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sábado, 20 de janeiro de 2018

GLAXO



1

A esposa, de origem indígena, de Matt Morgan (Kirk Douglas), xerife do condado de Pauley, é violentada e morta. Na tentativa de descobrir quem foi o responsável por tamanha barbárie, Morgan viaja para a cidade de Gun Hill. Um dos suspeitos do assassinato é o filho de Craig Belden (Anthony Quinn), um rico fazendeiro da região. Decidido a levar o acusado a julgamento, Morgan precisa superar grandes dificuldades.

Morgan é o típico “mocinho” – corajoso, bondoso, ético. Craig simboliza os “novos tempos” – o dinheiro se impondo, estabelecendo outro tipo de ordenamento ao mundo.

Com essa base, o roteiro do filme Duelos de Titãs, título brasileiro para Last Train from Gun Hill (Dir. John Sturges, 1959), retrata, em ritmo de “Far West”, uma história sobre vingança, família e amizade.

 2

Um grupo de adolescentes – em uma cidade no interior da Argentina –, nas sextas-feiras e sábados, costumava ir ao cine Savoy ou ao Cine Espanhol. Depois, se reuniam no Clube Bermejo. Quando estavam quase bêbados, Vicente (Flaco) Vardemann e Miguel (Miguelito) Barrios, como uma espécie de brincadeira particular, encenavam para os amigos um duelo similar ao que tinham visto no cinema: Miguelito desembainhava e descarregava de balas o revólver imaginário em sua mão, depois o fazia girar, soprava a ponta e voltava a guardá-lo. Enquanto Miguelito fazia isso, o Flaco Vardemann fingia-se de moribundo, um ferido que se arrastava pelo piso do Bermejo (uma vez derrubou uma mesa cheia de garrafas).


Bicho Souza, Lucio Montes, Nelly Sosa e outros assistiam ao espetáculo – que aos poucos ia perdendo a graça e se dissolvendo nas conversas sobre os assuntos mais diversos.

 3

Em dia incerto – desses que parecem iguais a todos os outros – desembarcaram do trem das dez horas Ramón Folcada e sua esposa, Negra Miranda (com vinte e oito anos recém-completados e umas pernas inesquecíveis). Ele é suboficial do comissariado de polícia e foi transferido de Suárez. Algum tempo depois, o casal abre “O Ás de Espada”, um bar que serve almoço e bebidas para os funcionários da fábrica Glaxo. Nas noites de verão, os amigos se reuniam em volta de uma mesa de ferro batido, colocada na calçada, em frente ao “O Ás de Espadas”, para conversar, para beber cerveja Danúbio e comer amendoim com casca.

4

Miguelito Barrios abandonou a escola e começou a trabalhar no escritório da ferrovia. Organiza os pacotes que chegam pelo trem. Durante a tarde faz as entregas. Nos horários vagos vai cavalgar com Ramón Folcada (que se torna uma espécie de pai adotivo do rapaz, que é órfão). Por razões de trabalho, em 1959, precisou ir até Buenos Aires.

5

Dois pedreiros construíram uma casinha do outro lado dos trilhos. Ela foi habitada durante um ano por quatro mórmons.  Quer dizer, três, porque um foi embora. Ninguém entendia direito o que eles estavam fazendo ali. O único habitante que se mostrava hostil aos missionários religiosos (mas de forma discreta) era Ramón Folcada.

 6

Quando saiu da prisão, em 1966, Flaco Vardermann tinha a cabeça raspada e a pele rançosa. Na plataforma da estação ferroviária, Miguelito Barrios, em um primeiro instante, teve dificuldades para reconhecê-lo. Deixaram que ele saísse antes, pensei. Mas se ainda lhe faltavam mais de cinco anos. O Flaco desembainhou um revólver imaginário. Como fazíamos no Bermejo – eu me fazia de John Wayne e ele imitava mal Kirk Douglas –, disparou na minha direção. Depois esboçou uma careta. Soprou a ponta do dedo. E saiu caminhando perto da via, com aquela passada larga e serena, quase hipnótica. Desta vez não se jogou no chão, não quis se fazer de moribundo.

7

Os operários acabam de carregar as ferramentas nos caminhões da prefeitura. O matagal já não existe, foi desfeito, e por onde passavam os trilhos, agora há um caminho novo, uma diagonal, que mais se parece uma ferida costurada. Esse caminho parece, então, a recordação de um talho, irremediável, na terra.


8

A concisão de Glaxo, novela escrita pelo argentino Hernán Ronsino, impressiona. São apenas 71 páginas, divididas em quatro capítulos, ou melhor, em quatro narradores. O tempo narrativo vai e volta (1973, 1984, 1966, 1959), permitindo que cada uma das vozes, em diferentes momentos, acrescente novas camadas de informação ao corpo do texto. A geografia delimita uma área específica: o povoado está emparedado entre a Glaxo e a estação ferroviária.

Ao leitor cabe reunir todos esses elementos e compor o desenho final do mosaico.

 9

Seria Glaxo uma adaptação literária de Last Train from Gun Hill? Diferenças significativas. Semelhanças consideráveis. Há aquele que rompe com uma amizade. E há aquele que imagina recuperar a perda através da vingança. A vida na província e a violência política. Os limites morais, a covardia, a culpa, um crime – ou vários.


10

William Faulkner. Juan José Saer. Juan Carlos Onetti. Rodolfo Walsh. Flannery O’Connor. Encontrar os pontos convergentes. Um universo de discursos cruzados.


11

Por trás do mau humor sempre há alguma coisa, um incômodo não dito. Olho a rua, tomo um pouco de cerveja, enxaguo a boca. Como é que você vai falando isso para ela assim, digo. Montes me olha como um menino que cometeu um erro, que fez bobagem. Montes tem o olhar de um menino que fez bobagem. Como vai pressionando ela assim?, digo. E Montes fica em silêncio, fica pensando. E diz: O quê? Fiz mal? Você é uma besta, volto a dizer, um animal, a mulher se assustou, não percebeu? Ela te evitava, não queria saber nada de você, nem da Glaxo. Sim, me diz Montes, isso ela me falou depois. Como depois?, digo. Sim, depois, ele diz, e volta, o desgraçado, a me enredar com seu relato.                   


12

Hernán Ronsino nasceu em Chivilcoy (província de Buenos Aires), em 1975. Sociólogo e professor da Universidade de Buenos Aires. Publicou La Decomposición (2007), Glaxo (2009) e Lumbre (2013).

13

A tradução de Glaxo é de Livia Deorsola.

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