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sábado, 31 de outubro de 2015

CINQUENTA CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS

Thomas Hobbes (1588-1679)
– Até hoje, a história de toda sociedade é a história da luta de classes. (Karl Marx e Friedrich Engels)

– O homem é um animal sociável que detesta seus semelhantes. (Eugène Delacroix)

– É necessário estar sempre embriagado. Tudo está aí: é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que quebranta vossos ombros e vos curva em direção à terra, deveis vos embriagar sem trégua. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiserdes. Mas embriagai-vos. (Charles Baudelaire)

– Não será o medo da loucura que nos obrigará a baixar a bandeira da imaginação. (André Breton)

– Por tanto tempo quanto os homens viverem sem um poder comum que a todos mantenha em respeito, estarão nessa condição chamada guerra, e essa guerra é guerra de todos contra todos. (Thomas Hobbes)

– Uma vida infeliz é impossível sem a sabedoria, a honestidade e a justiça, e estas, por sua vez, são inseparáveis de uma vida feliz. (Epicuro)

– A linguagem está nos postos de comando da imaginação. (Gaston Bachelard)

– Se a vida é miserável, é penoso suportá-la; se é feliz, é horrível perdê-la. É a mesma coisa.  (Jean de La Bruyère)

– Existe uma espécie de vergonha de ser feliz diante de certas misérias. (Jean de La Bruyère)

– Não contraria a razão preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão no meu dedo. (David Hume)

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)
– É necessário que nasçamos culpados – ou Deus seria injusto. (Blaise Pascal)

– A memória age como uma lente convergente na câmara escura: reduz todas as dimensões e produz, dessa forma, uma imagem bem mais bela do que o original. (Arthur Schopenhauer)

– Existe uma única virtude, a justiça; um único dever, ser feliz; um único corolário, às vezes desprezar a vida. (Denis Diderot)

– A razão é e só pode ser escrava das paixões; não pode pretender outros papéis que não servir e obedecer a elas. (David Hume)

– Em toda religião, o homem religioso é uma exceção. (Friedrich Nietzsche)

– A arte é feita para perturbar. A ciência tranquiliza. (Georges Braque)

– Tenho pena das pessoas que protestam contra a instabilidade das coisas humanas e perdem-se em reflexões sobre o nada terrestre: estamos no mundo terreno justamente para tornar imperecível o que é perecível, e isso só é possível fazer se soubermos apreciar a ambos. (Johann Wolfgang von Goethe)

– Não se encontra o espaço, é sempre necessário construí-lo. (Gaston Bachelard)

– Por mais que se sonhe com bebidas, quando se está realmente com sede é preciso despertar para beber. (Sigmund Freud)

– O tempo tem apenas uma realidade, a do instante. Em outras palavras, o tempo é uma realidade comprimida no instante e suspensa entre dois nadas. (Gaston Bachelard)

Emmanuel Kant (1724-1804)
– O conceito é o que impede o pensamento de ser uma simples opinião, um conselho, uma discussão, uma tagarelice. (Gilles Deleuze)

– Surpreender-se com ver tantos vícios inundarem a sociedade e incomodar-se com isso é espantar-se por se caminhar menos à vontade em uma rua movimentada do que quando se passeia pelo campo. (Paul-Henri Dietrich d’Holbach)

– A faculdade de um ser agir segundo suas representações chama-se vida. (Emmanuel Kant)

– Da mesma forma que havia em Roma, além dos romanos, um povo de estátuas, existe fora desse mundo real um mundo imaginário, talvez bem mais vasto, no qual vive a maioria dos homens. (Johann Wolfgang von Goethe)

– Todas as paixões exageram, e só são paixões porque exageram. (Nicolas Sebastian Roch, conhecido como Chamfort)


Friedrich Nietzsche (1844-1900)
– Quem mata um homem é um assassino. Quem mata milhões de homens é um conquistador. Quem mata a todos é um deus. (Jean Rostand)

– Por mais que a razão proteste, ela não pode colocar o preço nas coisas. (Blaise Pascal)

– Só há um caminho para a felicidade (que isso esteja presente em teu espírito desde a aurora, dia e noite): é renunciar às coisas que não dependem de nossa vontade. (Epicteto)

