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terça-feira, 12 de janeiro de 2016

STONER

Em alguns casos, a ficção supera o “real” (seja lá o que isso for). Esse pensamento se torna inevitável durante a leitura de Stoner, romance escrito por John Edward Williams, em 1965, e que, salvo engano, somente teve uma edição no Brasil em 2015. Esses 50 anos de defasagem não fizeram mal ao texto. Ao contrário, o livro continua genial – e com sólida base na realidade contemporânea.

A história de William Stoner (1891-1955) fornece visibilidade aos ideais que motivam todos aqueles que escolhem (escolheram, escolherão) seguir a carreira docente universitária. Ao mesmo tempo, o romance procura sinalizar para uma serie de armadilhas que estão espalhadas no interior de cada um dos departamentos que compõem as instituições escolares. As disputas internas são violentas, representação grotesca da guerra bárbara que indivíduos com “instrução superior” deveriam evitar – mas, que, ao contrário, são estimuladas por grupos ambiciosos. Em síntese: somente os ingênuos e os mal-intencionados são capazes de negar que os caminhos profissionais estão contaminados por diversos interesses (vaidade, poder, dinheiro – não necessariamente nessa ordem).

A literatura atingiu Stoner aos 19 anos, quando ele estava cursando ciências agrárias, na Universidade do Missouri. Foi o estranhamento da proposta criativa que o fez mudar o curso de sua vida. A mente inquieta do jovem não conseguiu resistir ao desafio intelectual. Ao contrário da agricultura, onde as regras básicas são praticamente imutáveis, a literatura trabalha com o contraste entre certezas e dúvidas. Mais dúvidas do que certezas. Diante dos livros, tomou consciência de si mesmo de um jeito que nunca lhe ocorrera antes. Superando as dificuldades de uma história pessoal sem significativa formação escolar, concluiu as disciplinas que lhe forneceram um diploma em Literatura Inglesa. O mestrado e o doutorado transcorreram de forma natural – sob a supervisão do professor Archer Sloane, de quem Stoner era discípulo. Convidado a lecionar, aceitou. Foi o seu único emprego na vida. Somente deixou as salas de aula quando ficou doente. De maneira superficial, poderia se dizer que nada de mais significativo aconteceu na vida de William Stoner.

John Edward Williams (1922-1994)
Evidentemente, essa descrição está repleta de omissões. A mais importante se refere à vida privada. Nas minúcias que misturam o ser e o estar no mundo, a vida de um professor que raras vezes foi valorizado de forma adequada se desenvolve em compasso de espera e solidão. Em diversos momentos, ele lembra um de meus professores ficcionais favoritos, Andrew Crocker-Harris (interpretado por Albert Finney), protagonista do filme Nunca te Amei (The Browning Version. Dir. Mike Figgs, 1994), que, ao olhar para trás, faz um balanço do tempo em que esteve em sala de aula. Não é uma visão otimista. Predomina a sensação de que o desenrolar de sua vida transcorreu de modo injusto.

Stoner se apaixonou quatro vezes na vida. A primeira vez foi pela literatura. A segunda, quando conheceu Edith Elaine Bostwick, com quem se casou. A felicidade proposta pelo casamento desapareceu rapidamente. A esposa detestava sexo e, depois de um tempo, deixou de gostar do marido. O terceiro amor de Stoner foi por Grace, sua única filha. Edith tudo fez para dissolver essa ternura. Através de artifícios e ocupações sociais manteve a filha distante (física e afetiva) do pai. Incapaz de reagir à crueldade da esposa, Stoner viu a filha se transformar em um espectro. Na primeira oportunidade, para fugir do clima opressivo criado pela mãe, Grace ficou grávida. Quando o marido se alistou para combater na II Guerra Mundial, tornou-se alcoólatra. O último amor de Stoner surgiu quase por acaso. Katherine Driscoll foi sua aluna em um seminário. A união se resolveu de forma quase que natural – e, para perplexidade do leitor, abençoada por Edith, que assim se livrava da presença do marido.

