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segunda-feira, 30 de maio de 2016

A CARTEIRA DO MEU TIO

A arqueologia é um dos elementos mais significativos da crítica literária. Ou seja, em alguns momentos – independente do que possa motivar esse tipo de ação – faz-se necessário voltar o olhar vagarosamente para o passado. Nada do que imaginamos ser atual foi ignorado pelo passado. Literatura é documento. Como consequência dessa busca pelo conhecimento, urge exumar da estante os alfarrábios que estão imersos na poeira do tempo. Um exemplo é o quase desconhecido romance A Carteira de Meu Tio, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), escrito nos anos 50 do século XIX.

Estruturado nas digressões filosóficas de um arrivista (isto é, de um indivíduo que quer vencer na vida sem fazer esforços, sem ter que se submeter aos impedimentos morais ou éticos), A Carteira de Meu Tio permite interessante confronto com algumas questões contemporâneas – principalmente no que se refere ao mundo político, onde o contraste entre o sucesso (econômico e social) e a marginalidade (econômica e social) adquire visibilidade.

Aos vinte anos de minha idade parti para a Europa, a fim de completar os meus estudos (à custa de meu tio, já se sabe). Estudei com efeito muito em Paris, onde acentei a fateixa: oh! Sim, estudei muito! Passeei pelos boulevards; fui aos teatros, apaixonei-me loucamente por vinte grisettes; tive dez ou doze primeiros amores; por me faltar tempo não pude ver uma só biblioteca; por me acordar sempre tarde nunca frequentei aula alguma; e no fim de cinco anos dei um pulo à Alemanha, arranjei uma carta de doutor (palavra de honra que ainda não tive a curiosidade de examinar em que espécie de ciência), voltei para este nosso Brasil, apresentando-me a meu tio logo no primeiro instante com as mais irrecusáveis provas do meu aproveitamento, isto é, vestido no último rigor da moda, falando uma algaravia, que é metade francês e metade português, e ostentando sobretudo por cima de meu lábio superior um bigodinho insidioso, por baixo de meu lábio inferior uma pera fascinadora, e para complemento desses encantos, um charuto aromático preso de contínuo entre os lábios, perfumando a pera e o bigode.


Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)
O “sobrinho de meu tio” (que é como o narrador denomina a si mesmo), homem vaidoso e superficial, imaginava que manteria a vida ociosa. Diante do tio, incapaz de confessar a falta de qualificação, declara ter a vontade de alcançar a estabilidade profissional como político. O tio, sem muito acreditar nesse disparate, o despacha para o interior do país, dizendo que era necessário estudar o que convém ao país, (...) o que se passa nele, e (...) os costumes de nosso povo. Evidentemente, essa pesquisa de campo não agradou ao rapaz, que queria continuar na Corte, gastando o dinheiro do tio.

Montado em um matungo “ruço-queimado” e acompanhado pela Constituição do Império (apelidada pelo tio de “a falecida”), o sobrinho mergulha nas profundezas do sertão brasileiro. Aos moldes de Michel de Montaigne, começa a refletir sobre a precariedade de sua situação e como deverá agir quando essa viagem horrível terminar. Ao contrário do filósofo francês, ele não tem simpatias pelo ser humano. Sem fazer esforço para esconder sua verdadeira substância, ele se mostra cínico, insensível e preconceituoso. Suas divagações são amorais, egoístas e problemáticas.

Em determinado momento, surge na narrativa uma figura que em tudo é oposta ao sobrinho: o compadre Paciência. Viajando juntos, eles mostram, de forma explícita, o contraponto. Enquanto o sobrinho manifesta descaso com os pobres e exalta os que estão no poder, Paciência se revolta com a apatia das autoridades com aqueles que precisam superar as dificuldades da vida.

A situação política do Brasil (no momento histórico do romance?) está retratada no episódio em que os dois viajantes encontram uma família desabrigada, depois que a casa em que eles moravam foi incendiada por um grupo político rival. Compadre Paciência conversa com o chefe da família:

– Miséria e indignidade! E não há por aqui perto alguma outra autoridade pública, a quem se possa recorrer?