– Essa liberdade humana que todos se vangloriam de possuir consiste apenas em que os homens têm consciência de seus apetites e ignoram as causas que os determinam. (Baruch Spinoza)

– O operário coloca sua vida no objeto. Mas então esta não lhe pertence mais, pertence ao objeto. (Karl Marx)

– O desejo se exprime pela carícia, como o pensamento pela linguagem. (Jean-Paul Sartre)

– Desejar, ter aversão, garantir, negar, duvidar são maneiras diferentes de querer. (Rene Descartes)

Baruch Spinoza (1632-1677)
– Se não houvesse injustiça, ignorar-se-ia até o nome da justiça. (Heráclito)

– O homem não tem nenhum outro animal a temer no mundo tanto quanto ao homem. (Michel de Montaigne)

– Todo homem, porque fala, acredita poder falar da palavra. (Johann Wolfgang von Goethe)

– O medo do tédio é a única desculpa do trabalho. (Jules Renard)

– A filosofia é para o estudo do mundo real o que o onanismo é para o amor sexual. (Karl Marx e Friedrich Engels)

– Há tanta diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e o outro. (Michel de Montaigne)

– A felicidade é a mais cruel das armas nas mãos do Tempo. (Paul Valéry)

– São filósofos aqueles capazes de atingir o que sempre existe de maneira imutável. (Platão)

– A arte, a religião e a filosofia só diferem pela forma; seu objeto é o mesmo. (Georg Wilhelm Friedrich Hegel)

– O que existe de mais real para mim são as ilusões que crio com minha pintura. O resto é areia movediça. (Eugène Delacroix)

– Todas as vezes que um poder qualquer for capaz de fazer todo um povo contribuir para um único empreendimento, com pouca ciência e muito tempo, conseguirá extrair de um concurso de tão grandes esforços algo de imenso, sem que com isso seja necessário concluir que o povo é muito feliz, muito esclarecido ou mesmo muito forte. (Alexis de Tocqueville)

Denis Diderot (1713-1784)
– As paixões são os únicos oradores que sempre convencem. (François de La Rochefoucauld)

– Toda coisa na natureza age segundo leis. Apenas um ser racional tem a faculdade de agir segundo a representação das leis, ou seja, segundo os princípios; em outras palavras, apenas ele tem uma vontade. (Emmanuel Kant)

– O trabalho não produz apenas mercadorias: produz a si mesmo e produz o operário enquanto mercadoria, e isso na medida em que produz mercadorias em geral. (Karl Marx)

– Nas trevas, a imaginação trabalha mais ativamente do que em plena luz. (Emmanuel Kant)

– Ao contrário do que é dito no Sermão da Montanha, se tens sede de justiça, continuarás a ter sede. (Jules Renard)

– A maioria ignora o que não tem nome; e a maioria acredita na existência de tudo o que tem nome. (Paul Valery)

– Os filósofos só fizeram interpretar o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo. (Karl Marx e Friedrich Engels)

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

MANGA-ESPADA

Dizem que a poesia está em crise. Modestamente, discordo. Quem está com problemas é o leitor – que, em sua defesa, alega haver algum tipo de desconexão entre a linguagem poética e a contemporaneidade. Há quem sustente a tese de que a poesia se transformou em uma espécie de monólogo sem sentido ou direção. Esse pensamento, no mínimo, discutível, não explica o afastamento. Aliás, não esclarece nada. Tanto que os livros de poesia continuam sendo impressos. Centenas. Milhares. Para todos os paladares. Sonetos, haicais, poesia concreta, odes, dramas épicos. Uns de significativa qualidade; outros, nem tanto. Basta escolher. E comprar. Embora pareça que existem questões mais importantes, sempre é bom lembrar que ninguém (nem mesmo os poetas!) vive de brisa ou de afeto. Alguns trocados (e graúdos) são necessários para garantir o pão de cada dia – em alguns casos, a cerveja de cada noite. Há quem chame isso de sobrevivência. Ou algo parecido. Por isso, quando não conseguimos encontrar o que deveríamos encontrar nas livrarias, cabe procurar em alguns sítios da internet. A modernidade (e suas facilidades) não pode ser ignorada. Tudo (ou quase tudo) está ao alcance de todos.

