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quinta-feira, 6 de novembro de 2014

SUICIDAS



Talvez o maior problema do romance policial contemporâneo seja o de descobrir (ou elaborar) um enredo inovador. Usualmente, isso se mostra uma impossibilidade. Conforme a técnica narrativa evoluiu e milhares de romances foram publicados, quase todos os temas – e suas variações – foram vasculhados das maneiras mais surpreendentes possíveis. Sobraram poucas alternativas em uma terra fértil e, circunstancialmente, arrasada. Por isso, a opção básica mais frequente está em reelaborar algum assunto conhecido, dando-lhe conteúdo ou, quiçá, se houver sorte, uma nova embalagem – que, em muitos casos, serve de substancial distração para o leitor menos avisado.

Entre as múltiplas escolhas possíveis, o enigma do quarto fechado costuma ser uma opção muito tentadora. Seguindo o roteiro proposto por Agatha Christie, que publicou, em 1939, Ten Little Niggers (traduzido, inicialmente, no Brasil. como O Caso dos Dez Negrinhos, e que a tolice editorial, por conta do politicamente correto, transformou, recentemente, em E Não Sobrou Nenhum), a ideia propõe colocar uma personagem, ou várias, em uma sala fechada e manipular os acontecimentos até que a tragédia aconteça. Na visão do leitor, potencialmente um voyeur, esse tipo de situação fornece destaque para duas questões antagônicas. A primeira, menos importante, consiste em descobrir quem praticou o inominável. A segunda, mais inventiva, se relaciona com o modus operandi.

Suicidas, primeiro romance de Raphael Montes, publicado em 2012, segue essa trilha, escorado em uma charada bastante interessante: por que nove jovens escolheram praticar suicídio coletivo, no porão de uma mansão? A trama está dividida em três planos narrativos. Como a teoria da literatura considera – por diversos motivos – que os narradores em primeira pessoa não são confiáveis, delegar duas camadas de informações a um mesmo narrador enfraquece bastante o desenvolvimento textual. E esse é um problema bastante significativo, na medida em que não permite contraste entre possíveis versões dos acontecimentos ou a elaboração de um número maior de dúvidas sobre o comportamento das personagens.

Um dos relatos é uma espécie de diário intimo de Alessandro Parentoni de Carvalho, um dos suicidas, e que foi encontrado em seu quarto. O outro documento é um esboço de narrativa, baseado em “fatos reais”, também escrito por Alessandro, e que – por milagre! – se salvou do incêndio que foi debelado pela polícia quando chegou à propriedade onde aconteceram as mortes múltiplas. 

No intervalo entre os dois documentos há uma reunião, na chefia da Polícia Civil, um ano depois dos trágicos acontecimentos, com as mães de oito das vítimas. Esse artifício narrativo, gerenciado por um narrador que está acima de Alessandro, centraliza em estrutura teatral (inclusive com as devidas didascálias, que são as instruções relativas ao comportamento e procedimento dos atores) o melodrama histérico. Gritos, acusações, contra-acusações e dispersões analíticas assumem o proscênio. Por fim, na discussão sobre os últimos acontecimentos da vida dos filhos, impera a ausência masculina. Para o leitor que conhece alguns rudimentos da psicanálise, a hipótese de todos os envolvidos serem filhos de inseminação artificial soa como descabida. Em paralelo, cabe destacar que o único pai presente no texto é descrito como um sujeito agressivo e perverso e que, claro, morre logo – vítima de um acidente de automóvel.

O romance está alicerçado na interposição desses três planos narrativos e no ordenamento homeopático, que vai fornecendo a sequência da história. Ao mesmo tempo, a descrição dos conflitos "amarra" o leitor, que precisa ler o próximo capítulo para descobrir como os diversos elementos do discurso estão encadeados. No momento em que cada capítulo começa a apresentar sinais de cansaço, o narrador geral muda o plano narrativo, introduz algum novo elemento, e, ciente de que não há problemas, continua em frente, nesse ritmo monocórdio, por 487 páginas – que se fossem resumidas em cerca de 250 provavelmente seriam muito mais eficientes e menos maçantes.

O enredo singular, mas previsível, descreve as possíveis razões para que cada uma das vítimas vá ao encontro da morte. São muitos os interesses. Há momentos de esperteza e estupidez. No jogo, onde prevalece a tensão, a tesão e as más intenções, a culpa e a ganância se encontram. Resultado: o campo de batalha fica coalhado de cadáveres.  

Todos esses elementos contribuem para tornar quase óbvia a conclusão da narrativa – que se assemelha a tantos outros desfechos clássicos do romance policial. Uma vez localizada a chave-mestra, basta encaixar as peças soltas do quebra-cabeça. Em outras palavras, Suicidas é um bom entretenimento, mas está longe de apresentar uma carpintaria narrativa de qualidade.


P.S.: O momento de maior criatividade de Suicidas encontra-se na última página quando, simulando autoficção, o narrador Alessandro muda de nome duas vezes e assume, de forma definitiva, o pseudônimo Raphael Montes. É uma boa sacada.   

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