– Oh! Pois não! Excelente conselho teima ainda o senhor a dar-me: mora ali adiante o Inspetor de Quarteirão; mas se eu lá for queixar-me deste atentado, o homem, que é dos de papo amarelo, ou me despedirá com duas gargalhadas e uma descompostura, ou me mandará recrutar como vadio; ou enfim me fará morar alguns dias na cadeia, enquanto passa a eleição; porque a chapa, que eu rejeitei, chama-se chapa governista, e o proprietário desta terra além de ser o delegado de polícia é o chefe do partido, e portanto tem o poder de fazer o que lhe der na cabeça. Ainda bem que ele se contentou somente em incendiar-me a casa: foi um exemplo, simplesmente um exemplo, para que não grassasse a desobediência.

– Mas o senhor tem a seu favor o direito, que lhe confere a lei.

– E tenho contra mim a pobreza, que é uma espécie de eterna suspensão de garantias meu caro.

– Então não acha recurso?

– Para mim agora já não há nenhum; para os outros pobres, se não quiserem que lhes queimem as casas, há o recurso de votar, como lhes ordenarem os ricos de quem dependem.



Diante desse tipo de situação, como age o sobrinho? Com absoluto descaso pela virtude ou por qualquer elemento que possa constituir alguma reflexão crítica. Não entende (ou não quer entender) que os pobres possuem direitos. Defensor do uso da força como arma de controle social, utiliza-se de uma retórica que não está muito longe de alguns discursos recentes:


E quanto à chamada prepotência do rico sobre o pobre, entendo que ela é muito natural. Todo homem manda e quer ser obedecido; mas na escala social uns mandam mais do que outros, e mesmo assim todos mandam: até o pretinho escravo manda ao gato e ao cachorro que tem na sua senzala; depois do escravo vem o pobre, que está dois furos acima do cachorro e do gato e um acima do escravo, que por isso lhe obedece: ora, segundo a ordem natural o pobre devia obedecer também a alguém; e portanto cumpre que obedeça ao rico, assim como o cachorro e o gato obedecem ao pretinho escravo, e este ao pobre. Isto é lógica de ferro! Não há dúvida nenhuma, eu nasci para ser jornalista de um ministério que pague bem!


E algumas páginas depois, o sobrinho faz uma confissão significativa, dessas que merecem um olhar mais detalhado, pois revela o quanto há de preconceito em suas ideias:

O indigno caixeiro ou o canalha artista, que conseguiu agradar à filha ou sobrinha de um homem rico e que apenas de longe a namora, ou que se atreve a mandar-lhe uma cartinha de amores, quando lhe descobrem a trapalhada amorosa é logo recrutado, ou caem-lhe com o Ano do Nascimento em cima e mandam-no para a cadeia por qualquer crime policial que se arranja; mas o velho milionário libidinoso, ou o desregrado filho do rico, salta pela janela da casinha do pobre, mancha-lhe o leito nupcial, rouba-lhe, pelo prazer brutal de um instante, a única riqueza da filha, lança a desordem e a infâmia no seio da família, e depois conta como uma vitória o crime, e aqueles que o deviam punir dizem sorrindo-se, quando ele passa: “que maganão de bom gosto!”, e a coisa fica nisso, e deve na verdade assim ficar; porque se a riqueza não desse direito a tão inocentes gozos, então os ricos e os pobres, a canalha e os fidalgos seriam iguais, o que fora um verdadeiro absurdo social. 


Essa falta de respeito com aqueles que não herdaram ou roubaram fortunas também se reflete na ordem constitucional e, outra vez, remete aos elementos políticos que norteiam a atualidade:

A Constituição do Império! Eu não sei como há insensatos que ainda acreditam nela e lhe rendam cultos! Não posso de modo algum compreender a espécie de adoração, que lhe tributa meu respeitável tio: pela minha parte declaro que detesto a Constituição por três fortíssimas razões: primo: porque assim me assemelho a muitos dos grandes homens de minha terra; secundo: porque a Constituição do Império é um poema, e eu abomino a poesia; tertio: porque ou ela há de ser sempre letra morta, como até agora, ou tem que ser algum dia letra viva. Se há de ser letra morta é melhor enterrá-la já, que é obra de caridade dar sepultura aos mortos, e se tem que ser letra viva algum dia, é muito conveniente acabar com ela quanto antes, para que depois não nos venha dar água pela barba.