Depois de ler alguns dos poemas que integram Manga-Espada nas redes sociais, comprei um exemplar do livro. Entrei em contato com a escritora – que gosta de ser chamada de Sinhá. Fui informado do valor do exemplar. Depositei o dinheiro. Não demorou muito até o livro chegar às minhas mãos. Talvez uma semana. Ou um pouco mais. Não lembro. Não é importante. Ele está aqui, ao meu lado. Como bônus, ganhei autógrafo.

Na maioria dos casos, são poemas concisos. Poucos versos. A síntese como projeto literário. Impacto visual. Encontro entre palavra e imagem. Magia ancestral. A sensibilidade do leitor atingida pela surpresa. Ou pela revelação.O assombro refletido no entrelaçamento entre a linguagem e a emoção. Semeadura e comunhão. O passado e o presente projetando o futuro. Ou a ficção.

nos olhos de minha avó
uma dor que me espera.


Ser mulher está além das definições escolares, dos conceitos enciclopédicos, das frases redutoras ou dos preconceitos machistas. O tema surge em cada uma das páginas poéticas. Compromisso e respeito com a questão de gênero. Setas que viajam pelas palavras, carregadas de leveza, serenidade, suavidade. Também levam junto – nessa correnteza descontrolada – humor, canções, lirismo, autenticidade, sinceridade, empatia. O coração batendo fora do corpo, porto sem cais, além do desejo, quase um beijo. Sem se ater à racionalidade linear.

abrem-se pernas
como cortinas
de veludo e pelo.
têm todo descontrole
na pele
todos os declives
no peito.


Quintais, frutas e frutos, temperos – a natureza como elemento primordial. Basta abrir o livro e sentir o cheiro de terra, depois de chuva de verão. O mundo como espetáculo. Como graça divina. Ou melhor, como fabulação humana. Civilidade. Conjunção de sabores e saberes.

o formigueiro
reverenciou

mais um
em seu terreiro.


Viver é traduzir desassossegos. Propor rimas desajeitadas para poemas que nunca serão escritos. Caminhar pelas cidades e pelas lembranças. No meio da tarde? Ou nas manhãs ensolaradas? Procurar definições no que não pode ser definido. Escolher o caminho mais longo para voltar para casa. 

A palavra nunca foi capaz de fornecer significado à aflição. No máximo, é um arranjo temporário, incerto, sem compromissos com o amanhã.

pelas marcas de lençol na pele

vejo a geografia da noite.


A poesia margeada pelo erotismo. O tesão andando de mãos dadas com a ilusão. Par perfeito. Impar e imperfeito. Do mesmo jeito que algumas falhas. Faltas. Falas que parecem se referir a algo que não está expresso no texto. Embora esteja lá, bem visível. Basta abrir os olhos. E ver.

minha língua
à margem
de sua boca
é linguagem.


Manga-Espada celebra a delicadeza. O cuidado ao traduzir a sensibilidade poética em versos e poemas. O poder de sedução. Bom gosto e elegância.



quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O GIGANTE ENTERRADO

Uma vez estabelecido um estilo, poucos são os escritores que arriscam e optam por mudanças. Em 1989, Kazuo Ishiguro, escritor inglês de origem japonesa, ganhou o Booker Prize com um romance emocionalmente contido, Os Vestígios do Dia (também traduzido como Os Resíduos do Dia), que muitos leitores consideram como o mais inglês de todos os romances ingleses. Descontando os exageros, a história de Stevens, um mordomo que abre mão da individualidade em favor da satisfação dos patrões, foi adaptada ao cinema (Dir. James Ivory, 1993), com Anthony Hopkins no papel principal. Em Não me Abandone Jamais, também adaptado para o cinema (Dir. Mark Romanek, 2010), uma instituição acolhe crianças para, em momento oportuno, as utilizar como doadores de órgãos humanos. Entre a selvageria utilitarista e o lirismo afetivo, há o desencanto e a impotência que somente a ficção cientifica consegue produzir. A música encantatória que une os cinco contos que integram Noturnos provoca empatia e prazer nos leitores – independente de juízo de valor que tenham sobre essa relação complicada que une e separa a música e a literatura.

