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terça-feira, 24 de novembro de 2015

QUE HORAS ELA VOLTA?

A maior e melhor surpresa do cinema nacional dos últimos tempos é Que Horas Ela Volta? (Dir. Anna Muylaert, 2015). Vários motivos contribuem para essa façanha. O principal é colocar em destaque um conceito que os brasileiros adoram ignorar: a luta de classes. Mas, calma lá, não há motivo para sustos: a teoria marxista foi diluída nas centenas de litros d’água da piscina da mansão em que Val (interpretada por Regina Casé) trabalha. No inicio do filme, seguindo as diretrizes propostas pelo binômio Casa Grande & Senzala, cada um dos personagens conhece o seu lugar no mundo. Val é a empregada domesticada, ingênua e alienada. José Carlos (Lourenço Mutarelli) e Bárbara (Karine Teles) são os patrões compreensivos e amistosos. Fábio (Michel Joelsas), filho biológico dos donos da casa, filho de fato da empregada, desfruta da permeabilidade que existe entre os dois ambientes.

O mundo perfeito, construído artificialmente, desmorona diante de um elemento desagregador. Antes de ir trabalhar em São Paulo, Val deixou a filha, Jéssica (Camila Márdila), em Pernambuco. Dez anos se passaram – ou melhor, separaram mãe e filha. Nesse período, as duas mulheres construíram histórias diferentes, sem muitos pontos de convergência. O principal choque entre elas decorre dessa forma de entender  de forma antagônica  o mundo. 

Inesperadamente, a filha viaja para São Paulo, para fazer as provas do vestibular. Quer morar com a mãe, enquanto cursa arquitetura. Mas, há um pequeno inconveniente: a mãe mora no serviço, em um quartinho nos fundos da mansão.  Ao ver a situação de submissão de Val, que não reclama por viver em regime de semiescravidão, Jéssica demonstra – de forma inequívoca – o seu descontentamento. Não entende como – em uma casa tão grande, em que o quarto para hóspede está sempre vazio – sua mãe se sujeite com condições indignas de vida. Ato contínuo, “toma de assalto” o quarto vazio. 

O jogo teatral – que separa o proscênio dos bastidores – perde o poder de produzir a fantasia da ordem com a chegada de Jéssica. O que se segue não é difícil de imaginar: a menina exerce “algumas liberdades” com os patrões de Val – que quase surta, porque imagina a possibilidade de perder o emprego. Ao se referir à filha, repete – como se fosse um mantra – que ela não tem noção de nada. Em momento oportuno, esclarece o básico: Quando eles falam, quando eles oferecem alguma coisa que é deles, é por educação, é porque eles têm certeza que a gente vai dizer não. Impossível ser mais clara.

A patroa também não fica feliz. Bárbara não consegue suportar a filha da empregada que não sabe se comportar como a filha da empregada. Além disso, há outro elemento desagregador e que não passa despercebido da patroa: José Carlos tenta – da forma mais desajeitada possível – seduzir Jéssica.

A soma desses ingredientes contribui para aumentar o potencial dramático do enredo – sugerindo uma tragédia que não ocorre. A solução para os impasses ocorre de maneira pacífica – e bem bacana. Quando Val entra pela primeira vez dentro da piscina – um dos locais proibidos para os empregados – ocorre uma espécie de batismo (no sentido católico), a linha divisória entre o paganismo e a iluminação espiritual. Depois desse momento, nada mais será como antes. A mãe e a filha acertam as diferenças (ou melhor, aceitam as diferenças) e decidem morar com Jorge, o filho de Jéssica, que ficou em Pernambuco, numa repetição patética da história familiar.

Um tema paralelo, e que merece bastante atenção, é o jogo espe(ta)cular da filiação. Em alguns momentos, ao contrastar Fábio e Jéssica, o espectador do filme se pergunta: quem é filho de quem? Entre Fábio e Jéssica, o coração de Val se divide. Enquanto recrimina o comportamento agressivo da filha, trata Fábio com benevolência (por exemplo, acoberta o uso intensivo de maconha). Em contrapartida, José Carlos e Bárbara tratam o filho com distância, como se ele fosse um peso que a vida social exige que seja carregado. Depois que os dois jovens terminam as provas do vestibular, há um relampejar de esclarecimento. Jéssica passa, com boas notas. Fábio não é aprovado (faltou dois pontos) – e ganha, como prêmio, uma viagem para a Austrália. Como compete às abstrações teóricas, a justiça desaparece diante do poder econômico. 

Uma metáfora significativa se apresenta no jogo de café (xícaras, pires e garrafa térmica) que Val compra para presentear Bárbara, no dia de seu aniversário. A patroa agradece e manda guardar para uma ocasião especial. Ou seja, para nunca ser usado. Ao final do filme, quando Val pede demissão, ela leva para a nova casa, o utensilio doméstico. Mais do que um símbolo da condição econômica, o uso do jogo de café sinaliza para a reconstrução familiar, para uma vida menos açodada pela tirania social.

Em alguns momentos, Que Horas Ela Volta? lembra dois outros filmes. Pela discussão dos papéis sociais, Domésticas (Dir. Fernando Meireles, 2001); pelo tema do "anjo vingador", que subverte a estrutura familiar, Teorema (Dir. Pier-Paolo Pasolini, 1968). Melhores influências não poderia haver – se é que Anna Muylaert foi influenciada por esses dois clássicos.

Para quem ainda não viu Que Horas Ela Volta?, recomendo que alugue uma cópia na locadora mais próxima. O filme vale o valor da locação. Ou melhor, renova a esperança de que o Brasil ainda é capaz de produzir cinema de qualidade.  

2 comentários:

  1. Raul, segundo a diretora Anna sua principal influência foi o conto "a casa tomada" de Júlio Cortázar.

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  2. Anna foi influenciada por "a casa tomada", de Cortázar.

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