E, nesse ritmo, segue por diversas páginas, sem se preocupar com qualquer outro projeto que não seja o de levar vantagem. Mesmo nos momentos em que entra em contradição, o discurso proferido pelo sobrinho objetiva unicamente o desprezo por qualquer questão que contribua para a existência de atividades democráticas. Plutocrata por definição, o sobrinho não perde uma oportunidade para desqualificar “a falecida”:

A Constituição deveria ser uma virgem formosa, de quem os ministros e magistrados da nação fossem amantes apaixonados; mas é pelo contrário como uma velha pobre e coberta de cicatrizes, de quem eles riem e zombam constantemente.


Em síntese: A Carteira de Meu Pai é uma narrativa verborrágica, com trechos de difícil compreensão para o leitor do século XXI. O uso abusivo da enumeração e da redundância transforma o texto em um discurso político anacrônico – embora, na prática, ainda tenha muitos adeptos contemporâneos, pois a cadeia é destinada para os ladrões e ladrão é somente quem furta pouco. Por outro lado, há quem compreenda o romance como uma crítica social, onde o relato dos excessos apresenta aspecto de sátira e de escárnio com a sociedade brasileira do Primeiro Reinado. E que, por analogia, estão presentes na atual história da República. 

terça-feira, 17 de maio de 2016

CARTA ABERTA PARA NORMA DE SOUZA LOPES

Ilustre e ilustradíssima:

Tentei escrever uma resenha sobre Borda, teu livro de poemas. Fracassei. Ou melhor, esbarrei nas armadilhas que estão espalhadas por esse território perigoso que chamam de linguagem. Em um esboço, o tom acadêmico foi excessivo. Ou seja, faltou sentimento. Em outro, mais coloquial, sobraram adjetivos. Nesses dois momentos não consegui elaborar algo apropriado. Então, perdoe-me por escolher um terceiro caminho. Quero falar de teu livro nessa tentativa de carta – que é uma forma de ir construindo o pensamento diante da folha em branco, a caneta (ou o computador) fazendo uma ponte entre a reflexão e a ação.

Até alguns meses atrás, éramos (você e eu, eu e você) desconhecidos. Creio que foi um “post” da Adriane Garcia, no Facebook, que chamou a minha atenção para a tua poesia. Não consegui resistir àquela imagem lírica. Compartilhei. Com prazer. Em seguida, passei a acompanhar tua página. E gostei tanto que ampliei o contato: solicitei (mediante pagamento) um exemplar de Borda.

O livro está aqui, ao meu lado. Li várias vezes. Todos os poemas. De alguns gostei mais. De todos senti inveja. Queria ter esse domínio da gramática poética. Queria poder misturar suavidade e violência em doses desiguais. Enfim, queria saber expressar a espantosa harmonia que encontro em teus poemas.

Outra coisa de que gostei é que não há nada de hermético no que você escreve. Todos os teus versos são avessos às complicações. Com um vocabulário objetivo, você vai construindo um espaço físico particular, síntese gráfica de tua casa, onde o leitor é convidado para se sentar à mesa e desfrutar do banquete oferecido nas páginas de Borda. Diante de todos esses agrados, é inescapável (palavra que você jamais usaria) ignorar o poder encantatório dos versos que compõem os teus poemas.

São textos onde a condição feminina está exposta sem vergonhas, sem amarras. São declarações objetivas sobre de que lado da fenda estar. Ao mesmo tempo, há um expresso repúdio para a imagem da “bela, recatada e do lar”. No teu mundo, estereótipos não resultam em versos de qualidade. Você prefere um cisco / no olho da história. Por isso mesmo é que alguns poemas anunciam uma mulher que gosta de gozar e que anda cansada de ser mater dolorosa. Diante das graves questões que assolam o mundo, você está ciente que não é possível tolerar o inominável: de raiva / desfiro a mordida. Um pouco depois, o poema se completa com o ritual de execução: noutra cena / liberto a fúria / e corto-lhe a aorta. Essas mortes simbólicas não significam uma guerra contra a masculinidade. Apenas relatam a intolerância à violência – que, infelizmente, é uma forma de inaugurar décadas de rejeição.

