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segunda-feira, 9 de março de 2015

JEITO DE MATAR LAGARTAS

O mundo se [divide] entre os de coração aflito e os de maldade extrema, afirma o narrador de Cara de Boneca, um dos vinte e sete contos que compõem Jeito de Matar Lagartas, de Antonio Carlos Viana.

Manejando um universo literário centralizado na tragédia, Viana coloca em cena um peculiar conjunto de personagens – quase todos com dificuldades econômicas. Seguindo os passos do escritor russo Anton Pavlovitch Tchekhov – mestre na exposição das miudezas sociais –, exibe as inúmeras variações do horror sem o mínimo escrúpulo.

Jeito de Matar Lagartas se divide entre relatos da infância e da velhice. O olhar da criança, próxima da adolescência, misturando ingenuidade e esperteza em doses desproporcionais, registra a decomposição do corpo e do espírito dos adultos. Ao mesmo tempo, reafirma que a crueldade – gratuita – é a moeda corrente nas trocas simbólicas que separam o gozo e a dor. O olhar dos velhos, indivíduos que ultrapassaram inúmeras dificuldades e que, de alguma maneira, se tornaram sobreviventes de suas (nem sempre corretas) escolhas, confirma que a solidão e as carências afetivas não diminuíram com o passar dos anos e a consequente proximidade da morte. No mundo suburbano, repleto de ausências e misérias, a esperança de dias melhores desaparece diante do poder da perversidade.

No primeiro conto do livro, Muralha da China, um acidente automobilístico resulta em situação bastante tensa e que está concentrada na dificuldade de contar para a vizinha que o marido e o filho morreram. O registro da agonia não perde intensidade com a soma dos parágrafos. Ao contrário, acrescenta camadas de suplício ao drama.

O aprendizado (emocional, sexual) está presente no conto homônimo ao título do livro. Enquanto as crianças (Laércio, Lídia, o narrador), misturando brincadeiras e malícia, esmagam as lagartas que estão infestando os cajueiros do sítio de Marluce, a tia do narrador, outra história se desenvolve longe do olhar do leitor. Nas frases finais, o interdito sai das sombras e invade a imaginação, Quando abrimos a porta, tomamos o maior susto: tia Marluce estabanada debaixo do corpo de seu Laurentino, se contorcendo que nem uma lagarta.

Como Não há histórias de amor sem cuecas e calcinhas, as mulheres que deixaram para trás histórias de fracassos afetivos estão presentes em diversos momentos. Roteiro da Solidão, Nena de Cabelos Soltos, Paixão no Delta, Três Lembranças, pronunciam que a amargura e a solidão muitas vezes se transformam em substituto para o carinho. Viver com outra pessoa prenuncia o instante em que o abandono assume o controle da vida de quem acreditou no amor.

As ações sexuais – sempre desejadas; muitas vezes, inalcançáveis – revelam o reencontro com as delícias do prazer, como em Florais, onde a narradora, que ficara triste porque fizera com Alain Delon o que jamais havia feito com o marido, perde a discrição que sempre a caracterizara e confessa o inconfessável, só mesmo a Fúcsia da Califórnia para lhe dar aquela coragem de dizer que ainda havia um território em seu corpo que nunca fora explorado. A vida amorosa também espelha fracassos, como em Enquanto Espero, Madame Viola Faz Escova Progressiva, Dona Katucha, Gedeão, Maria Montez.
  
O olhar masculino sobre o abandono afetivo aparece – de forma contundente – em Amarelo Klint (relato sobre os elementos transversos que corrompem a amizade), Cara de Boneca (exemplo eloquente da banalidade do mal), Cozinha Benguela (momento de incomunicabilidade amorosa) e As Margens Férteis do Nilo (a paixão pela professora colegial reinventada trinta anos depois).

Algumas cenas conseguem sintetizar a vida repleta de dificuldades, de perdas. É o caso do mundo visto pelos olhos do amigo da menina paraplégica (Balé), do narrador inominado que relata um drama familiar (Professor Locarno) e do menino, em Salviano, que, diante da perda de seu animal de estimação, desabafa, Felizmente consegui segurar o choro. “Assim é a vida”, pensei pela primeira vez, enquanto meu pai molhava o dedo na língua para contar melhor o dinheiro.

Em Reencontro, a reflexão política, quase que uma desforra pelo sofrimento sofrido quarenta anos antes, se mostra inócua. Os problemas neurológicos do Monsenhor o estão transformando em um vegetal, incapaz de perceber o quão danosas foram as ações colaboracionistas da igreja com a tortura política.

As melhores histórias, Lucy in The Sky, A Caixa e Missa de Sétimo Dia, mostram que a tristeza não é impedimento para momentos de grandiosidade. Na primeira, o amor surge quando parecia estar perdido para sempre. Na segunda, uma caixa, enviada por Sedex para Annemarie, pode destruir o seu casamento com Duda. Na última, celebrar o amor perdido implica em encontrar resposta para uma pergunta desconcertante, Mas quem já viu coroa de flores em porta de sex shop?

Atento às ações de suas personagens, Antonio Carlos Viana utiliza da elegância das frases simples, dessas que adquirem substância através de elementos mínimos, para se afastar do sentimentalismo. Sem aliviar as tensões, sem amenizar a brutalidade, o corte afiado da lâmina literária revela a beleza do inumano.


Antonio Carlos Viana é o autor de Brincar de Manja (1974), Em Pleno Castigo (1981), O Meio do Mundo (1993), livros que foram reunidos pelo Paulo Henriques Brito em O Meio do Mundo e Outros Contos (1999). Depois publicou Aberto Está o Céu (2004), Cine Privê (2009) e Jeito de Matar Lagartas (2015).


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