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sexta-feira, 20 de março de 2015

SNIPER AMERICANO

Na frente de batalha os psicopatas encontram o paraíso. Sob a alegação de que estão protegendo a pátria, encontram uma maneira “legítima” de satisfazer os instintos mais perversos – sem precisar prestar contas para ninguém. Cada tiro disparado contra o inimigo constitui um alvará para a impunidade. Uma dessas histórias – com todas as atrocidades inerentes – está narrada em Sniper Americano (American Sniper. Dir. Clint Eastwood, 2014), baseado no livro American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U. S. Militar History, e indicado a seis Oscar em 2015 (ganhou na categoria Montagem de Som).

O filme conta a história de Christopher The Legend Scott Kyle (interpretado por Bradley Cooper), um soldado do SEAL (sigla da principal força de operações especiais de combate da marinha estadunidense e que possui capacidade para atuar no mar [sea], ar [air] e terra [land]). Durante a Guerra do Iraque, Kyle atuou como sniper (atirador de elite) e foi responsável por 160 mortes comprovadas de combatentes iraquianos – inclusive mulheres e crianças. Estimativas extraoficiais creditam-lhe um número bastante superior: 255. Condecorado diversas vezes, alguns setores militares estadunidenses o consideram um exemplo a ser seguido.

Centrado no personagem, ou melhor, na extrema habilidade do atirador, além de glorificar a violência produzida pela guerra, Sniper Americano se mostra incapaz de qualquer tipo de reflexão crítica ou emocional sobre as razões que resultaram no conflito. A alegação de armas químicas (que não existiam, como foi comprovado posteriormente) ou a imposição ridícula de um regime “democrático” no Iraque sequer são abordadas. Ou melhor, qualquer discussão sobre o assunto é abortada. O filme tudo faz para omitir o fato elementar de que a morte de civis iraquianos não pode ser separada do horror perpetuado pelas forças de ocupação. Um dos elementos que contribui para a formação dessa tempestade de areia  nos olhos do espectador (como retratado em um dos mais importantes momentos do filme), separando os lados tênues e limítrofes da questão, está no confronto ad hoc entre Kyle e seu duplo, Mustapha, um atirador muçulmano (originário da Síria), medalhista nas Olimpíadas (humilhação esportiva que Kyle – que nunca foi nada – não possui maturidade para superar). Como se fosse uma desses duelos de faroeste de terceira classe, o “mocinho” consegue sacar primeiro que o “bandido”. Headshot, gritaria, excitado, qualquer adolescente, em uma partida de Counter Strike.

O uso de um fluxo narrativo intenso, próprio de vídeo game, não permite nenhum tipo de discussão moral sobre o ato de matar. Tiros e corpos ensanguentados se repetem na tela com frequência anestésica. A ideia geral está em provocar tédio no espectador, induzindo o pensamento simplista de que tirar a vida do “inimigo” constitui um propósito que deve ser alcançado por qualquer patriota. Enfim, estar do “lado certo” é compensação suficiente para estruturar um personagem (e seu reflexo, o espectador) emocionalmente vazio. Mesmo nos momentos mais emblemáticos, quando – com as mãos sujas de sangue – qualquer ser humano desmoronaria psicologicamente, Kyle mantém – de forma inflexível – o discurso cego de que é apenas um militar que está defendendo o seu país e os soldados que integram a unidade em que serve. Protegido por essa couraça, ele segue assassinando, com precisão cirúrgica, aqueles que (independente de qualquer posição política) lutam contra os invasores do Iraque.

Depois de duas horas de projeção, cabe ao espectador com um mínimo de senso crítico perceber que o tremular da bandeira nacionalista em Sniper Americano não passa de uma desculpa para construir uma hagiografia. Somente os fracos de caráter ou os ignorantes caem nessa cilada, que almeja transformar uma máquina de matar em herói.

Nos raros momentos em que são mostrados encontros familiares, a dissintonia entre o mundo real (a guerra) e o mundo ideal (o prazer em estar com a esposa e os filhos) multiplica a sensação de alienação. Ou de paranoia. Quase ao final do filme, há um episódio sintomático em um churrasco de confraternização. Ao ver um dos filhos brincando com um cachorro, Kyle perde a noção de tempo e espaço e revive – através da brutalidade – o mundo hostil, mostrando que o instinto do psicopata ultrapassa as regras de comportamento social.

Em uma das últimas cenas, o ciclo da selvageria se perpetua. Assim como seu pai o ensinou a caçar, Kyle transmite o ensinamento ao filho. A diferença, nesse instante, é que, em determinado momento, rifle na mão, ele diz ao menino, it’s a hell of things, killing a beating heart (momento replicante de um filme anterior de Clint Eastwood, Os Imperdoáveis, [Unforgiven, 1992], quando um dos personagens diz it’s a hell of things, killing a man). Talvez seja esse “coração batendo” um dos raros momentos em que o sentimento humano, verdadeiramente humano, se destaca no filme. 

Chris Kyle foi morto a tiros por outro veterano de guerra, em 2013 – confirmando, por vias transversas, que o destino não perde uma oportunidade de propor ironias perversas.


P.S: Para quem tiver interesse nas representações cinematográficas da Guerra do Iraque, cabe ver Guerra ao Terror (Hurt Locker. Dir. Katherine Gigelow, 2009) e Zona Verde (Green Zone. Dir. Paul Greengrass, 2010), filmes qualitativamente superiores a Sniper Americano.  

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