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segunda-feira, 7 de maio de 2018

ALVES & CIA



Depois da traição matrimonial, nada mais pode ser encarado com seriedade. Os momentos ridículos se sucedem aos milhares. Não importa se há ocorrência de algum tipo de reação (intempestiva ou não), não importa o olhar escandalizado dos familiares, não importa se os amigos e os vizinhos fingem nada saber. Tudo se transforma em comédia. Tudo. 
 
Em uma pequena novela, e que foi publicada postumamente, em 1925, Alves & Cia, Eça de Queiroz (1845-1900), conta a história de Godofredo da Conceição Alves, um indivíduo que se sentia pertencendo a essa tribo grotesca de maridos traídos, que não podiam entrar em casa sem que, de dentro, escapasse um amante. Razões para tal pensar não lhe faltavam, pois coube-lhe o azar de flagrar a caríssima consorte aos beijos com outro. E o que há de mais mirabolante nesse desagradável episódio é que o comborço,  Machado, era seu (dele) sócio.

Com ares de humilhado e ofendido, aos gritos exigiu que a esposa retornasse à casa de seu (dela) pai. Não havia mais motivos para viverem juntos. O casamento estava acabado.

José Maria de Eça de Queiroz (1845 - 1900)
Godofredo, como cabe a todo marido traído, ficou sem chão. A solidão era a recompensa que recebia depois de vários anos adorando aquela mulher pérfida! Simultaneamente, entrou em depressão, pensou em suicídio, a vida tinha perdido o sentido, era um homem derrotado. Mas, seja porque o caso não era para tanto, seja porque foi tomado por falta de coragem, desistiu desse plano estapafúrdio. E, como se o desgosto não fosse o suficiente, recebeu a visita de Neto, o pai da traidora. Diante do sogro discursou, fez exposição de motivos, quase exigiu solidariedade. O velho, conhecedor desses rompantes pouco inteligentes, ouviu a peroração durante algum tempo. Em dado momento, tomou a palavra e rebateu os argumentos do genro com inúmeras considerações sobre a aventura humana. Tergiversando, mostrou que a situação não era propícia para rompantes. Por fim, fez o Godofredo perceber que a sua filha, em razão dos acontecimentos, ficara desamparada e que a sociedade logo saberia dos detalhes, um escândalo sem proporções. Talvez por cansaço, talvez porque viu nas palavras do sogro uma ameaça, Godofredo aceitou pagar uma mesada à esposa, a título de compensação pelo rompimento matrimonial. 

Nos dias seguintes, a agonia de Godofredo se intensificou. Depois de muito pensar, resolveu que a situação assaz vexaminosa exigia uma atitude enérgica. Disposto a lavar a honra com sangue, imaginou um duelo. Para que isso se concretizasse, enviou um bilhete ao Machado exigindo um encontro para resolver a pendência. Frente a frente, os dois homens tiveram dificuldades para conversar. No início. Logo esse embaraço foi superado. As condições propostas pelo marido ofendido para dar um término à questão foram rechaçadas. Godofredo ficou falando sozinho.

A multiplicidade de erros não terminou com esse fracasso. Godofredo foi pedir conselhos ao Medeiros e ao Carvalho, velhos confrades de pândega e negociatas. Evidentemente, eles se solidarizaram. Era uma lástima. No entanto, consideraram que um duelo de morte configurava um evidente exagero. Não lhes cabia servir de testemunhas em uma maluquice de tal porte. A diplomacia poderia evitar os excessos, sugeriram ao desconsolado companheiro. E, com tal argumento, se autonomearam embaixadores. Resultado: foram ter algum tipo de entendimento com os representantes da causa de Machado. Diversas reuniões ocorreram, onde se discutiu as versões do caso, o teor das cartas que os amantes trocaram entre si e um sem fim de detalhes. Era necessário esclarecer os acontecimentos.

Enquanto isso, Godofredo sofria as dores do isolamento. Ao colocar a solução do caso nas mãos dos amigos, perdeu as rédeas da situação. Nesse momento, resta ao leitor observar com mais atenção o protagonista do dramalhão e concluir que a tolice é a sua (dele) característica mais marcante. Quando os representantes plenipotenciários da demanda lhe informaram que as partes, durante as conversações, haviam concluído que o caso todo estava longe de ser uma traição no sentido mais vil do ato e que fora apenas um “namorico”, Godofredo não se indignou contra tal resolução. Fez as reclamações de praxe, mas, no intimo, já estava convencido de que a fúria fora debelada. Estava manso como um cordeiro. Precisava, apenas, de um incentivo para deixar de lado o desfecho trágico. Aceitou, resignadamente, as recomendações de fazer uma viagem durante alguns meses, deixando que o tempo depurasse as tempestades e trouxesse de volta os dias de sol.

