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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

HISTÓRIA DE QUEM FOGE E DE QUEM FICA

O caudal romanesco Tetralogia Napolitana (integrado pelos volumes A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida), escrito pela italiana Elena Ferrante, conta a história da amizade entre Rafaella (Lila, Lina) Cerullo e Elena (Lenu) Greco. Nascidas em um bairro de classe econômica precária (em Nápoles, Itália), as duas mulheres enfrentam o mundo – cada uma a sua maneira. Lila é colérica, pouco disposta a fazer concessões, extremamente inteligente. Lenu é cordata, muitas vezes insegura, intelectualmente esforçada. De alguma maneira, na infância e na adolescência, a primeira domina a segunda.

Em determinado momento, embora continuem unidas, as amigas se separam. Lila prefere – opondo-se aos conselhos que recebe – fazer um casamento de conveniência com um sujeito que todos sabem ser um mau caráter. Lenu – acreditando que encontrou o melhor caminho para fugir da pobreza – vai para a universidade. São escolhas divergentes e que produzem feridas que jamais cicatrizarão.

O terceiro volume dessa saga, História de Quem Foge e de Quem Fica, focaliza uma pedaço da vida adulta das duas mulheres. Lila continua administrando a vida de forma intempestiva. Embora tenha “comido o pão que o diabo amassou”, após se separar do marido, conseguiu sobreviver. Simultaneamente, manteve o orgulho e os ideais em que acredita (com direito a um flerte com o Partido Comunista Italiano). O mesmo não se pode dizer de Lenu, que não encontrou a felicidade na carreira universitária, no casamento ou no relativo sucesso do romance que escreveu.

Na medida em que o universo social, político e afetivo das duas mulheres se expande, a trama adquire novos contornos. Surgem e desaparecem vários personagens – cada um multiplicando as complicações. O clima político, refletido nas lutas (físicas) entre comunistas e fascistas, revela uma Itália fragmentada, sem saber se apoia as lutas sociais ou se regride à Idade Média. Enquanto Lila consegue visualizar objetivamente o microcosmo opressor em que vive (apesar de não encontrar uma forma de superá-lo), Lenu conduz seus interesses para questões intelectuais alienantes. Independente dos óbvios problemas que existem entre essas duas formas – complementares – de enfrentar o mundo concreto, é possível perceber que o “zeitgest” está repleto de nuances e que jamais pode ser reduzido a esquemas binários (verdade e mentira, certo ou errado, razão e sentimento).

A maternidade também se revela em contraste. Enquanto Lila carrega Gennaro para lá e para cá, sem tentar negar que o menino integra uma parte de sua vida atribulada, o nascimento das filhas de Lenu (Adele e Elsa) catalisa uma série interminável de crises. A maternidade em Lila serve para diminuir o egoísmo e construir uma consciência coletiva; a maternidade em Lenu concretiza o colapso afetivo e profissional. Nos dois casos, o adensamento da substância humana supera a superficialidade dos arranjos sociais.

Além disso, é através do espelho literário que se visualiza a condição feminina. Inumeráveis exemplos são projetados na Tetralogia Napolitana. Como uma herança maldita, transmitida pelas mães às filhas, cabe às mulheres sobreviver em um mundo hostil, onde os homens não se constrangem em agredir, ferir, dominar, destruir. Tanto Lila quanto Lenu querem romper com esse círculo vicioso  a questão fundamental está no método com que cada uma delas escolhe para derrubar o muro da opressão.       

Nápoles
É o exame microscópico das diferenças que existem entre Lila e Lenu que estabelece o ponto mais alto da prosa fluida e estonteante de Elsa Ferrante. Seus livros foram escritos para ser devorados de forma ininterrupta. São leituras guiadas pela ansiedade de descobrir o que está escrito na página seguinte. Mas, sobretudo, são textos iluminados pela presença de Rafaella (Lila, Lina) Cerullo, provavelmente uma das personagens femininas mais interessantes da literatura contemporânea.  

– Vocês professores insistem tanto no estudo porque é com ele que ganham a vida, mas estudar não serve para nada, nem melhora as pessoas, ao contrário, torna-as mais cruéis.
– Elena ficou mais cruel? 

– Não, ela não.
– E por quê? 

Lila meteu o gorro de lã na cabeça do filho: 

– Desde pequenas fizemos um pacto: a cruel sou eu.


Entre dramas e tragédias – Lila em Nápoles, Lenu em Florença –, encontros e desencontros, pobreza e riqueza, maridos e amantes, afeto e violência, descobertas e segredos, nada prepara o leitor para o atordoamento. Não há adjetivo mais exato do que esse para expressar os acontecimentos narrados nas ultimas vinte ou trinta páginas de História de Quem Foge e de Quem Fica. A racionalidade e a segurança, elementos que pareciam ser estruturantes no livro, são substituídas pela inversão de papeis entre Lila e Lenu. A linha reta e o andamento seguro se transformam em algo improvável e confuso. Ou melhor, em algo surpreendente.

Em síntese: toda essa complicação tem um significado muito simples: a leitura do quarto volume da tetralogia (História da Menina Perdida) é necessária – e urgente.


TRECHO ESCOLHIDO


Mas logo em seguida retornou ao salão, decidida a dizer o que pensava para não se sentir diminuída. Agora um jovem de cabelo encaracolado estava falando com grande competência sobre a siderúrgica Itadlsider e o trabalho por empreitada. Lila esperou que o rapaz terminasse e, ignorando o olhar perplexo de Enzo, pediu a palavra. Falou longamente, em italiano, enquanto Gennaro se agitava em seu colo. Começou baixinho, depois prosseguiu em meio ao silêncio geral com uma voz talvez muito alta. Disse provocadora que não sabia nada da classe operária. Disse que só conhecia as operárias e os operários da fábrica em que trabalhava, pessoas com as quais não havia absolutamente nada a aprender senão a miséria. Vocês imaginam – perguntou – o que significa passar oito horas por dia mergulhado até a cintura na água de cozimento das mortadelas? Imaginam o que significa ter os dedos cheios de feridas de tanto descarnar ossos de animais? Imaginam o que significa entrar e sair das câmaras frigoríficas a vinte graus negativos e receber dez liras a mais por hora – dez liras – a título de insalubridade? Se imaginam, o que acham que podem aprender com gente que é forçada a viver assim? As operárias devem permitir que chefetes e colegas passem-lhe a mão na bunda sem dar um pio. Se o patrãozinho sentir necessidade, uma delas deve acompanhá-lo até a câmara de maturação – coisa que já o pai dele fazia, e talvez até o avô – e ali, antes de pular em cima de você, esse mesmo patrãozinho lhe faz um discursinho batido sobre como o cheiro dos salames o excita. Homens e mulheres se submetem a revistas corporais, porque na saída há uma coisa chamada “triagem” que, quando se acende o vermelho em lugar em vez do verde, quer dizer que você está levando escondido salames e mortadelas. A “triagem” é controlada pelo vigia, um espião do patrão, que acende o vermelho não só para possíveis furtadores, mas especialmente para moças bonitas e arredias e para os encrenqueiros. Esta é a situação na fábrica onde eu trabalho. O sindicato nunca entrou ali, e os operários não passam de gente pobre e chantageada, sujeita à lei do patrão, ou seja, eu lhe pago e portanto a possuo e possuo sua vida, sua família e tudo o que está à sua volta, e, se você não fizer do jeito que eu mando, acabo com sua raça.   

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