Norma, o leitor se surpreende com a delicadeza com que você abraça os pequenos elementos do dia a dia. Os sentimentos, as lembranças, os rumores intangíveis. O leitor retém na mente a história do menino sorrindo dentro da fotografia, as revelações sobre a morte (é para isso que servem os cachorros) e os movimentos de um gato, em um dia de sol. Leio esses poemas e imagino você dizendo para os leitores (teus novos alunos) que vida está ao alcance de quem possui um mínimo de sensibilidade e leveza.

O que estou tentando explicar, e sem sucesso, Norma, é que Borda instala um bordado das palavras. Mas, com a ressalva de que você não é Penélope, ou melhor, não é uma Penélope qualquer, tua epopeia é outra, através da poesia fica expressa a recusa de passar vinte anos esperando por quem foi lutar outras guerras, destruir outras cidades. Você é Norma, a lei, o poema, o universo em expansão. Por isso, a escolha do leitor é simples. No compor e decompor da aventura lúdica, brincadeirinha do destino, desatino para quem não está acostumado a perceber que o mundo cabe inteirinho dentro de alguns versos, a vida (abismo e vertigem) pulsa com força. Tua poesia a isso reforça. Beleza em estado puro. 

Norma, vou encerrar por aqui. Poderia continuar essa missiva por várias páginas. Corro o risco de me tornar redundante. Ou ininteligível. Então, quero desejar vida longa para você e para Borda.

É isso.
Beijos,



QUATRO POEMAS ESCOLHIDOS


vazante


depois do deserto

e da solidão

eu falo a palavra água

e ela me inunda


uma enchente

um tsunami

um caldo

de corpo e alma

lavada


flutuo até os estrados

do telhado devastado

e espero a água baixar


quando o pássaro voltar

eu mesma vou ser

minha mãe

serei mãe


então

a água que também

escorre dos meus olhos

irá secar



nunca amei longe de casa


duas ruas

nove casas

e dez galáxias

entre eu

e o menino

que eu amava



mamãe trazia lixo na bolsa


às quatro e meia ela chegava

era gari

se a casa não estivesse limpa

apanhávamos


trazia lixo na bolsa

comida revista livro

se achasse cigarros fumava

se achasse terço rezava


mamãe foi a primeira ambientalista que conheci



inflamação


de dez em dez anos queimo cartas

mas há pontos costurados e visíveis

cicatrizes de amor nunca somem


ah, esses amores perdidos

capazes de lavar e pentear-me os cabelos

como quem cuida de um ancião


nunca tocam minha pele febril

tantos cuidados, assepsia

e eu à espera de arranhões

sexta-feira, 6 de maio de 2016

OS LIVROS EM 45 FRASES

– A companhia dos livros dispensa com grande vantagem a dos homens. (Marquês de Maricá)

– Os livros têm os mesmos inimigos que o homem: o fogo, a umidade, os bichos, o tempo e o próprio conteúdo. (Paul Valery)

– Um livro é um brinquedo feito com letras. Ler é brincar. (Rubem Alves)

– Uma casa sem livros é um corpo sem alma. (Marcus Tullius Cícero)

– O livro é um mestre que fala, mas não responde. (Platão)

– Livros e solidão: eis o meu elemento. (Benjamin Franklin)

– Bendito aquele que semeia livros e faz o povo pensar. (Castro Alves)

– Queremos livros que nos afetem como um desastre. Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós. (Franz Kafka)

– Caminhas em direção da solidão. Eu, não. Eu tenho os livros. (Marguerite Duras)

– Um dos principais deveres do homem é cultivar a amizade dos livros. (Thomas Carlyle)

