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segunda-feira, 24 de abril de 2017

A GATA, UM HOMEM E DUAS MULHERES


Todos os triângulos amorosos são imperfeitos. Não importa se esse tipo de situação conta com o consentimento de todos os envolvidos ou se uma ou duas das três partes acumula algum tipo de ressentimento ou ódio. O escritor japonês Jun’ishiro Tanizaki (1886-1965) procurou desenvolver essa ideia em duas novelas – que foram reunidas pela Editora Estação Liberdade em um volume com título quilométrico: A Gata, Um Homem e Duas Mulheres e O Cortador de Juncos.

Na primeira novela, A Gata, Um Homem e Duas Mulheres, fica comprovado que, depois que um casal se separa, algumas coisas continuam pendentes. A partilha dos bens se mostra mais problemática do que a separação dos corpos. Shozo Ishii foi casado com Shinako durante quatro anos. Foi. Vitima de um complô organizado por sua mãe, Orin, que detesta Shinako, ele trocou de esposa. Ao se unir à sua prima, Fukuko, aceitou substituir um casamento com algum afeto por uma união de conveniência econômica.

A grande paixão de Shozo é Lily, a gata. Ele adora passar o tempo com o animal – aparentemente, ele gosta mais do felino do que da esposa – qualquer esposa. Essa situação constitui o seu maior problema. Seja por ciúme, seja pelos odores que um animal doméstico impregna na casa, as três mulheres que participam de sua vida (Shinako, Fukuko, Orin) fazem restrições ao felino. Todas – de uma forma ou de outra – querem que ele se desfaça de Lily.

A novela inicia no momento em Fukuko recebe uma carta de Shinako, solicitando que a gata lhe seja entregue. Alega que o felino lhe fará companhia, nos dias de solidão. Evidentemente, um motivo falso. Shinako detesta bichos de estimação. Seu objetivo têm raízes mais profundas – e se mostra certeiro. Depois de ler a correspondência, Fukuko passa a ver Lily como uma rival. A antropomorfização do animal causa danos irreversíveis. A harmonia conjugal desaparece – possibilitando, inclusive, agressões físicas. Shozo, que não gosta de assumir responsabilidades, se vê diante de uma encruzilhada, onde, independente do caminho que escolher, o único perdedor será ele.

A trama – centralizada na gata – inicia como tragédia doméstica e termina em comédia. A ausência de coerência dos relacionamentos afetivos e das obsessões sempre se mostra engraçada. Ou melhor, patética.


A segunda novela, O Cortador de Juncos, utiliza uma abordagem muito diferente. Quer dizer, há intersecções com a primeira, mas os pontos de contato são outros. No inicio do texto há um trecho descritivo que não atrai muito. São 20 páginas de comentários sobre literatura, geografia e história do Japão. Ou seja, o texto ficcional demora a engrenar. É necessário paciência para superar esse pequeno obstáculo.

A narrativa adquire consistência quando dois homens desconhecidos se encontram às margens do rio Yodo, em Okamoto. Durante a conversa, enquanto observam a lua, um deles conta uma história de amor muito peculiar, envolvendo o seu pai, Shinnosuke, e o relacionamento que teve com duas irmãs, Oyu e Oshizu.

Shinnosuke se apaixona por Oyu, que é viúva. Ou seja, por algum tempo ela está impedida de se casar outra vez. Para manter as aparências, e ficar próximo de Oyu, Shinnosuke propõe casamento para Oshizu. A irmã mais nova, acostumada a se submeter aos interesses da irmã mais velha, e percebendo o que move o seu pretendente, aceita a proposta – mas exige que o casamento seja de fachada (ela quer se manter casta). Evidentemente, seguindo a lógica humana, quase todos os planos são feitos para fracassar. Shinnosuke jamais consegue despertar o interesse carnal de Oyu – que, no momento oportuno, prefere se casar com outro.

O tom melancólico, intermediado por uma tragédia ocorrida com o filho de Oyu, é interrompido pela cena final – que apresenta um elemento fantasmagórico, próximo das narrativas góticas. Não é a única surpresa.

Vários dos livros de Jun’ichiro Tanizaki foram traduzidos no Brasil. Os mais conhecidos são Há Quem Prefira Urtigas (1929), As Irmãs Makioka (1943), A Chave (1956) e Diário de um Velho Louco (1961).

Jun’ishiro Tanizaki (1886-1965)

TRECHO ESCOLHIDO


Enquanto lia a carta lentamente, palavra por palavra, Fukuko espiava de soslaio para ver o que Shozo e Lily estavam fazendo. Shozo bebericava um saquê e beliscava uns picles de cavalinha no vinagre. Depositou o copinho da bebida após tomar um gole, e disse:

– Lily!

Enquanto isso, apanhou com o hashi um dos peixes em conserva e o segurou bem alto. Levantando-se com as patas de trás e apoiando as patas dianteiras na borda da mesinha baixa e oval, Lily observou os petiscos no prato. Essa posição se parecia com a de uma pessoa encostada em um balcão de bar. Também se assemelhava à das gárgulas da Catedral de Notre-Dame. Assim que Shozo levantou o petisco, a gata se pôs a farejar, excitada; os olhos pareciam os de uma pessoa assustada, enormes e astutos, fitando o peixe. Porém, Shozo estava decidido a não largar a isca tão facilmente:

– Olha o peixe!

Aproximando a cavalinha do focinho do bicho, levou-a em seguida à própria boca. Sorvendo todo o vinagre que havia no peixe e mastigando as espinhas mais duras, ele apanhou o petisco mais uma vez da boca e o mostrou à gata, aproximando e afastando, erguendo e abaixando o peixe. Levada por esses movimentos, Lily afastou-se da mesinha, erguendo as patas dianteiras. Perseguiu o peixe apoiada apenas nas patas de trás, como um bebê que está aprendendo a andar. Quando o petisco estava bem acima de sua cabeça, ficou parada, preparando-se para dar o bote. Nesse momento, as patas dianteiras tentaram alcançar a presa, mas ela errou por um triz, tentando pular novamente. Este ritual se repetia a cada vez, e a gata demorava de cinco a dez minutos até conseguir o petisco.

Durante a brincadeira, Shozo ia bebericando saquê.

– Lily! – chamava-a enquanto pegava o próximo peixe.

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