Todas essas narrativas (além de Uma Pálida Visão dos Montes, Um Artista do Mundo Flutuante, O Inconsolável e Quando Éramos Órfãos) estão fixadas em bases realistas sólidas. Mas, no último livro, O Gigante Enterrado, Ishiguro preferiu mudar radicalmente de direção. Decidiu atravessar as fronteiras que separam o mundo concreto do universo das fábulas míticas. Alguns críticos literários não gostaram dessa guinada. Preferiam que Ishiguro continuasse naquele chove, mas não molha da linguagem sub-reptícia. Ou seja, escrever centenas de páginas para não dizer o que deveria ser dito e – como complemento dessa negação – dizer o que deve ser dito. Firulas, dribles, pouca ação, gol no último minuto de jogo. Há quem goste.

Misturando cavaleiros da Távola Redonda, castelos com passagens secretas, dragões, ogros e valores imprescindíveis como ternura, honra, coragem e amor, O Gigante Enterrado tem na memória o seu tema principal. O casal de idosos, Axl e Beatrice, inicia uma jornada insensata. Querem encontrar o filho, que – dizem – mora em uma aldeia distante uns dois dias de caminhada. Muitos obstáculos se apresentam. Chegar ao destino se mostra difícil. Como se tivessem entrado em um labirinto, o casal de velhos não consegue encontrar a saída – que somente é revelada no capítulo final.

Mais do que uma história angustiante, repleta de momentos violentos, O Gigante Enterrado coloca em xeque inúmeras questões fundamentais. Durante o governo do Rei Artur aconteceu a unificação da Inglaterra. Através das armas, a paz foi imposta. Bretões e Saxões passaram a viver como se fossem irmãos. Depois da morte de Artur, o povo continua anestesiado. A razão dessa apatia está relacionada com um feitiço do Mago Merlin. Uma névoa, expelida pelo dragão-fêmea Querig, cobre os quatro cantos do país. Ninguém consegue recuperar o passado – embora ocorram, esporadicamente, agumas lembranças fragmentadas. Esse desconforto, expresso na pergunta que Axl faz para Beatrice, Mas você mesma não disse, princesa, que a nossa vida juntos é como uma história com final feliz, não importa que curvas ela tenha feito no caminho?, encontra contraponto e desconforto em outra declaração de Axl, quase no final da narrativa, (...) prometa, princesa, que não vai esquecer o que sente por mim no fundo do seu coração neste momento. Pois de que adianta uma lembrança voltar da névoa se for para apagar outra?

Enquanto estão se dirigindo à aldeia do filho, Axl e Beatrice encontram Sir Gawain (que se assemelha a Don Quixote), o guerreiro Wistan e o menino Edwin, entre outros personagens. A vida de cada um deles está entrelaçada com um objetivo complicado: destruir Querig, a dragão-fêmea. Muito sangue escorre pelo fio das espadas até que essa intenção se concretize. Infelizmente, no momento em que os habitantes da Inglaterra recuperam a memória (perdida, suprimida, distorcida) surgem novos problemas. Quem sabe o que virá quando homens eloquentes começarem a fazer velhos rancores rimarem com um novo desejo de conquistar terras e poder?, pergunta Axl.

Para essas questões não há resposta suficiente. O continuum histórico está impedido de oferecer soluções ou garantias de estabilidade. No máximo, projeta o futuro – que muitas vezes está longe de qualquer expectativa triunfalista. Para o bem e para o mal, o despertar do gigante enterrado pode acontecer a qualquer instante.

O Gigante Enterrado não deve ser lido como – apenas – um conto de fadas sangrento.Tampouco deve ser considerado como um entretenimento de primeira linha, similar aos livros de J. R. R. Tolkien e George R. R. Martin. Combinando o sabor dos épicos clássicos com a imaginação literária, a narrativa possibilita significativas reflexões sobre a memória, a amizade, o amor, a guerra e a morte.