– A vida ideal consiste em ter bons amigos, bons livros e uma consciência sonolenta. (Mark Twain)

– Eu escrevo livros, por isso sei todo o mal que eles fazem. (Leon Tolstói)

– Livros não mudam o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas. (Mário Quintana)

Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever – inclusive a sua própria história. (Bill Gates)

– Para mim, a televisão é muito instrutiva. Quando alguém a liga, corro à estante e pego um bom livro para ler. (Groucho Marx)

– Meu desejo maior é ter uma casa, uma mulher razoável, um gato a passear entre os meus livros e, a todo tempo, amigos. Sem esses prazeres eu não viveria. (Guillaume Apollinaire)

– Ler um livro pela primeira vez é conhecer um novo amigo. Ler um livro pela segunda vez é reencontrar um velho amigo. (Ditado Chinês)

– Livro não é apenas presente. É passado e futuro. (Frase encontrada em um anúncio publicitário)

– Livros têm a vantagem de podermos estar ao mesmo tempo sós e acompanhados. (Mário Quintana)

– Em ciência, leia sempre os livros mais novos. Em literatura, os mais velhos. (Millôr Fernandes)

– Há livros de que apenas é preciso provar; outros que têm que se devorar; outros, enfim, mas são poucos, que se tornam indispensáveis, por assim dizer, mastigar e digerir. (Francis Bacon)

– Os livros podem ser divididos em dois grupos: aqueles do momento e aqueles de sempre. (John Ruskin)

– Os livros não se dividem entre morais e imorais: são bem escritos ou mal escritos, e isso é tudo. (Oscar Wilde)

– Todos os bons livros se parecem: são mais reais do que se tivessem acontecido de verdade. (Ernest Hemingway)

– Leio por instruir-me; às vezes por consolar-me. Creio nos livros e adoro-os. (Machado de Assis)

– O livro precisa ser interrogado para que diga o que contém; assim como a harpa precisa ser tocada para se lhe apreciar a voz sonora, e o frasco de perfume necessita de ser aberto para se lhe conhecer a essência que contém. (Eça de Queiroz)

– O livro é um amigo de tamanho razoável que carregamos fácil, que lemos até à luz pálida dos quartos de hotel ou de aviões, que só precisa ter palavras alinhavadas para o prazer de nossa sensibilidade e cérebro, que poderíamos ler em voz alta, como na Idade Média, e que é a vecchia zimarra do espírito. (Paulo Francis)

– Um livro que, após haver demolido tudo, não se destrói a si mesmo, exasperou-nos em vão. (Emil Cioran)

– O propósito do jovem Jean Paul era “escrever livros pra poder comprar livros”. O propósito de nossos jovens escritores é receber livros de presente para poder escrever livros. (Karl Kraus)

– Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante. (Carlos Drummond de Andrade)

– A leitura de todos os bons livros é uma conversação com as mais honestas pessoas dos séculos passados. (René Descartes)

– É bom ter livros de citações. Gravadas na memória, elas inspiram-nos bons pensamentos. (Winston Churchill)

– A arte é tudo – todo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. (Eça de Queiroz)

– De todos os que preenchem nossa solidão, são os livros os mais anárquicos, os mais instigantes. Leia, e seu silencio ganhará voz. (Martha Medeiros)

– Aqueles que começarem a queimar livros, logo acabarão queimando pessoas. (Heinrich Heine)

– Um livro é um livro; vale o que efetivamente é. (Machado de Assis)

– Um desses livros que, quando a gente larga, não consegue mais pegar. (Millôr Fernandes)

– Pode-se escrever um livro sobre uma nulidade para a qual uma linha já seria uma honra. (Karl Kraus)

– Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante. (Clarice Lispector)

– Se ao lado da biblioteca houver um jardim, nada faltará. (Marcus Tullius Cícero)

– Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca. (Jorge Luis Borges)

– Devemos comprar livros não para lê-los, mas para tê-los por perto. (Élio Gaspari)

– Quando penso em todos os livros que ainda me falta ler, tenho certeza de ser feliz. (Jules Rénard)

