mundo mudou. Para pior. Ninguém mais quer respirar livros empoeirados. A transição da ignorância para o conhecimento jamais ocorreu (ocorrerá) de forma pacífica. O processo histórico é uma linha temporal repleta de massacres, comprovada no caráter descartável dos homens.

Francisca, Odete, Rosália, Leda, Lola, Miranda – cada uma das mulheres apresenta um cardápio particular de ambições e sensações e apreensões, embora, em alguns momentos, todas se comportem sem nenhum compromisso, da mesma forma que Casanova colecionava amantes. A paixão têm a doçura do mel e a intensidade da decepção, permitindo o jogo interminável do chiaroscuro (ostentar forças e esconder os medos) das relações sociais. Nada se compara com uma mulher infeliz. E poucas escapam desse destino.  

O entrelaçamento das histórias, que unem e separam essas mulheres, transcorre de maneira rápida, intensa. Os elementos que parecem faltar (e que talvez fossem mais explicitados se estivessem nas mãos de outra escritora) são compensados pelas sutilezas. Como resultado de uma epifania, há a tessitura entre os diversos fios soltos. Esse agrupamento revela o desenho que até então parecia inatingível. Não é a visão desejada. Não existe perda sem dor. A verdade e a ilusão sempre são mais cruéis do que a imaginação.

Embora seja um texto pequeno, 97 páginas, “Bonecas Russas” aposta na construção literária híbrida. Repleta de truques narrativos, alguns bastante inventivos, outros apenas confirmando o discurso persuasivo, a narrativa consegue manter a atenção do leitor, embora haja motivos para dispersão.Vários narradores se apresentam em rotação. Assume o proscênio aquele que melhor se apresenta para fornecer algum sentido ao propósito textual – que nem sempre é o de esclarecer os acontecimentos. Quem organizou a narrativa mostrou ausência de escrúpulos ao utilizar diversos artifícios “fora de moda” como trecho de diários e algumas cartas (que adquirem um efeito especular na “atualidade” das mensagens eletrônicas). Os interstícios narrativos são preenchidos com elipses e deslocamentos temporais.

Flertando com as origens da narrativa clássica, as personagens femininas são dignas representantes da classe alta, sempre discutindo as contingências da vida com elegância e cultura. A quantidade de referências sobre literatura (principalmente poesia), música, cinema, teatro e artes plásticas impressiona – exigindo, em diversos momentos, um leitor ideal, capaz de compreender o que está sendo narrado em paralelo.

Bonecas Russas compõe um painel de algumas dificuldades femininas em um mundo em transformação. Não apresenta soluções. Mostra a intensidade emocional com que as mulheres procuram superar as dificuldades e sobreviver em um ambiente adverso. Mesmo quando não é possível controlar as lágrimas, é um luta repleta de belezas.

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