Do ponto de vista estrutural, existe um narrador inominado, onipresente e relativamente distante da ação narrativa, que em alguns momentos parece ser intimo de Axl e Beatrice. O relato linear (começo, meio e fim – nessa ordem) está repleto de elipses, momentos em que alguns acontecimentos são suprimidos, para logo depois serem recuperados de forma sintética. O foco narrativo está dividido em duas partes. Alternam-se cenas com o casal e com o menino Edwin. Através desses dois olhares, ocorre o desenvolvimento da tessitura literária. No entanto, a estabilidade ficcional sofre alterações importantes em três momentos diferenciados. Em dois capítulos, Sir Gawain oferece ao leitor poderosos monólogos interiores. No capítulo final, o barqueiro (que talvez seja o narrador geral) assume a tarefa de concluir a narrativa em depoimento de primeira pessoa.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

TUDO QUE É

Quando James Salter (nascido James Horowitz) morreu, em 19 de junho de 2015, aos 90 anos de idade, poucas pessoas – inclusive aquelas que estudam literatura – perceberam a extensão da perda. Salter nunca foi o artista que os publicitários chamam de pop star. E isso significa que não costumava frequentar as listas de best-sellers das revistas semanais. Melhor assim. A qualidade raramente é encontrada nas gôndolas dos supermercados. Em compensação, Salter foi aclamado por escritores como Saul Bellow, Philip Roth, Susan Sontag e Richard Ford – que o consideravam como um dos grandes escritores estadunidense do século XX. A literatura de Salter se caracteriza pela concisão, pelo estilo e pela ausência de malabarismos literários. As suas frases se desenvolvem naturalmente, evitando o excesso ou as dificuldades de expressão. Preocupado com a linguagem – instrumento primordial para quem quer contar uma boa história –, procurava rejeitar o protagonismo como elemento fundamental da dinâmica narrativa. Englobando um número significativo de elementos, temas e personagens, construiu painéis sociais, ou melhor, um conjunto de minúcias afetivas e amorosas. É como se quisesse afirmar que a magia literária precisa estar conectada com o lirismo e a elegância.

Tudo que é, o último livro de James Salter, na falta de uma expressão melhor, pode ser descrito como um impressionante tour de force. Enquanto descreve o glamour e os fracassos que acompanham a vida intelectual e amorosa de Philip Bowman, um editor de razoável sucesso em Nova York, o romance produz incansável encadeamento dos acontecimentos narrativos. Havia também o dom da conversa, a história de tudo, contada e recontada, até se saber de tudo, das famílias e dos nomes. Sentavam-se em varandas sombreadas à tarde ou à noitinha e falavam devagar, com voz misteriosa, das coisas que haviam acontecido e com quem, explica o narrador (terceira pessoa, inominado, onisciente, onipresente), sublinhando a necessidade de interligar diversas histórias para fornecer um desenho ficcional substancial. Ao mesmo tempo, procura avisar ao leitor que a vida está repleta de insignificâncias e grandes traumas, de bobagens e crueldades profundas. Essa perspectiva fornece uma camada de entendimento muito particular para dramas que muitas vezes desaparecem em meio a outros tumultos.

Oscilando entre a glória e a iniquidade, a vida de Philip Bowman se divide entre o trabalho editorial e as mulheres por quem se apaixona. Infelizmente, na medida em que a vida vai deslizando na direção do futuro, vários desses relacionamentos resultam em colapso afetivo. Em algumas oportunidades, Philip prefere fechar os olhos e deixar que a dor desapareça com o tempo. Em outras, como quando é traído por Christiane, adota medidas desesperadas. Nos dois casos, não há surpresas quando se mostra arrependido. O comportamento humano poucas vezes se pauta pela reflexão e pelo bom senso.

Como narrativa complementar, Tudo que é relata a tragédia de Neil Eddins (companheiro de trabalho de Bowman), instante de horror que não oferece qualquer compensação para a perda familiar. Provavelmente são as páginas mais tristes do romance.

Tudo que é, mais do que um romance escrito com sensibilidade e talento, celebra a nobre arte de contar histórias – ou compartilhar experiências, segundo o filósofo Walter Benjamin. Poucas coisas se igualam a esse prazer.



Além de Tudo que é, alguns dos livros de James Salter foram publicados no Brasil: o volume de memorias Dias Intensos (Imago, 2000), o romance Um Esporte e um Passatempo (Imago, 1997) e os contos de Última Noite (Companhia das Letras, 2008).