– Resta lembrar que a vida dos livros é vária como a dos homens. Uns morrem de vinte, outros de cinquenta, outros de cem anos, ou de noventa e nove (...) Ora, esse prolongamento da vida, curto ou longo, é um pequeno retalho da glória. A imortalidade é que é de poucos. (Machado de Assis)

– Os livros também morrem. (Millôr Fernandes)


terça-feira, 3 de maio de 2016

LINHA M

A prosa memorialista de Patti Smith (nascida Patrícia Lee) está repleta de melancolia e de reflexões filosóficas. Linha M (ao contrário de um livro anterior, Só Garotos, que celebra a rebeldia e a juventude) revela uma escritora madura, que se preocupa em olhar para a vida com olhos críticos. Que celebra as perdas e os desencontros. Costurando literariamente diversas lembranças em uma espécie de colcha de retalhos que conserva (apesar da pátina do tempo) suas cores originais vívidas e nítidas na memória, Patti Smith seduz o leitor com doses maciças de uma prosa encantatória.

O livro é uma espécie multifacetada de diário de viagem, onde o particular e o público se mesclam em um caldeirão cultural. Ofereço meu mundo numa bandeja cheia de ilusões, diz a autora, enquanto vai convocando amigos, familiares, escritores, séries policiais televisivas, figuras literárias. Uma multidão de referências culturais. Depois de iluminarem algumas histórias, alguma situação, esses personagens desaparecem sem deixar rastro. O único que permanece em cena o tempo todo, sempre ao lado da narradora, é o seu marido, Fred "Sonic" Smith (1949-1994). As lembranças da vida conjunta, quando a felicidade era algo palpável, servem de base para a resiliência existencial.

Levantei e fiquei um momento na janela, olhando para as luzes de Shibuya e para o monte Fuji. Depois abri uma garrafinha de saquê.

– À sua saúde, Akutagawa. À sua saúde, Dazai – falei, esvaziando o copo.

– Não perca seu tempo conosco – eles parecem ter respondido –, nós somos apenas uns vagabundos.

Voltei a encher o copinho e o entornei.

– Todos os escritores são vagabundos – murmurei. – Espero ser considerada uma de vocês algum dia.


Tudo é deslocamento na vida de quem escolheu a arte como profissão. Shows, palestras, visitas aos amigos e familiares, milhares de horas em voos que parecem nunca ter fim. Em cada uma das vezes em que seus pés tocam o solo, incontáveis xícaras de café. Nada é mais impressionante do que a quantidade de café que Patti Smith consome em um livro de apenas 206 páginas. E pouco importa onde esteja (Berlim, Tóquio, Londres, Cidade do México), sempre está acompanhada por hectolitros de café. Sem saber se é um vicio ou um anestésico, o leitor fica surpreso com a importância desse líquido na vida de Patti Smith.

Estico minhas pernas e fico contemplando Zak cumprir suas tarefas matinais. Ele nem faz ideia que eu já sonhei em ter um café. Acho que essa vontade surgiu com leituras sobre a importância dos cafés na vida dos beats, dos surrealistas e dos poetas simbolistas franceses. Não existiam cafés onde eu cresci, mas havia nos meus livros, e eles floresceram nos meus sonhos. Em 1965, eu vim de South Jersey a Nova York só para perambular por aqui, e nada me parecia mais romântico que sentar e escrever poesia num café do Greenwich Village. Finalmente tive coragem e entrei no Caffè Dante, na MacDougal Street. Sem dinheiro para pedir uma refeição, só tomei um café, mas ninguém pareceu ter se incomodado. As paredes eram revestidas de murais impressos com a cidade de Florença e cenas da A Divina Comédia. As mesmas cenas que perduram até hoje, descoloridas por décadas de fumaça de cigarro.


