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terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A NOITE QUE NUNCA ACABA

O trash – no pior sentido da expressão – nunca foi uma proposta estética com grande número de admiradores. Os sete contos que compõem A Noite que Nunca Acaba, do potiguar Carlos Fialho, apostam – de forma radical – no estranhamento, ou melhor, no impacto emocional que acompanha o horror. Além disso, o livro está dividido em duas vertentes temáticas que – por definição – deveriam ser opostas. Ao se utilizar de um “gancho” narrativo, o autor conseguiu realizar a proeza de uni-las de forma coerente, embora o resultado final não seja exatamente agradável.

Os três primeiros contos de A Noite que Nunca Acaba induzem um caminho próximo do realismo agressivo que caracteriza a literatura policial – aquela que bebeu na fonte inaugurada pelo Rubem Fonseca e que, recentemente, foi rejuvenescida pelo paraense Edyr Augusto. A história de três amigos de classe alta, travestidos de justiceiros,que resolvem combater a pedofilia e o tráfico de drogas em Natal, capital do Rio Grande do Norte, potencializa a reação de alguns grupos sociais que – ungidos pelo extremismo moralista – estão descrentes da eficiência do Estado como responsável pelo controle social. Essa postura, gerada por um comportamento político discutível, costuma atrair grupos fascistas que, sob a alegação de obter um mínimo de justiça, cometem crimes tão horrorosos quanto os que dizem combater. Em Anjos, o autor, em ritmo de crônica, introduz os personagens e a motivação para as ações. Caídos narra as ações e a prisão do grupo. Renascidos, o mais longo dos textos, elabora, por vias transversas, uma espécie de redenção religiosa, pois (em razão de um fato incidental) consegue premiar assassinos – que, ao final de algum tempo de encarceramento, são inocentados de todos os crimes que cometeram. A selvageria instrumental é substituída pela selvageria jurídica. Além disso, a cena que ocorre no presídio está absolutamente conectada com a realidade concreta que se reflete na incompetência governamental para controlar o poder “intramuros” que existe no mundo carcerário. 

Em alguns momentos, os textos apresentam repetições nas informações – como se desconfiasse da falta de atenção do leitor ou tivessem sido escritos em períodos cronológicos bem distintos (e, obviamente, não foram revisados depois). Um bom editor evitaria esses deslizes, cortaria vários parágrafos e proporia mudanças estruturais. Apesar disso, os três contos funcionam como artefatos literários.

O segundo bloco também está dividido em três contos. A diferença está na quebra da verossimilhança. A Cidade Morta relata a história de Alex de Sousa, que estava servindo em missão humanitária no Haiti. Antes de voltar para casa, ele vai assistir um ritual de vodu. No meio da cerimônia, acontece algo imprevisto e o sacerdote é morto por seus acólitos – um pouco antes de receber dezenas de tiros, morde o braço de Alex. Na viagem para o Brasil, o soldado se sente mal e morre. Em Natal, durante o velório, ressuscita como zumbi. A partir desse momento, o enlouquecimento se torna a constante. O número de mortos-vivos se multiplica de forma geométrica e atinge mais da metade da população urbana. A situação só readquire alguma normalidade quando as Forças Armadas entram em ação e executam o exército zumbi. Refúgio se concentra no isolamento de alguns dos sobreviventes. Dentro do bar “Cowboy’s”, enquanto esperam por algum tipo de salvação, alguns dos integrantes da fauna alternativa de Natal (inclusive Glauco e Fêfo, dois dos personagens dos três primeiros contos) conversam sobre assuntos variados. A trilogia se completa com Vida Nova. Para surpresa do leitor, o texto relata duas histórias de amor. Para fugir da fúria zumbi, Aurélio e Gibson se escondem dentro de um supermercado – onde cometem várias transgressões para poderem continuar vivendo. Em paralelo, Vivian, também sobrevivente do caos, sonha com noites intensas de sexo com Aurélio – que é seu colega de trabalho. Nesse triangulo, a soma do quadrado dos catetos não corresponde ao quadrado da hipotenusa. A adrenalina resultante da luta contra humanos e zumbis aproxima – afetiva e sexualmente – Aurélio e Gibson. Em um restaurante, ao constatar esse fato, Vivian perdeu o apetite por completo e em vários sentidos. O grand finale é espetacular: uma explosão atômica – que destrói a cidade de Natal –  e une, finalmente, os três personagens. Vivian, em momento anterior, em ironia avant la lettre, comenta que até o apocalipse tem o seu lado bom.

O sétimo conto, Com Outros Olhos, parece ter sido incluído no livro para “fazer volume”.   

Ao terminar a leitura, cabe ao leitor decidir se o autor se utilizou do nonsense de A Noite que Nunca Acaba para se divertir ou se o livro constitui uma cristalização literária de algum tipo de acerto de contas com Natown (sic!), a cidade em que vive, e com alguns segmentos sociais e profissionais (Utilizando o apurado senso de oportunidade que lhes é peculiar, os doutores aproveitaram para fazer talvez a coisa que gostam mais do que salvar vidas e cura doentes: ganhar dinheiro). Independente da resposta ou de outra interpretação que possa ser feita, sobra a ligeira sensação de que a união do terror real (primeira parte) com o terror irreal (segunda parte) apresenta alguma originalidade e muita maluquice. Estômagos mais delicados rejeitarão o volume com a alegação de que os sete contos se caracterizam por profundo mau gosto.

TRECHO ESCOLHIDO


No tempo que passaram encarcerados, os estudantes conviveram com alguns dos piores criminosos do RN. Os relatos do período em que estiveram em Alcaçuz feitos pelos agentes penitenciários e guardas do presídio eram surpreendentes. Os garotos andavam livremente entre a bandidagem. Nos momentos de recreação ou banhos de sol, eram sempre vistos em conversas com os demais detentos, inclusive com alguns de vasto currículo criminal. Era notável, inclusive, a aproximação que os presos vinham tendo com o líder do tráfico que atuava também como chefão do presídio, Augusto da Silva, conhecido como “Cheirinho”. O meliante, sempre taciturno, com cara de poucos amigos, demonstrava especial disposição quando na presença dos três rapazes, até mesmo sorrindo bastante e fazendo brincadeiras com eles. Não era o comum. Outros detentos jovens que chegavam a Alcaçuz costumavam sofrer bastante nas mãos dos mais velhos e, quanto melhores fossem suas condições sociais, mais eram importunados pelos novos colegas, alguns até o limite do suportável, sendo vítimas de intimidações, perseguição sistemática, violências frequentes e até abusos sexuais. Aparentemente, não fora o caso dos universitários.  

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