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quinta-feira, 9 de julho de 2015

A CARTA ESFÉRICA

                                        – Pois lembre-se do ditado: com mulher e vento, tomar muito tento. 
                                       (A Carta Esférica, de Arturo Pérez-Reverte)


Os romances de aventuras estão quase em extinção – sobraram apenas os romances policiais, que (por razões diferentes) também perderam suas características iniciais. Parte da explicação para esse fenômeno está no fato de que os limites humanos e geográficos não mais interessam como temas literários. Júlio Verne, Karl May e Emílio Salgari, entre outros, se tornaram nomes perdidos dentro dos dicionários de curiosidades literárias. Um pouco dessa "terra arrasada" está relacionado com a falta de imaginação que caracteriza o a-pós-a-moderna-idade (lugar indefinido nas escalas cronológicas e humanas; e povoado por milhares de quinquilharias eletrônicas). Além disso, o cinismo e a falta de escrúpulos de alguns setores sociais contemporâneos (especialmente aqueles que estão ligados à escravidão econômica) praticamente impedem o ressurgimento do herói ético – aquele indivíduo que, sem contar com muitos recursos físicos ou tecnológicos, coloca em risco a própria vida para defender uma causa que (considera, imagina) “superior”.

Os tempos são outros. Escritores e leitores perderam parte do prazer lúdico. Mesmo quando apostam em algumas fantasias escapistas (Harry Porter, de J. K. Rowlings, Crônicas de Fogo e de Gelo, de George R. R. Martin) ou certas distopias adolescentes (Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, e Maze Runner, de James Dashner), há visível cansaço narrativo. Nessas sagas (que se desdobram em vários volumes e milhares de páginas), todos os protagonistas se assemelham com semideuses (a série Percy Jackson, de Rick Riodan, que emula a mitologia grega, evidencia a regra). As ações são intensas, velozes, destacando que a heroicidade se opõe frontalmente ao “mal” (seja lá o que isso for). Os diálogos são ágeis e repletos de referencias culturais. A soma de todas essas características (que estabelecem um padrão narrativo próximo da pasteurização) visa impedir que o leitor tenha algum tempo para recuperar o fôlego – e perceber o quanto tudo o que está sendo narrado se afasta do verossímil.

Ao mesmo tempo, toda essa estrutura quer afirmar duas questões básicas. A primeira é que o que aproxima (ou afasta) os homens dos deuses é a ambição, a vontade de realizar tarefas extraordinárias. Em contrapartida, é o fracasso – diante de situações épicas – que determina a humanidade dos personagens. Provavelmente porque, como representação da vida “real”, algumas situações não podem ser salvas por um truque de mágica ou pela ajuda que surge no ultimo momento, um segundo antes da catástrofe – efeito narrativo que está cristalizado no inconsciente daqueles que foram “educados” pelo cinema estadunidense.

Um dos poucos escritores “modernos” que coloca o seu talento narrativo a serviço da literatura de entretenimento é o espanhol Arturo Pérez-Reverte, autor de romances como O Clube Dumas, O Mestre de Esgrima, O Quadro Flamengo e a série As Aventuras do Capitão Alatriste, entre outros. Sem se preocupar com propostas narrativas inovadoras, ele quer apenas contar uma boa história. Por isso, procura reconstruir ficcionalmente situações incompatíveis com o a modernidade tecnológica. Enfim, Pérez-Reverte cria enredos inusitados, repletos de cenas intensas – onde se deslocam personagens anacrônicos (esgrimistas, marinheiros, bibliófilos, enxadristas, homens e mulheres apaixonados pelos mistérios da vida).

Um dos romances de Pérez-Reverte, A Carta Esférica, tem o mar como cenário. Seguindo o caminho trilhado por Joseph Conrad (Lord Jim, A Linha de Sombra), Herman Melville (Moby Dick), Robert Louis Stevenson (A Ilha do Tesouro), Jack London (O Lobo do Mar), Daniel Defoe (Robinson Crusoe) e Homero (A Odisséia), comprova, no ritmo A + B, que sempre [existe] um barco naufragado, uma ilha, um refúgio, uma aventura, um lugar em alguma parte do outro lado do mar, na linha difusa que mistura os sonhos com o horizonte.