Os livros também são companhias inseparáveis. Sempre está lendo alguma coisa. Fã obsessiva de O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgakov, e de 2666, de Roberto Bolaño, costuma voltar aos livros de William Burroughs, Jean Genet, W. G. Sebald e Paul Bowles. São amigos espirituais. Além disso, sempre está preparada para celebrar a intensidade dos encontros inesperados. Como o dia em que descobriu os romances de Haruki Murakami, na livraria St. Mark’s, em Nova York, enquanto procurava por romances policiais de Henning Mankell. Começou com Caçando Carneiros. Evoluiu para Dance Dance Dance e Kafka à Beira-mar. No entanto, o seu favorito é outro, Crônica do Pássaro de Corda. Durante algum tempo, ela carregou de um lado para outro um exemplar desse livro, até que o perdeu no banheiro do aeroporto de Houston, durante uma baldeação.

Patti Smith e Fred "Sonic" Smith
Nas horas vagas passa horas e mais horas em frente da televisão assistindo séries policiais. Tem particular apreço por The Killing, O Santo, CSI, Detective Frost e Cracker, entre outros. Nesses momentos, desliga o mundo “real” e mergulha na ficção. Nem sempre é necessário ser racional ou coerente. A fantasia também faz parte do sonho.

Em suas viagens, costuma frequentar cemitérios. Pode parecer mórbido, mas é uma forma de festejar a existência. Diante dos túmulos de Jean Genet, Sylvia Plath, Jean-Nicholas Arthur Rimbaud, Yukio Mishima, Akira Kurosawa, Riūnosuke Akutagawa, Osamu Dazai e Yasujiro Ozu, rezou, acendeu incenso, recordou histórias, se sentiu revigorada, infeliz e alegre. A vida dos mortos afasta a morte dos vivos. 

Vida, Sylvia. Vida.

Não vi o balde cheio de canetas, talvez fosse retirado no inverno. Revirei os bolsos e tirei um caderninho espiralado, uma fita roxa e uma meia de algodão fina com uma abelha bordada no cano. Amarrei tudo com a fita roxa e deixei na lápide. As últimas luzes já esmaeciam quando voltei andando em direção ao pesado portão. No momento em que eu estava quase chegando ao carro o sol reapareceu, como que por vingança. Comecei a me virar, quando uma voz sussurrou:

– Não olhe para trás, não olhe para trás.

Era como se a mulher de Lot, uma estátua de sal, tivesse surgido no terreno coberto de neve e projetado uma faixa e calor alongado, derretendo tudo em seu trajeto. O calor atraiu vida, bem como tufos de vegetação e uma lenta procissão de almas. Sylvia, com um suéter cor de creme e uma camisa lisa, protegendo os olhos do sol brincalhão, caminhando para um grande retorno.

No inicio da primavera visitei o túmulo de Sylvia Plath uma terceira vez, acompanhada de minha irmã Linda. Ela queria muito viajar pela terra das irmãs Brontë, e nós fizemos isso juntas. Seguimos os passos das Brontë e subimos a serra para então refazer os meus. Linda se deliciou com os campos verdejantes, as flores silvestres e as ruínas góticas. Eu fiquei em silêncio ao lado do túmulo, consciente de uma rara paz em suspensão.


São muitas as situações peculiares que Patti Smith descreve. Algumas são bizarras, como o encontro com Robert (Bobby) James Fischer, o ex-campeão mundial de xadrez (1972-1975), que terminou com os dois cantando alguns clássicos da música estadunidense. Ou uma das viagens que ela e o marido fizeram. Quando ela leu Diário de um Ladrão, de Jean Genet, encontrou uma passagem em que o mais marginal dos escritores franceses cita uma prisão, localizada em Saint-Laurent-du-Maroni, no Suriname. Movida por um desejo fora do comum, coletar algumas pedras do terreno e enviar para Genet, o casal foi até lá. Não foi uma decisão sensata. Outro momento crítico do livro está relacionado com o Continental Drift Club, um grupo de pessoas que se reunia para celebrar a memória do explorador Alfred Wegener, que morreu congelado na Groenlândia. São diversos episódios complicados, repletos de nuances e surpresas.