Stoner cometeu dois erros significativos em sua vida profissional. O primeiro, compreensível, foi reprovar um aluno, Charles Walker, orientado pelo professor Hollis Lomax. O segundo, fruto da ingenuidade profissional, rejeitar a chefia do departamento – quando essa oportunidade surgiu. O que se seguiu não pode ser descrito sem tristeza. Lomax assume o departamento e transforma a vida funcional de Stoner em uma sucursal do inferno. Estoico, ele jamais reclamou do destino. Da melhor maneira possível, sem medir esforços, assumiu as tarefas mais medíocres, as piores turmas, os horários que ninguém queria, e nunca se incomodou com os visíveis impedimentos para que fosse promovido. Até de Katherine precisou desistir, quando Lomax – reclamando a moral e os bons costumes – denunciou a indecência da ligação amorosa. 

Foram anos de sofrimento, suportando a fúria da esposa e a canalhice de Lomax. Stoner somente consegue algum sossego quando é tarde demais. Qualquer coisa perde a importância diante da proximidade da morte.

Stoner, romance escrito de forma linear, em tom monocórdio, com um narrador onisciente e onipresente, vai envolvendo o leitor a cada página. Impossível resistir ao charme de William Stoner, um homem comum, muitas vezes simplório, e que ama a literatura com fé religiosa.


TRECHO ESCOLHIDO


Só uma vez teve noticias de Katherine Driscoll. No começo da primavera de 1949, ele recebeu uma circular da editora de uma grande universidade do leste que anunciava a publicação do livro de Katherine e trazia algumas palavras sobre a autora. Ela estava lecionando numa boa faculdade de letras em Massachusetts e jamais casara. Assim que foi possível, ele arranjou um exemplar do livro. Quando o segurou nas mãos, teve a sensação de que seus dedos se animavam. Eles tremiam tanto que mal conseguiu abri-lo. Folheou as primeiras páginas e leu a dedicatória: “Para W. S.”.


Seus olhos se embaçaram, e por muito tempo ficou sentado sem se mexer. Então balançou a cabeça, voltou ao livro e não o largou até tê-lo lido por inteiro. Era um bom trabalho: a prosa era elegante, e a paixão, disfarçada pela frieza e pela lucidez de sua inteligência. Stoner se deu conta de que era exatamente ela que ele via no que lia, e se maravilhou de quando ainda a sentia próxima. De repente, era como se Katherine estivesse na sala ao lado dele, e ele a tivesse deixado só momentos antes. Sentiu uma espécie de formigamento nos dedos, como se a estivesse tocando. E a consciência daquela perda, que por tanto tempo represara dentro de si, transbordou, engoliu-o, e ele se deixou ser levado para longe, além do controle de sua vontade; ele não queria mais se salvar. Então sorriu ternamente, como que lembrando algo. Ocorreu-lhe que estava com quase 60 anos e que devia ter deixado para trás a força de tamanha paixão, de tamanho amor.


Mas sabia que não era assim, e nunca seria. Sob o entorpecimento, a indiferença, o distanciamento, aquele amor estava ali, intenso e firme. Nunca fora embora. Em sua juventude, ele o dera livremente, sem pensar; dera-o para o conhecimento que lhe fora revelado – quantos anos atrás? – por Archer Slone. Ele o dera a Edith, naqueles primeiros dias insensatos e cegos da corte e casamento. E ele o dera a Katherine, como se nunca o tivesse dado antes. Estranhamente, ele o dera a cada momento de sua vida, e talvez o tivesse dado mais completamente quando não tinha consciência de que o estava dando. Não era uma paixão da mente nem da carne: era mais uma força que abrangia ambas, como se não fossem mais que a matéria e a substância do próprio amor. Para uma mulher ou um poema, seu amor dizia simplesmente: Olhe! Estou vivo.

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