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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O QUINTETO DE BUENOS AIRES



Mi Buenos Aires querido, / cuando yo te vuelva a ver, / no habrá más penas ni olvido, canta Carlos Gardel, certamente idealizando uma cidade que nunca existiu – exceto ficcionalmente. Igualmente ficcional é a Buenos Aires de Manuel Vázques Montalbán.

Há diferenças significativas entre uma e outra visão. A segunda, embora seja uma criação “ad hoc”, está muito próxima da realidade geográfica, social e política. Definitivamente, não é uma fotografia para publicar em rede social. Quando José Carvalho Larios, mais conhecido como Pepe Carvalho, sintetiza a cidade através da trilogia tangos, desaparecidos, Maradona, descontada a ironia ferina, percebe-se que a intenção narrativa não é a de negar a História – mas sim de enfrentá-la.

O Quinteto de Buenos Aires foi publicado em Espanha em 1997 (em 2000 no Brasil). E, na medida em que isso está ao alcance de um romance policial, trata-se de uma narrativa centrada na demolição da argentinidade (mudando uma peça aqui, outra ali, também poderia ser a aniquilação da brasilidade). A linha base do enredo é singela: Pepe Carvalho é contratado para descobrir o paradeiro de seu primo, Raúl Tourón, que está na capital portenha. Depois, deve convencê-lo que deve voltar para Barcelona, Espanha, onde, ao lado seu pai, Evaristo Tourón, estará em segurança. A primeira tarefa é relativamente fácil. A segunda, quase impossível – Raúl retornou ao terceiro mundo, depois de muitos anos, para um ajuste de contas com o passado – quer se vingar de sócios desonestos, prantear o luto pela morte da esposa e encontrar a filha desaparecida.

Manuel Vásquez Montalbán (1939-2003)
Pepe Carvalho, no intervalo entre uma e outra etapa desse trabalho, precisa enfrentar vários desdobramentos. Algumas complicações surgem quase que espontaneamente. O passado político da Argentina atinge a todos os que estão em cena – os braços tentaculares do poder costumam asfixiar aqueles que ousam desafinar a ordem geral.

As cenas de corrupção permeiam a narrativa – que se passa no governo de Carlos Menem. Lograr os outros resume a atividade comercial que movimenta aqueles que possuem algum tipo de projeção social. Diante da possibilidade de colocar as mãos em qualquer quantia, cabe ao indivíduo decidir se participará do acordo ou se ficará de fora. Pactuar é o eufemismo adotado nessas ocasiões. A tradução desse impasse – produzido pelo capitalismo predador – pode ser resumida em vários assassinatos e em diversos momentos de violência explícita. Nada que pareça destoante do propósito concreto embora seja sempre assustador.
O contraponto a essa selvageria aparece na figura de um policial honesto, que quer cumprir com o dever custe o que custar. O inspetor Óscar Pascuali, como compete aos homens da lei, não consegue entender qual é o jogo de que participa – e, evidentemente, há um preço a pagar por esse proceder. Suas atividades estão restritas (em muitos momentos) ao observar passivo dos acontecimentos. Ou seja, ele sempre chega atrasado aos lugares onde ocorrem os eventos mais importantes da narrativa – e tenta corrigir esse desacerto gerando mais violência. É a figura mais patética de todo o romance. E isso não quer dizer pouca coisa. Há uma multidão de personagens nas 458 páginas de O Quinteto de Buenos Aires. Alguns deles fogem do estereótipo que povoa a literatura policial. Como definir um empresário que abandona tudo (negócios, família), assume a homossexualidade e resolve se dedicar à proteção de mendigos, vagabundos, aidéticos e viciados de todas as espécies? Além disso, o grande plano do sujeito é a invasão (de forma pacífica) das Ilhas Malvinas (Falklands Islands) para construir alguns falanstérios, onde abrigará os seus “marginais”. A figura mais sinistra, o Capitão, de quem ninguém sabe o nome exato, surge como um espectro maligno. Remanescente do grupo de militares que participou dos governos ditatoriais (1976-1983), se utiliza das informações que obteve em sessões de tortura para manter algum poder. Como os tempos são “outros” – e o passado foi anistiado – faz inúmeras alianças com empresários e políticos. Também se pode considerar como singulares a dançarina de boate que estuda latim, o boxeador que se suicida por amor, o chef de cuisine Drumond, o propriétaire du restaurant Lucho Reyero e um farsante que se diz filho legítimo de Jorge Luis Borges. Ao lado de todos esses excêntricos surge don Vito Altofini, o sócio argentino de Pepe Carvalho: Um homem de uns sessenta anos, cabelos prateados pela luz fluorescente e fixados com brilhantina um tanto ordinária, excessivamente bem vestido, embora se perceba que o terno não é novo, que a camisa já foi lavada várias vezes; de qualquer modo, as abotoaduras reluzem, assim como o alfinete da gravata, os sapatos e os dentes.

Região central de Buenos Aires
A reunião de toda essa gente esquisita resulta em uma imensa e tresloucada confusão. A trama principal vai sendo deslocada para o acostamento, como se fosse acessória, e os temas secundários vão tomando conta da narrativa. A procura pelo primo desaparecido parece não importar muito – há bastante divertimento em Buenos Aires, uma cidade repleta de argentinos deprimidos.

Uma das chaves do romance aparece em uma declaração de don Vito Altofini: A arte me apaixona. Há açougueiros que são artistas, em qualquer ofício se pode ser artista. Aqueles que sobreviveram ao horror promovido pela ditadura argentina vivem em crise de identidade, não sabem se conseguem explicar o mundo através da arte ou da carnificina. Nesse sentido, ninguém se espanta quando a esposa do Capitão, entorpecida de álcool e passado, ao ouvir um barulho, exclama: Um tiro. Foi um tiro. Quem vocês mataram dessa vez?

No capítulo derradeiro, “Assassinatos no Clube dos Gourmets”, a comédia-pastelão se completa. O que até então era uma narrativa comedida, na medida do possível cada coisa em seu lugar, se transforma em sucursal do inferno – mas, é preciso esclarecer, uma filial muito engraçada. Vários assassinatos (alguns absolutamente ridículos), uma tentativa de suicídio, uma tentativa de homicídio, um cardápio gastronômico fantástico. O epilogo de todo esse horror repete a conhecida liturgia: enquanto os mandantes dos crimes permanecem incólumes, os empregados precisam se justificar na delegacia mais próxima. 

O Quinteto de Buenos Aires é entretenimento de excelente qualidade.



TRECHO ESCOLHIDO

 

Carvalho faz uma cara de esfaimado e dirige-se ao balcão do self-service dos professores. Espera sua vez para servir-se. Então, passa diante de cada um dos pratos como se fizesse uma análise secreta dos prós e dos contras do que o bufê oferece. Decepcionado, volta para a mesa de Alma com a bandeja quase vazia, sem outra comida além de um cacho de uva num pratinho, uma garrafinha de vinho e um pãozinho. Alma observa o espetáculo desolador. 

“Não havia nada à altura do paladar de sua excelência?”

Carvalho senta-se e suspira resignado. 

“A se confirmar minha expectativa de vida, calculei que me restam umas sete mil refeições em condições mais ou menos dignas. Não quero me tapear. O que tem aqui não é comida.”

“E os etíopes? Não sabe que os etíopes estão passando fome?”

“Eu tenho sido espanhol por mais de cinquenta anos, e você me vem com essa de etíopes!”

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