Patti Smith e Robert Meppethorpe
Patti Smith vive cercada de incontáveis objetos. Máquinas fotográficas, canetas, xícaras, garrafas, cadernos, roupas, caixas, livros. Descreve cada um deles com intimidade, com afeto. Mesmo aqueles que não são seus, como a bengala de Virginia Wolff, as muletas de Frida Kahlo ou a mesa oval que testemunhou a conversa entre Friedrich Schiller e Johann Wolfgang von Goethe.  Há um tom de reverência e respeito toda vez que cada um desses objetos aparece na narrativa. Para complementar esse sentimento de apego aos utensílios que povoam o viver, em determinado momento, Patti decide comprar uma casa quase destruída, em Rockaway Beach. Quer fazer desse lugar um novo lar. O destino conspirou para que parte desse projeto fosse adiado. O furacão Sandy devasta a costa leste estadunidense. Mas, as ruínas que constituíam o Álamo (denominação escolhida para o local) não são muito afetadas. Diante da natureza, os homens se curvam – em reverência. E iniciam a reconstrução.

De inicio não registrei, mas depois percebi que o toldo vermelho do ’Ino não se encontrava mais ali. A porta estava fechada, mas vi Jason lá dentro e bati na vitrine.

– Que bom que você veio. Vou reparar um último café pra você.

Eu estava atordoada demais para falar. Ele ia fechar o lugar, simplesmente assim. Olhei para o meu canto. Vi a mim mesma sentada lá em incontáveis manhãs ao longo de incontáveis anos.

– Posso sentar?

– Claro, vai nessa.

Fiquei lá a manhã toda. Uma garota nova que frequentava o café passou com uma Polaroid idêntica à minha. Acenei e saí para cumprimentá-la.

– Oi, Claire, você tem um minuto?

– Claro – ela respondeu.

Pedi para ela tirar uma foto minha. A primeira e última foto na minha mesa de canto no ’Ino. Ela ficou triste por mim, tendo me visto muitas vezes pela vitrine quando passava. Tirou algumas fotos e deixou uma delas na mesa – a imagem do desolamento. Agradeci e ela foi embora. Fiquei lá um bom tempo, pensando em nada, depois peguei minha caneta branca e escrevi sobre o poço e o rosto de Jean Reno. Escrevi sobre o vaqueiro e o sorriso irônico do meu marido. Escrevi sobre os morcegos de Austin, no Texas, e sobre cadeiras metálicas na sala de interrogatório de Criminal Intent. Escrevi até a exaustão, as últimas palavras escritas no Café ’Ino.

Antes de nos despedirmos, eu e Jason passamos os olhos por todo o local. Não perguntei por que ele ia fechar as portas. Imaginei que tivesse suas razões, e, de qualquer forma, a resposta não faria diferença nenhuma.

Disse adeus ao meu canto.

– O que vai acontecer com as mesas e cadeiras? – perguntei.

– Está falando da sua mesa e da sua cadeira?

– Sim, principalmente.

– São suas – ele disse. – Eu levo para você mais tarde.

Naquela noite, Jason levou a mesa e a cadeira de Bedford Street pela Sexta Avenida, a mesma rota que eu fazia havia mais de uma década. Minha mesa e a cadeira do Café ’Ino. Meu portal para onde.   


A poesia lírica que emana de “Linha M”, misturando lembranças e sonhos, traduz, de forma serena, a tristeza que acompanha os danos causados pelo viver em sociedade. Ao mesmo tempo,comemora a pureza dos sentimentos e o encanto que ilumina cada dia. “Linha M” pode ser traduzido como um sopro de inteligência em um mundo que está se decompondo.

– Eu amo vocês, murmurei para todos, para ninguém.

– Não brinque com o amor – eu o ouvi dizer.

Depois disso eu saí de lá, sempre em frente no lusco-fusco, caminhando no chão de terra batida. Andei até atravessar o limiar de meu sonho. Não havia nuvens de pó, nem sinais de ninguém, mas não me importei. Eu estava com sorte no meu jogo de paciência. A paisagem do deserto continuava igual: um longo e extenso pergaminho que um dia eu me divertiria preenchendo. Vou me lembrar de tudo e vou escrever tudo isso. Uma ária a um casaco. Um réquiem a uma cafeteria. Era no que eu estava pensando no meu sonho, olhando para minhas mãos.