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segunda-feira, 25 de abril de 2016

A ÚLTIMA PALAVRA

Todos os fãs da literatura são voyeurs. Mais do que apenas escolher seus livros favoritos – na impossibilidade de escrevê-los! –, eles querem saber detalhes da vida intima dos escritores. Fulano passou fome? Excelente! Beltrano escrevia dez páginas por dia? Incrível! Sicrano tinha problemas de caráter? Crápula! Quanto mais bizarras forem as revelações, melhor. Principalmente aquelas que descrevem algum desvio de caráter sexual. É para isso que servem as biografias: satisfazer a curiosidade mórbida do leitor que não se contenta com o conteúdo dos livros. Essa extensão (ficcional ou real?) equivale ao olhar pelo buraco da fechadura e ver o que o texto não confessa. O uso da “confissão”, nesse caso, parece apropriado, visto que muitos escritores costumam afirmar que vida e obra são compartimentos distintos, que nunca se misturam. Não é bem assim. O poeta é um fingidor, finge tão completamente e etc. Enfim, não é necessário recitar o poema todo para que se perceba que alguém sempre está mentindo e, mais importante, mentindo mal. Ou seja, a tese de que a ficção de um escritor se mostra mais poderosa do que a vida do escritor esbarra na afirmação de Harry Johnson, protagonista de A Última Palavra, de Hanif Kureishi, A vida e a escrita formam um livro contínuo. É assim com todos os escritores. Pode ser, mas em alguns casos, a vida privada é mais fascinante do que a vida ficcional.  

Hanif Kureishi
No romance A Última Palavra, a vida pessoal de Mamoon Azam é invadida. O editor Rob Deveraux contrata Harry Johnson para escrever a biografia do célebre escritor inglês (de origem indiana). A tarefa se mostra muito mais difícil do que parecia em um primeiro instante. 

Descobrir algo que alguém – propositalmente – deseja esconder constitui uma das situações mais complicadas do universo humano. Todos os envolvidos precisam estar preparados para as mudanças que se seguem – embora ninguém tenha capacidade (física, emocional) para enfrentar esse tipo de tempestade. Espelho ligeiramente embaçado da realidade, a ficção está repleta de surpresas.

Hanif Kureishi e Stephen Frears, parceria que rendeu
excelentes filmes como My Beautiful Laudrette (1985)
e Sammy and Rosie Get Laid (1987).
Em algum momento, depois de vários insucessos em obter as mais básicas informações do biografado, Harry percebe que Um escritor é amado por desconhecidos e odiado por seus familiares. Diante desse tipo de “insight”, confirmada nas centenas de páginas do diário de Peggy, a primeira e falecida esposa de Mamoon, Harry, inseguro, pergunta para si mesmo, várias vezes, se tem a capacidade necessária para finalizar o trabalho. Como não obtém uma resposta satisfatória à questão, aproveita a crise para desfrutar das delicias sexuais que a vida oferece. Sua namorada, Alice, não costuma negar prazeres.  No entanto, é no corpo de Julia (uma agregada de Mamoon) que ele encontra o necessário lenitivo para ir em frente. Assim, pulando de uma cama para outra, tudo se confunde, névoa que arrasta o leitor para um abismo de humor, sarcasmo e ironia. Não há dúvidas, o fundo do poço é o aqui e o agora. Sem anestésico.

A maioria dos bons livros não é, afinal, sobre nossas fraquezas sexuais?, pergunta Harry, enquanto recebe boas bengaladas pelo corpo, em um dos momentos mais hilários do livro, o biografado furioso descontando no biógrafo medíocre as suas frustrações mais elementares. Mamoon, cansado pelo esforço, resume a cena em poucas palavras: Sua obra é feita de inveja e você não passa de um semifracasso de terceira categoria, um parasita que consegue sobreviver graças a um encanto de meretriz e a uma boa aparência que já está definhando. Por acaso você já viu um biógrafo capaz de escrever tão bem quanto seu biografado?

