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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

MANSFIELD PARK

Mansfield Park, terceiro dos seis romances de Jane Austen, pode ser lido de diversas formas. As principais possibilidades são fábula romântica, tratado moral ou discussão econômica. Todas as alternativas estão corretas. Ou erradas. Depende do olhar. No entanto, mesmo os leitores mais gentis não conseguem omitir que o narrador fornece uma importância exagerada ao dinheiro no andamento narrativo. O assunto surge no primeiro parágrafo da narrativa: Cerca de trinta anos atrás, a Srta. Maria Ward, de Huntingdon, com apenas sete mil libras de dote, teve a sorte de conquistar Sir Thomas Bertram, de Mansfield Park, no condado de Northampton, e com isso elevar-se ao status de nobreza como esposa de um baronete, com todos os confortos e privilégios de uma bela propriedade e alta renda. Depois, nas centenas de páginas do romance, a maioria dos acontecimentos importantes se desenvolve em torno das questões financeiras. Ao comentar sobre algumas famílias – dessas em que os filhos e as filhas são numerosos e faltam recursos para salvar todos –, a discussão surge de forma absolutamente inequívoca: Não há no mundo tantos homens ricos quanto mulheres bonitas que os mereçam. Em outras palavras, o amor deve ser entendido como um sentimento secundário – principalmente para aquelas pessoas que não possuem heranças a receber.

Cena de uma adaptação inglesa
Escrito em 1814, o romance tem como eixo fulcral Fanny Price, agregada da família Bertram (que é constituída por Thomas Bertram, Maria Bertram e os filhos Tom, Edmund, Maria e Júlia). Aos dez anos de idade, seus pais a entregaram aos parentes abastados. Tomando como base esse tipo de informação, Mansfield Park poderia ser considerado como uma versão caótica de um conto de fadas ruim – desses que misturam maus-tratos, princesas sem charme e príncipes falidos. Não o é. Definitivamente, Mansfield Park não pode (não deve!) ser lido como um texto aspergido com baldes de água-de-flor-de-laranjeira. Embora a figura de Sra. Norris, irmã de Maria Bertram, e, consequentemente, tia de Fanny, se pareça – e muito – com uma bruxa malvada. A viúva do Sr. Norris, pastor da Igreja Anglicana, sabia tão bem poupar o seu quanto gastar o dos amigos. Esse parece ser o seu objetivo principal em todas as situações que ocorrem na mansão, ao mesmo tempo em que procura diminuir a importância da sobrinha – que considera um ser inferior, incapaz de corresponder ao conforto que lhe estava sendo oferecido.

Fanny Price não é um personagem simpático. Poucos leitores gostam dela. Ou de seu comportamento. Além de ter problemas de saúde, na vida diária jamais toma atitudes que possam desagradar os parentes. (...) sentia-se desamparada da mesma forma e encontrava algo a temer em cada pessoa e lugar. Nos momentos de crise tergiversa, foge, deixa que decidam em seu lugar. Usualmente, com um olhar de carinhosa dependência de sua boa vontade, ela [cede]. Falta-lhe orgulho próprio. Acredita que seu lugar na escala social dos moradores de Mansfield Park está limitado por diversos fatores. Essa retração tem compensação no aguçado poder de observação que desenvolve e permite que perceba antecipadamente todas as ações dos outros personagens.

Jane Austen (1775-1817)
Depois que Sir Thomas Bertram partiu para Antígua, nas Índias Ocidentais, para resolver uma série de negócios de singular importância para o futuro familiar, o tédio tomou conta de Mansfield Park. Tom, na companhia de Yates, um amigo, sugere a montagem de uma peça de teatro como uma forma de romper com a inércia e promover um pouco de diversão para todos. Participam do projeto Tom, Maria, Júlia, Yates, Rushworth (um vizinho), os irmãos Henry e Mary Crawford (que estão de visita aos Grant, parentes que residem próximos a Mansfield Park). Edmund tenta resistir à pressão, mas acaba sucumbindo. Fanny se recusa a participar, pois acredita que Sir Thomas desaprovaria.