O narrador dessas peripécias poderia encerrar o caso com esse apaziguamento. Afinal, todos se salvaram. Quer dizer, nem todos. Godofredo ao voltar, viu a esposa algumas vezes na rua. Houve constrangimento, mas também houve o despertar da velha chama, brasa dormida, fagulha que estava escondida entre as cinzas daquele incêndio nefasto. Não lhe foi possível resistir. Tolice por tolice, concluiu que um leito aquecido é o melhor remédio para as noites frias. Reatou. Colocou ordem na sua vida desregulada.

Como se não bastasse, também fez as pazes com Machado. Deixou a cólera no passado – embora, vez ou outra, tivesse algum ataque de ciúme ou lembrasse da ignomínia. Por fim, voltou a receber o rapaz em sua (dele) casa, como se fosse um integrante da família.

Na cena final, muitos anos depois, os amigos confraternizam:

Bate então no ombro do seu amigo, lembra-lhe o passado, diz-lhe:

– E nós que estivemos para nos bater, Machado! A gente em novo sempre é muito imprudente... E por causa de uma tolice, amigo Machado!

E o outro bate-lhe no ombro também, responde sorrindo:

– Por causa duma grande tolice, Alves amigo.


Alves & Cia, mais do que uma farsa burguesa, revela, com doses homéricas de ironia e cinismo, o quão tola pode ser a vida de quem se deixa levar pelas aparências e pelo ordenamento social.

Concluída a leitura do livro, cabe esclarecer que a delegação presidida por Medeiros e Carvalho não era gratuita. Eles não mediram esforços para impedir o duelo porque estavam legislando em causa própria: para qualquer um dos dois seria uma amolação ter que se bater em armas contra algum marido enlouquecido. Que Godofredo tivesse sido premiado na loteria dos traídos, vá lá, mas dar (mau) exemplo aos outros não era conveniente a ninguém. Como disse Carvalho, a determinada altura da narrativa: Homem, isto melhor é a gente divertir-se por sua conta, que os outros se divirtam à nossa custa...


TRECHO ESCOLHIDO

 

Era uma longa história, que o Medeiros contou com detalhes, gozando. Tinham falado ao Machado, que lhes prometeu que dois amigos dele estariam às quatro horas em casa dele, Medeiros. E pontualmente apareceram lá o Nunes Vidal, que ele conhecia perfeitamente, rapaz de experiência em coisas de honra, e o Cunha, o Albertinho Cunha, que pouco falava, estava como um comparsa. Entraram, cumprimentos, etc., tudo muito grave, e toda a amabilidade. Depois vieram à questão: o Nunes Vidal declarou logo que, em princípio, o sr. Machado estava pronto a aceitar todas as condições, todas quaisquer que fossem, propostas pelo sr. Alves. Inteiramente todas. Mas que ele, Nunes Vidal, e ali o seu amigo Cunha, entendiam que o dever das testemunhas, num conflito, era, antes de tudo, procurar paz e conciliação. E que portanto, se em princípio o seu constituinte, o sr. Machado, por um excesso de pundonor e orgulho, estava disposto a deixar-se matar, eles, suas testemunhas, que tinham tomado nas suas mãos os interesses dele, estavam ali, e tinham vindo ali, não só para procurar, tanto quanto possível, o evitar que sucedesse uma desgraça no campo ao seu amigo, mas mesmo que em volta do nome dele se fizesse um escândalo, que o prejudicaria...

 

– Tudo isso bem dito – acrescentou o Medeiros –, tudo muito bem explicado, com bonitas palavras... Sério, gostei do Vidal.

 

– Ah, rapaz de muito talento – murmurou o Carvalho.

 

Enfim, Vidal terminara por dizer, que tudo bem considerado, não julgavam que houvesse motivo para um duelo grave à pistola.

 

Outra vez a falta de motivos. Godofredo despropositou:

 

– Com mil diabos, então que queria esse asno que o Machado me tivesse feito de pior?

 

Com um gesto, Medeiros conteve-o.

 

– Não te exaltes, não te exaltes... Deixe estar que lá lhe disse tudo. O Vidal é muito esperto, mas olha que não me calei. Pergunta ao Carvalho...

 

– Andaste como um rábula – disse Carvalho.

 

– Mas então que diabo disse o Vidal? – exclamou ainda Godofredo.

 

O Vidal dissera que não havia motivo de sangue, porque o que se passara entre Machado e a senhora fora um simples namoro...

 

Godofredo teve um gesto furioso. E o Medeiros, erguendo-se também:

 

– Não te exaltes, escuta. Eu lá lhe disse tudo. Contei-lhe do modo como o apanhaste, e a carta, meu riquinho que tarde a de ontem, e o resto. Apresentei-lhe todos os dados para o convencer que o adultério era completo... Não é verdade, Carvalho?

 

– Todos.

 

– Disse-lhe claramente: meu constituinte, o nosso amigo Alves, é, em toda a extensão da palavra, um marido que... Enfim, necessita reparação. Não é verdade, Carvalho?

 

Carvalho fez um gesto de assentimento.

 

– Mas o Nunes provou-me que não. Tinha lido as cartas ele também, o Machado contara-lhe tudo, e depois de ter combinado, pensado, chegara a este resultado: que não passara de namoro.        

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