O que ele quer dizer, em outras palavras, é que toda biografia resulta em um conjunto de decepções. Aquele que escreve fica insatisfeito com o resultado final (sempre acreditando que poderia melhorar isso ou aquilo). Quem lê sempre quer mais, muito mais, mesmo que não seja a descrição dos acontecimentos. Entre o real e a lenda, a escolha mais sincera é sempre pela segunda alternativa.

O passado é um rio e não uma estátua, diz o pai de Harry, alertando para as armadilhas que acompanham aqueles que investigam a História humana. Quem quer trabalhar com esse tipo de pesquisa (ou em áreas correlatas) precisa ver os fatos como um fluxo caudaloso, em constante deslocamento, e não como um monte de elementos estanques. Somente assim se conseguirá obter um esboço pálido dos acontecimentos – que devem ser reconstruídos literariamente. Para Harry, As palavras eram a ponte para a realidade; sem elas só existia o caos. Palavras ruins podiam nos envenenar e arruinar nossa vida, disse Mamoon um dia; e as palavras certas podiam recolocar a realidade em foco. A loucura de escrever era o antídoto para a loucura verdadeira.
 
V. S. Naipaul
O final do romance é surpreendente, o efeito especular emergindo das trevas, convocando forças que ainda não tinham entrado em jogo. O narrador de A Última Palavra, embriagado por alcançar algum ponto relevante na sua tarefa, declara, de maneira absolutamente simples, O romancista é qualquer coisa – trapaceiro, vigarista, impostor: como quiser. Mas, acima de tudo, é um sedutor.

PS) Quando A Última Palavra foi lançado na Inglaterra, em 2014, muitos críticos aventaram a possibilidade de se tratar de um “roman à clef” sobre a vida de Vidiadhar Surajprasad Naipaul (ganhador do Premio Nobel de Literatura, em 2001). Desmentidos foram emitidos. Mas, para o bem ou para o mal, a questão permanece.


TRECHO ESCOLHIDO


O trem deslizava por cidades-cemitério e Harry viu seu corpo amotinado contra a ideia de se encontrar com Mamoon naquele dia; de fato, sentia medo de todo aquele projeto, sobretudo depois que Rob, passando a beber mais ainda, não parou de repetir que seria a “grande tacada” de Harry. Rob “acreditava” em Harry, mas teve a franqueza de declarar que Harry estava longe de cumprir com seu potencial, um potencial que ele, Rob, havia reconhecido, contra uma oposição considerável. Com Rob, um beijo costumava ser seguido de uma bofetada.

“Eu venho amaciando o Mamoon para você, cara”, acrescentou Rob, quando o trem se aproximou da estação.

“Amaciando como?”

“Contando para ele que você sabe das coisas e fica noites em claro lendo os livros mais densos do mundo. Hegel, Derrida, Musil, Milton... eh...”

“Você disse que eu entendo de Hegel?”

“Não é fácil vender você. Tive de começar do zero.”

“Vamos supor que ele me pergunte a respeito da dialética de Hegel. E aí?”

“Você vai ter de oferecer uma visão geral para ele.”

“E quanto ao meu primeiro livro? Você não enviou um exemplar para ele?”

“Acabei tendo de fazer isso, afinal. Mas o livro tinha seus longueurs, até sua mãe concordaria com isso. O velho lutou com unhas e dentes para vencer a introdução e teve de ficar de cama uma semana com o Suetônio para purificar o paladar. Portanto, alcance esse novo patamar, cara, senão vai acabar se fodendo tanto que vai ter que ganhar a vida como professor universitário. Ou coisa pior...”

“Pior? O que pode ser pior do que um ex-aluno de escola politécnica?”

Rob fez uma pausa e lançou um olhar pela janela antes de transmitir as novidades. “Você teria de dar aulas de escrita criativa.”

“Por favor, não. Eu não seria capaz.”

“Melhor ainda. Imagine ficar perdido para sempre numa floresta escura de primeiros romances inacabados que requerem sua atenção total.” Rob juntou seus trapos e se levantou. “Vejo que chegamos à terra devastada! Olhe para fora – veja este pântano, povoado por boécios tatuados, gárgulas e espantalhos que cheiram cola. O horror, o horror! Está pronto para o começo do resto da sua vida?”

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