Sir Thomas volta inesperadamente e decreta o fim do brinquedo familiar. No entanto, não consegue impedir alguns conflitos. A disputa pela progenitura entre Tom e Edmund, embora velada, se torna mais nítida. A Sra. Norris perde um pouco de seu prestígio com Sir Thomas (que muda o foco de suas atenções e passa a tratar Fanny com grande afeto). A vaidade de Henry Crawford só se contenta quando consegue chamar a atenção de Maria e Júlia – que se tornam rivais e passam a disputar a atenção do rapaz. Rushworth, que está apaixonado por Maria, não possui inteligência para perceber as nuances que envolvem essa agitação. Em determinado momento, Edmund diz: se esse homem não tivesse doze mil [libras] por ano, seria um sujeito bastante estúpido.

A peça de teatro foi cancelada, mas o jogo especular entre o real e o aparente, entre o que acontece fora de cena e o que é encenado, está presente em quase todos instantes: Verniz e dourados podem esconder muitas manchas. Não podendo ter Henry Crawford, Maria aceita se casar com Rushworth. Ou melhor, desposa a fortuna de Rushworth. Julia vai viver com o casal, em Londres. Tom se retira de cena. Edmund se retira de cena – imaginando estar apaixonado por Mary Crawford. Tom reaparece – doente. Henry Crawford imagina que está apaixonado por Fanny e propõe casamento. Considerando que a sobrinha jamais encontrará um pretendente com tamanha riqueza, Sir Thomas fica irritado com a recusa – e, como uma forma de castigo, manda Fanny passar alguns meses com sua mãe, em Portsmouth, período em que ela Vivia de cartas e passava o tempo todo entre os sofrimentos de hoje e aguardava os de amanhã. Essa avalanche de acontecimentos sem o menor sentido parece encaminhar o romance para um final inconclusivo. A ilusão se desfaz rapidamente diante da habilidade narrativa de Jane Austen – que vai encaixando lentamente as peças do quebra-cabeça, elucidando uma a uma as questões nebulosas.

Talvez o ponto mais interessante da narrativa seja o suspense sobre o destino de Fanny Price. Em muitos momentos, a partir da metade da narrativa,o embate entre a sutileza e o mal-entendido torna-se inevitável. O leitor se pergunta se a moça vai sucumbir ao charme, ao assédio e ao dinheiro de Henry Crawford. Como muitas coisas estão em jogo – inclusive a possibilidade de modificar a situação econômica de sua família –, somente o caráter determinado de Fanny consegue resistir às tentações. E elas, as tentações, são inesgotáveis. No entanto, Era como uma brincadeira de sentir medo.

Todos os maus pressentimentos se revelam verdadeiros no momento em que Fanny toma conhecimento que Maria Rushworth abandonou o marido e fugiu com Henry Crawford. Ninguém esperava por esse escândalo familiar – que se completa no momento em que Julia também “dá um passo errado” e se une com Yates. Curiosidade e vaidade se uniram, e a tentação de um prazer imediato foi forte demais para um espirito desabituado a fazer qualquer sacrifício à retidão, anota o narrador.

Sir Thomas finalmente percebe que os seus filhos que se comportam inadequadamente. As exceções são Edmund e Fanny, a filha adotiva. Justamente aqueles que não possuem direito à herança familiar. E que precisam de ajuda para sobreviver em um mundo onde as aparências e o dinheiro substituem o caráter e a honestidade.


Mansfield Park é um livro sem paixão. Embora pareça contraditório, como todo produto da época em que foi escrito, advoga o império do amor, da bondade e da inteligente. Seguindo a fórmula atemporal das estruturas narrativas românticas, está repleto de entraves, complicações e interditos. Para que o triunfo se estabeleça necessário se faz superar essas dificuldades. Sendo as questões financeiras o obstáculo mais importante. Uma grande renda é a melhor receita para a felicidade, parece ser o dístico moral que sobressai nessa confusão. Fanny Price discorda. Mas, como nada faz para protestar (exceto nos momentos em que não há alternativa), cabe a Edmund descobrir que Não lhe restava tempo para ser infeliz e que muitos segredos estão guardados no interior de um coração apaixonado.

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