Manuel Coy, o protagonista de A Carta Esférica, é um homem passional, impulsivo, desses que agem por instinto, com essa expressão tímida que o deixava com cara de criança e suavizava seus traços duros, seu nariz grande demais e as feições toscas, o queixo quase sempre mal escanhoado. Em qualquer situação que exija um pouco de paciência, prefere brigar. Ao mesmo tempo, ele tem consciência de que Tinha a infelicidade, ou a sorte, de ser um desses homens para quem o único lugar habitável fica a dez milhas da costa mais próxima. Em terra firme seu corpo aderna, perde a sustentação, naufraga. Parte desse sentimento se explica pela constatação de que, atualmente, a modernidade e a tecnologia transformaram os marinheiros em caminhoneiros do oceano e funcionários sindicalizados. O mundo objetivo mudou, mas Manuel Coy continua a viver como isso não fosse possível. Ele é um saudosista, queria estar em outra época, em outra aventura. Nem mesmo as sardas que desenham delírios (sexuais, emocionais) na pele de Tánger Soto o fazem recuperar o equilíbrio. Um dos seus maiores pesares ocorre no momento em que esquadrinha as ruas de Madrid e descobre que a cidade não tem porto. Sem o oceano, a vida não tem propósito – embora constate que Nem sempre os barcos afundados estão no mar.Uma pequena surpresa: Manuel Coy gosta de jazz, Miles Davies, John Coltrane, Charlie Parker – trilha sonora da melhor qualidade.

Tánger Soto é uma tempestade em forma de mulher – dessas que arrastam tudo e todos para o vórtice da destruição. E na impossibilidade de defini-la de forma adequada, cabe concordar com Manuel Coy e o narrador, quando dizem que Em tais condições, essa mulher era um rumo tão bom quanto outro qualquer.

Ao ler sobre a jornada épica que está narrada em A Carta Esférica, o leitor se pergunta: o que devia sentir o homem que pela primeira vez saiu à caça de uma baleia, um tesouro ou uma mulher sem ter lido isso antes em um livro? Há muitas respostas possíveis para essa pergunta impertinente. Talvez nenhuma delas seja relevante. De qualquer forma, não é possível abandonar as 529 páginas do livro (na edição brasileira) sem arriscar um palpite. Cherchez la femme, dizem os francesas, cientes de que essa é a única explicação possível para todos os desatinos dos homens. Ou, como diz Néstor Perona, o narrador do romance, a ciência náutica não serve para nada na hora de navegar em terra firme ou em torno de uma mulher.


Evidentemente, não cabe contar os detalhes que vão sendo revelados – lentamente – no decorrer do livro. Ao leitor cabe o exercício aritmético, somar isso e aquilo, e ir compondo, lentamente, o quadro geral – apesar de saber que as ilusões de ótica são frequentes nesses casos, o engano é um companheiro próximo. Essa técnica de enredamento vai prendendo a atenção do leitor como se fosse uma âncora, peso destinado a impedir que o barco aderne. Mas, para que ninguém reclame de estar navegando em águas perigosas, a história contada em A Carta Esférica envolve dois barcos que naufragaram em 1767, um tesouro, bandidos, traições e a inevitável troca de fluídos corporais entre Manuel Coy e Tánger Soto. Muitos livros se sustentam em pé com muito menos do que isso.

Enfim, No mar todos os caminhos são longos. Alguns, inalcançáveis. Mesmo que os indivíduos utilizem de subterfúgios – como Ulisses, que precisou amarrar a si mesmo no mastro do barco para poder resistir ao canto das sereias –, não há como fugir do pathos (paixão, sofrimento, doença) que acompanha a existência humana.


TRECHO ESCOLHIDO

Coy respirava a brisa deliciado, farejando a iminência de mar aberto. Desde a primeira vez que pisou no convés de um barco, o momento da partida sempre lhe dava uma sensação de calma singular, muito próxima da felicidade. A terra ficava para trás, e tudo aquilo de que podia precisar viajava com ele a bordo, circunscrito aos limites da embarcação. No mar, pensava, os homens viajavam com a casa nas costas, como a mochila de um explorador ou a concha que se desloca com o caramujo. Bastavam alguns litros de diesel e de óleo lubrificante, velas e vento adequado para que tudo o que a terra firme contivesse se tornasse supérfluo, prescindível. Vozes, ruídos, pessoas, cheiros, tirania do ponteiro do relógio deixavam, aqui, de ter sentido. Locomover-se até deixar a costa bem lá longe, pela popa, já era um objetivo. Diante da presença ameaçadora e magica do mar onipresente, dores, anseios, laços sentimentais, ódios e esperanças se diluíam na esteira, amortecendo até parecerem distantes, sem sentido, porque o mar tornava os seres humanos egoístas e concentrados em si mesmos. Havia coisas intoleráveis em terra, pensamentos, ausências, angustias, que só podiam ser suportadas no convés de um navio. Nunca houve analgésico tão poderoso como esse; e ele tinha visto sobreviver, a bordo de barcos, homens que em outro lugar teriam perdido para sempre a razão e a calma. Rumo, vento, ondas, posição, singradura, sobrevivência: ali só essas palavras tinham algum significado. Pois era certo que a verdadeira liberdade, a única possível, a verdadeira paz de Deus começava a cinco milhas do litoral mais próximo. (p. 292-293). 

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