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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

BOB DYLAN E O NOBEL DE LITERATURA

A vida está repleta de surpresas. E todo ano, em outubro, quando anunciam o nome do vencedor do Nobel de Literatura, essa tese recebe confirmação. Para algumas pessoas os palpites para 2016 eram iguais aos de 2015 e 2014: Ismail Kadaré, Philip Roth e Amós Oz (nesta ordem). Haruki Murakami também estava na lista – um pouco abaixo, na companhia de outros autores menos cotados. Todos foram preteridos – mais uma vez! No caso de Roth, considerado como persona non grata pela Real Academia Sueca, as chances, com o passar do tempo, se tornaram nulas. Para os outros três, cabe esperar pelos próximos anos – torcendo para que a premiação (se houver) não ocorra tarde demais.

Robert Allen Zimmerman, Irwin Allen Ginsberg
e o túmulo de Jack Kerouac 
A notícia de que o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2016 (e dos oito milhões de coroas suecas, cerca de três milhões de reais) foi Robert Allen Zimmerman (Duluth, Minnesota, 24/05/1941), mais conhecido como Bob Dylan, não conseguiu atingir a unanimidade. Protestos foram realizados nos quatro cantos do mundo. Também aconteceram centenas de comemorações. Infelizmente, como sói acontecer em situações similares, reflexões mais significativas não ganharam espaço na linha de frente ou nas manchetes dos jornais. Críticos e fãs preferiram bombardear os adversários com discussões estéreis. Letra de música não é literatura, disseram alguns. Outros preferiram argumentar sobre a necessidade capitalista de promover (e lucrar) com a contracultura e a cultura pop.

Para os primeiros, cabe lembrar que parte da teoria da literatura considera   atualmente    que todos os gêneros literários são fluídos, ou seja, não possuem fronteiras definidas. Alguns textos em prosa são poéticos, alguns poemas flertam com a prosa, a dramaturgia surge no inesperado e, em muitos casos, raramente se consegue dizer, com certeza, que isso é isso e aquilo, aquilo. Normalmente a boa literatura (seja lá o que isso for!) é composta pela soma de isso com aquilo (embora a predominância de um ou de outro se manifeste em diversos casos). Em outras palavras, o argumento mais sólido usado nesse momento está relacionado com o entendimento de que a modernidade e a literatura são líquidas (seguindo o pensamento de Zygmunt Bauman). E, nesses termos, transgredindo a lição de Heráclito de Éfeso, cabe se banhar dezenas de vezes nas águas de um mesmo rio. Só não vale afogamento (vá lá, alguns casos aconteceram!).

Se esse cinismo a-pós-a-moderna-idade não for o canto das sereias suficiente para produzir o sebastianismo que todos anseiam, urge lembrar que houve um tempo em que a música e a poesia eram irmãs siamesas. Na antiguidade clássica e medieval, o ritmo sonoro estava intimamente ligado com a versificação. Era um corpo indivisível. Nada conseguia separar as duas formas artísticas.

Bob Dylan e Mohamed Ali
Aedos, rapsodos, menestréis, trovadores e bardos (cada qual no seu devido tempo histórico) seguiam de cidade em cidade cantando canções líricas e epopeias heroicas. Sob a proteção de Orfeu, transmitiam oralmente as expressões da beleza. Eram os responsáveis pela (como diria Walter Benjamin, vários séculos depois) faculdade de intercambiar experiências. E, nessa festa constante, onde o lúcido estava associado com o lúdico, mostravam ao mundo que as questões mais significativas (amor, ódio, coragem, inteligência, inveja, morte) são universais. Poemas como Iliada e Odisséia, para ficarmos nos exemplos mais básicos, não chegariam até nós se não fosse o trabalho desenvolvido por esses artistas itinerantes. Somente mais tarde, muito mais tarde, quando Gutemberg (confirmando a fragilidade de papiros, pergaminhos e manuscritos) aprimorou a impressão com tipos móveis, é que foi possível dizer que surgiu um suporte mais eficaz para a transmissão do conhecimento. 

Bob Dylan e David Bowie
O divórcio entre a música e a poesia ocorreu em algum momento, embora ninguém consiga precisar quando. Como se fossem formas estranhas e distantes, elas passaram a caminhar por estradas paralelas, satisfeitas por nunca se encontrarem no infinito. A perda artística foi inestimável. A partir dessa fratura, fomentou-se o preconceito de que a poesia era uma forma de arte "superior" e que as letras de música (lyrics, na língua inglesa) não poderiam mais ser consideradas como manifestação literária, pois estão destinadas somente – e tão somente – a ser acessórios da estrutura melódica. Mesmo no mundo operístico, que consagra a união entre a música e a palavra, costuma-se ignorar o libretto – como se ele fosse a parte menos importante.

Bob Dylan e Bruce Springsteen
Com relação à outra restrição, mesmos os mais reacionários não conseguem negar o crescente interesse econômico da indústria cultural (que procura cooptar tudo o que não consegue destruir). A era da reprodutibilidade técnica (Walter Benjamin outra vez!) possibilitou que a distinção entre originais e copias se perdesse no balcão de negócios que transformou a arte em mercadoria. A fabricação de objetos em serie multiplicou a margem de lucros. Nesse sentido, para o capitalismo literário, há significativa diferença entre premiar, digamos, um poeta desconhecido do Vietnã e um grande astro europeu ou estadunidense. No segundo caso há tantas vantagens, que “desovar” estoques (que, de outra forma, estavam destinados a ocupar um espaço que poderia ser utilizado com outro produto mais rentável) fica em segundo plano. O entusiasmo de todos os participantes da engrenagem comercial se multiplica diante da possibilidade de vender um produto antigo revestido por uma nova embalagem (que fornece uma releitura aos conteúdos e cria algum tipo de compulsão pelo consumo).

Cher, Sonny Bono e Bob Dylan
Nos últimos trinta anos, talvez mais, a contracultura e a cultura pop perderam  parte do caráter libertário que as caracterizam. Passaram a ser itens da produção massificada. A rebeldia comportamental, o anarquismo político e a liberação sexual sofreram diversas mutações – que foram comercializadas como se fossem “tendências” da moda (devidamente expostas em revistas de fofocas ou nos desfiles das coleções outono-inverno e primavera-verão da “alta cultura” burguesa). E se alguém perguntar o porquê desse fenômeno, the answer, my friend, is blowin’ in the wind.

Dito isso, cabe concluir que pouco importa se Bob Dylan, um artista fora do cânone, ganhou um prêmio hipervalorizado pela indústria cultural. Qualquer um que conheça o mínimo de literatura percebe que qualidade (seja lá o que isso for!) e troféus poucas vezes são equivalentes. O usual é a divergência.
  
Bob Dylan e Patti Smith
Diante da inevitável pergunta cartesiana, o que acontecerá com a literatura depois do prêmio conferido ao Bob Dylan?, cabe entender que não existe qualquer tipo de resposta satisfatória. O grande legado do prêmio não está no nome do contemplado ou na sua “obra”, mas na análise crítica que pode surgir no cenário artístico. Repetindo algumas das discussões iniciadas no ano anterior (quando foi premiada uma jornalista investigativa em detrimento de algum escritor de ficção), espera-se que todo esse barulho sirva para derrubar alguns preconceitos estéticos.


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